Capricho meteorológico e golpe de vista
Caixa das Preciosidades: corpete, 1946
Uma senhora baixa desce do eléctrico, cabelo recolhido sob chapéu sóbrio e pequeno véu sobre a face, com adolescente crescida, cabelo solto, comprido e ondeado. Uma mãe e sua filha, lado a lado. Um vulto escuro e o brilho de um alegríssimo amarelo estampado, corpete cintado com botões grandes madrepérola e saia rodada, certamente com saiote que quebra a transparência dos quatro lenços que assim unidos formam o fresco vestido. Isto viu Carlos que deixa a esquina onde pára e anda. Um jovem magro e alto de cabelo escorrido passa rente e Júlia fita-o, julgando-se tão discreta que crê que só ela terá notado a proximidade dos corpos indo em sentidos contrários, enquanto ele estaca com a certeza de que o seu olhar foi correspondido. Cumprem, a mãe de braço apoiado na filha de amarelo estampado, o passeio dos tristes, sobem 31 de Janeiro sem nada mais retido na memória, mas o jovem magro e alto de cabelo penteado que se fora na direcção dos Clérigos reaparece aqui no cimo da rua por golpe mágico a atravessar à nossa frente e por entre um rubor mal disfarçado chocam-se os olhares, o ar rarefaz-se e já se afastam outra vez cada um por seu caminho, o resto do passeio em desassossego numa desatenção total às montras e às modas.
A hora do
regresso, o eléctrico de Paranhos, o costume. Meia hora de viagem a baloiçar
nos carris desnivelados pelas raízes das alamedas ou pelos solos que cedem
às chuvas, colar pensativa o nariz ao frio da janela como em criança,
regressam a pé muitos que não ganham para o passe, mais uma paragem, entram e
saem passageiros, Paranhos Fim de Linha é a próxima, já se avista. Caminham, ao
fundo hão-de virar à esquerda e subir a pequena ladeira até casa, mais uns
passos de novo, nítidos, tão rápido se volta que não está certa se viu o que viu, a uma
cautelosa distância ele procura pisar sem barulho, abranda, moram
ali, isso, acende um cigarro, ela corre
escadas acima, corre até à janela do quarto, ali ele, alto e
magro, atira uma nuvem de fumo por
onde espreita, ela por detrás da cortina afasta-a com a mão, a cara aproxima-se da luz, ilumina-se um sorriso brevíssimo, ai dos que não obedecem à doce voz maternal, a mão acena ou desprende-se enquanto a
cortina desce e se esfuma um rasto de ouro estampado.
E aqui eu arrisco a tese de que não fora aquela
tarde anormalmente quente pedindo roupa leve, não fosse o requinte do avô no
desenho dos seus lenços e a destreza da costureira, não fosse o brilho do
amarelo estampado fazendo sobressair a
jovem passageira apesar da distância à esquina de vigia, não fosse a conjugação
de tudo isto e mais actos num mesmo preciso instante e não estaria eu agora a
efabular sobre os mistérios da vida.
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