A morte da infância
C de Jesus, fotografia de Luís Januário
Em 1982 um homem chamado Neil Postman, teórico dos media e crítico cultural, escreveu um livro chamado The Disappearance of Childhood. Postman chamava “childhood” ao período que vai dos sete aos dezassete anos. Coincide com a idade escolar, englobando a segunda infância (middle childhood) e a adolescência, ou, em termos biológicos, o período que começa na adrenarca e vai até ao fim da puberdade. À falta de melhor, e para simplificar, utilizarei aqui a palavra “infância” nessa acepção. Pois para Postman, como para Hugh Cunningham, autor de uma fabulosa investigação sobre a história da infância no mundo ocidental, este conceito é um artefacto social. Surgiu no século XVI com o Renascimento, a ciência, o Estado-nação e a liberdade religiosa, graças sobretudo ao desenvolvimento da imprensa escrita, e foi-se aperfeiçoando ao longo dos últimos 350 anos. No início desses anos 1980, quando Neil Postman publicou o seu livro, a infância tinha-se já extinguido, liquidada pelos media electrónicos e, sobretudo, pela televisão. Ele debruçou-se com brilhantismo sobre os sintomas da extinção da infância: o desaparecimento de vestuário especificamente infantil, do comportamento, das atitudes, dos desejos, “mesmo do aspecto físico”. Mas, e é este o ponto em que me vou concentrar, a parte mais curiosa do livro de Postman é sobre a perda da inocência.
A infância era um período de alegre e despreocupada brincadeira. Em todos os lugares havia bandos ruidosos. Nas cidades em crescimento brincavam nas ruas em construção, terrenos baldios, pinhais e matas. Muito perto de bairros residenciais exploravam os olivais, terrenos de pastagem, poços, azenhas, estábulos, faziam negaças a caseiros de bigodes façanhudos e botas de cano alto, trepavam os muros brancos de cemitérios assombrados, aventuravam-se em visitas secretas a matadouros onde, com um pouco de sorte, ganhavam uma bexiga para um jogo de futebol arqueológico. Os seminários albergavam já poucas vocações, mas nos campos de jogos havia partidas de futebol memoráveis. Esse mundo livre da infância era desconhecido das pessoas adultas. E esse desconhecimento, essa ausência de supervisão e enquadramento, de projectos educativos e objectivos curriculares era a garantia mesma da sua liberdade. Da mesma forma que os pais retinham do mundo da infância os rasgões nas camisas, os arranhões e a sujidade, e respeitavam aquele espaço que, de certa forma, fora também o deles, assim se comportavam as crianças e os juvenis, numa mistura sempre instável. Nas horas mortas, nas tardes quentes da Páscoa interminável, a horda juvenil reunia nas escadas de um prédio ou num quintal mais recatado, e os mais velhos, cheios de prestígio capilar, abriam os livros e davam aulas de educação sexual. Era uma mistura de anatomia e fisiologia, higiene e rock ‘n’ roll, senso comum e ideologia popular masculina, uma fórmula insuperável de espantosa ignorância e imaginação prodigiosa. Esses rapazes-mestres teorizavam sobre o aparelho genital feminino sem nunca terem vislumbrado sequer o joelho das meninas. À noite, na época de verão, perante uma audiência seleccionada, explicavam o coito, com a elegância que a pobreza lexical e a insipiência lhes permitiam, enquanto um murmúrio de assombro perpassava a galeria. Este mistério que recaía sobre a vida dos adultos era o coração negro da infância. O seu encanto e o seu atormentado vislumbre do prazer. A infância (dos meninos que gostavam de meninas) era um tempo de neblina e silêncios que acabava numa revelação esplêndida, uma promessa de sabedoria, a travessia de um túnel de escuridão no fundo do qual havia a Terra prometida, a bondade e a beleza das mulheres adultas e disponíveis, a sua underwear enfim revelada e a maciez imaculada do seu corpo, a intimidade pressentida, a tortura da carne como desporto e arte.
A televisão, primeiro lentamente, depois como uma caterpillar, abateu-se sobre este mundo secular. Esse “dispensador igualitário de informação”, nas palavras de Postman, permitiu a visualização e a representação ad nauseam desta realidade, “erotizando as crianças e infantilizando os adultos”.
Desde a sua popularização, a televisão revelou incessantemente às crianças o mistério da vida adulta: sexualidade e violência. Tudo sem rede, nem grandes oportunidades familiares ou escolares para informar, debater, desconstruir. Até que o mistério se banalizou na linguagem e no comportamento, dando lugar a um mundo informe de Lolitas, Barbies e Bens, crianças maquilhadas e envernizadas, e adultos de All Star.
O acesso irrestrito ao mundo dos adultos fez ruir a grande interdição, a que recaía sobre a sua sexualidade. Acabou a idade da inocência. Nem pecado, nem culpa. O terceiro segredo de Fátima era o que os adultos faziam na escuridão. Quando foi revelado já não interessava a ninguém.
Postman morreu em 2003. A infância falecera há décadas, durante as telenovelas da tarde.
Neil Postman, The disappearance of childhood, Vintage Books, 1982
Hugh Cunningham, Children and Childhood in Western Society Since 1500 (Studies In Modern History), Pearson, 1995
Frank Furedi, Let the children be children, The Guardian , 2010 http://www.theguardian.com/commentisfree/2010/feb/26/children-behaviour-sexual-images
[Luís Januário - crónica publicada no Jornal i de 28 de Setembro de 2013]
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