Maio ao contrário
No último fim de semana Paris assistiu a uma grande manifestação contra o " casamento para todos", assim se chamava a iniciativa da ministra da Justiça do governo de François Hollande. Como sempre os números são díspares, de acordo com as fontes. Mas a manifestação foi um êxito. O que estava em causa era a aprovação pela Assembleia Nacional francesa de um diploma estendendo o casamento aos indivíduos do mesmo sexo, com a possibilidade de adopção. A direita, e não apenas a mais radical, a que para facilitar chamaremos popular, esteve muito activa no parlamento, obrigando a uma maratona que se estendeu por 160 horas e várias madrugadas e que ameaçou a confrontação física. Um conjunto de organizações muito variado convocou a manifestação. O jornal Le Monde investigou e chegou à conclusão de que a maior parte dessas organizações são fantasmáticas, "des coquilles vides", como dizem. Por detrás delas está a Igreja e a direita política francesa, em recomposição desde a derrota eleitoral de Sarkozy, tendo na ribalta aqueles personagens medíocres das transições, cujos nomes me dispenso de decorar, mas que parecem sempre excessivamente entusiasmados com o tempo de antena que conquistaram. E uma mulher, que dá pelo nome de Frigide Barjot. Também conhecida por Virginie Tellenne, era, até há pouco, uma artista um pouco excêntrica das relações da família Le Pen e do sub mundo de Paris. Tentando contextualizar a ironia onomástica, diria, com todo o respeito, que seria o mesmo se, entre nós, uma campeã do combate contra os direitos sexuais adoptasse o nome de Anália Pudricas. Em 2004, depois de uma peregrinação a Lurdes, Frigide tornou-se uma activista católica. Para usar as suas palavras, uma "adida de imprensa de Jesus". Saltou para as primeiras páginas com o êxito da mobilização que referi e já declarou que tenciona federar os descontentes dos partidos tradicionais no seu movimento e concorrer às municipais de 2014. Um dos aspectos inovadores da manifestação, para além do folclore homofóbico, foi o aparecimento dos Hommen, grupo inspirado nas Femen e que se manifestaram de tronco nu, decorado com palavras de ordem. Outro, foi a táctica de confrontação com a polícia e de provocação de tumultos que os parlamentares depois se encarregam de dramatizar, criando na assembleia uma tensão especial, ampliada pelo estilo grotescamente tribunício que a presença de claques na asssistência propicia. Eufóricos com a dimensão da revolta e com a participação de jovens, alguns já anunciam uma vaga de fundo, "um Maio 68 ao contrário". Contra o" progressismo e a modernidade", dizem.
Não se percebe bem o que possa ser "um Maio de 68 ao contrário". Sob alguns pontos de vista já aconteceu. O cinema, por exemplo, é quase todo, há muito tempo, o cinema do papá. Ou dito de outra forma: com a infantilização geral dos papás, não é preciso outro cinema. Mas o que diriam se os jovens catecúmanos de Paris investissem contra a polícia nos próximos meses, os rapazes de gravata e as raparigas de Marianne, gritando: " Somos nós os cães polícias do capitalismo. Olhem como gostamos do polícia que há dentro de cada um de nós." E com palavras de ordem e grafittis deste tipo: " Sejam realistas, peçam o possível! Deus, tenho a certeza de que és um activista da direita popular. Eu não faço amor. Procrio. É mesmo proibido. Tudo proibido. Metro!boulot!dodo! A arte está viva . No Palácio da Ajuda. Se debaixo do empedrado estiver a praia, privatizêmo-la."
O maior mistério é mesmo o que leva a Igreja católica a meter-se com esta gente. A Igreja não resolve os seus problemas sexuais e não resiste aos seus reflexos condicionados. A preocupação com a família é uma coisa boa e decente. Adoro as famílias, a minha em particular e as famílias em geral, sobretudo quando são felizes sem alarde, nem necessidade de andarem a exibir a sua felicidade. Mas porque razão a minha família há-de ser um modelo para as outras? Porque não hão-de os homossexuais poder constituir famílias felizes ? E adoptar crianças ? Que diminuição atinge os homossexuais? Que qualidades especiais têm os heterossexuais, para ter mais direitos? Uma maioria não outorga nem consente direitos. Reconhece a desigualdade e põe fim a um regime iníquo. A Igreja católica, se quer ter um papel positivo no mundo actual e distinguir-se do Islão, faria bem em escolher as companhias. Frigide Barjot não é uma boa companhia. Jesus, como se sabe, há muito que escolheu os seus assessores de imprensa. E não foi ela, nem foi em Lurdes.
Etiquetas: A bicicleta de Russel, crónicas do i