27 abril 2013

Maio ao contrário




No último fim de semana Paris assistiu a uma grande manifestação contra o " casamento para todos", assim se chamava a iniciativa da ministra da Justiça do governo de François Hollande. Como sempre os números são díspares, de acordo com as fontes. Mas a manifestação foi um êxito. O que estava em causa era a aprovação pela Assembleia Nacional francesa de um diploma estendendo o casamento aos indivíduos do mesmo sexo, com a possibilidade de adopção. A direita, e não apenas a mais radical, a que para facilitar chamaremos popular, esteve muito activa no parlamento, obrigando a uma maratona que se estendeu por 160 horas e várias madrugadas e que ameaçou a confrontação física. Um conjunto de organizações muito variado convocou a manifestação. O jornal Le Monde investigou e chegou à conclusão de que a maior parte dessas organizações são fantasmáticas, "des coquilles vides", como dizem. Por detrás delas está a Igreja e a direita política francesa, em recomposição desde a derrota eleitoral de Sarkozy, tendo na ribalta aqueles personagens medíocres das transições, cujos nomes me dispenso de decorar, mas que parecem sempre excessivamente entusiasmados com o tempo de antena que conquistaram. E uma mulher, que dá pelo nome de Frigide Barjot. Também conhecida por Virginie Tellenne, era, até há pouco, uma artista um pouco excêntrica das relações da família Le Pen e do sub mundo de Paris. Tentando contextualizar a ironia onomástica, diria, com todo o respeito, que seria o mesmo se, entre nós, uma campeã do combate contra os direitos sexuais adoptasse o nome de Anália Pudricas. Em 2004, depois de uma peregrinação a Lurdes, Frigide tornou-se uma activista católica. Para usar as suas palavras, uma "adida de imprensa de Jesus". Saltou para as primeiras páginas com o êxito da mobilização que referi e já declarou que tenciona federar os descontentes dos partidos tradicionais no seu movimento e concorrer às municipais de 2014. Um dos aspectos inovadores da manifestação, para além do folclore homofóbico, foi o aparecimento dos Hommen, grupo inspirado nas Femen e que se manifestaram de tronco nu, decorado com palavras de ordem. Outro, foi a táctica de confrontação com a polícia e de provocação de tumultos que os parlamentares depois se encarregam de dramatizar, criando na assembleia uma tensão especial, ampliada pelo estilo grotescamente tribunício que a presença de claques na asssistência propicia. Eufóricos com a dimensão da revolta e com a participação de jovens, alguns já anunciam uma vaga de fundo, "um Maio 68 ao contrário". Contra o" progressismo e a modernidade", dizem.

Não se percebe bem o que possa ser "um Maio de 68 ao contrário". Sob alguns pontos de vista já aconteceu. O cinema, por exemplo, é quase todo, há muito tempo, o cinema do papá. Ou dito de outra forma: com a infantilização geral dos papás, não é preciso outro cinema. Mas o que diriam se os jovens catecúmanos de Paris investissem contra a polícia nos próximos meses, os rapazes de gravata e as raparigas de Marianne, gritando: " Somos nós os cães polícias do capitalismo. Olhem como gostamos do polícia que há dentro de cada um de nós." E com palavras de ordem e grafittis deste tipo: " Sejam realistas, peçam o possível! Deus, tenho a certeza de que és um activista da direita popular. Eu não faço amor. Procrio. É mesmo proibido. Tudo proibido. Metro!boulot!dodo! A arte está viva . No Palácio da Ajuda. Se debaixo do empedrado estiver a praia, privatizêmo-la."

O maior mistério é mesmo o que leva a Igreja católica a meter-se com esta gente. A Igreja não resolve os seus problemas sexuais e não resiste aos seus reflexos condicionados. A preocupação com a família é uma coisa boa e decente. Adoro as famílias, a minha em particular e as famílias em geral, sobretudo quando são felizes sem alarde, nem necessidade de andarem a exibir a sua felicidade. Mas porque razão a minha família há-de ser um modelo para as outras? Porque não hão-de os homossexuais poder constituir famílias felizes ? E adoptar crianças ? Que diminuição atinge os homossexuais? Que qualidades especiais têm os heterossexuais, para ter mais direitos? Uma maioria não outorga nem consente direitos. Reconhece a desigualdade e põe fim a um regime iníquo. A Igreja católica, se quer ter um papel positivo no mundo actual e distinguir-se do Islão, faria bem em escolher as companhias. Frigide Barjot não é uma boa companhia. Jesus, como se sabe, há muito que escolheu os seus assessores de imprensa. E não foi ela, nem foi em Lurdes.

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21 abril 2013

Homenagem a Glenda Jackson, MP


Martin Parr
A senhora Thatcher foi a sepultar. Foi um dia grande para o Império Britânico. No Parlamento de Londres, uma mulher corajosa, Glenda Jackson, tinha lembrado as multidões de deserdados do thatcherismo. Glenda, uma glória britânica, opositora da revolução conservadora, do blairismo e da guerra do Iraque, estava bem colocada para fazer esta intervenção e quebrar o falso unanimismo que a direita revisionista procurava, com a claudicação da razão que uma morte sempre provoca. Um membro da maioria mandou-a calar. Tratava-se de uma Homenagem à falecida. Só falava quem queria. Homenagem é, etimologicamente, um protesto de admiração e respeito do vassalo ao senhor feudal.  Em inglês, Tribute tem o mesmo significado. To pay tribute, dizem. Acabado o feudalismo, só paga quem quer.  A homenagem passa a ser um acto de consideração. Quem não tem consideração especial pela senhora Thatcher, deve alhear-se da homenagem. Além do mais não parece elegante dizer mal de quem acabou de morrer. É um momento em que deve calar-se quem, como eu, não tem nada de especialmente agradável para dizer sobre a mulher que governou o Reino Unido durante onze anos, deu aos patrões a flexibilização das leis laborais, aos mercados a desregulamentação do sector financeiro e a privatização dos sectores rentáveis do Estado e foi uma das principais responsáveis pelo mundo com que nos debatemos presentemente. Seria este o meu contributo, se eles tivessem parado de falar.  Apenas com uma breve nota, como dizem os comentadores. Sempre achei Glenda Jackson melhor do que Merril Streep.  A rainha Isabel I,  Elena Bonner, Alexandra Kollontai, a amante de Lord Nelson são bem superiores à amante do Tenente Francês, ao diabo que veste Prada ou à xaropada romântica de A ponte de Madison County.  Calo-me, pois.

Não foi outra a opinião do Bispo de Londres, Richard  Chartres, que disse que o funeral não era o local para discutir as suas políticas. A senhora Thatcher fez o que Passos Coelho está a fazer neste país. Tomou o aparelho de Estado para destruir a maior parte das suas funções sociais. Era o seu ideário e cumpriu-o, vinte anos antes dos correligionários portugueses, com o apoio maioritário dos votos depositados nas urnas. Com Reagan, e depois com Bush e Blair, inaugurou a nova faceta da direita política que abandonou a moderação social do conservadorismo clássico inglês e desencadeou uma via de destruição. Será recordada pela famosa frase “não existe essa coisa de sociedade. Há indivíduos e famílias.” Foi agora a enterrar com um funeral que custou 12 milhões de euros aos contribuintes, o que, como alguém registou, não é inteiramente correcto para uma liberal extremista. A baronesa Thatcher de Kestevet, fiel aos seus princípios, não se precaveu contra a tentação do governo encenar um espectacular funeral de Estado, ao invés de um discreto funeral privado, a cargo da Servibritain e suportado por uma cláusula do seu seguro de vida pessoal.

O funeral revestiu-se de uma pompa sem igual. Sob o ponto de vista formal, foi um “funeral cerimonial”, uma categoria criada para Diana após a sua morte, e que depois se aplicou às exéquias da Rainha Mãe. Na prática imitou o funeral de Churchill.  Como foi notado, Churchill foi um combatente que uniu o Reino Unido quando este era, ainda, a sede de um império. Thatcher foi uma determinada activista radical que unificou a direita numa batalha política contra o trabalhismo, os sindicatos, a classe operária  e o Estado providência e dos consensos, laboriosamente edificado no pós guerra. Pregando um “capitalismo popular”, em que todos poderiam ser proprietários de uma mercearia, abriu o caminho à ditadura mundial do capital financeiro especulador, ao clepto-capitalismo nos países pós-comunistas e à intervenção militar sem fim. Nos direitos civis e nas artes, oscilou entre a ignorância e a grosseria. Amiga de Pinochet, tolerante com o apartheid, matou a ilusão de que a chegada das mulheres aos mais altos cargos de decisão política modificaria o seu exercício.

Compreende-se que a direita de Cameron e os seus simpatizantes do continente lhe queiram prestar esta homenagem e nisso se excedam, e que a monarquia de Isabel II, especializada em funerais, se ponha a jeito. Mas neste ano do século XXI, a vitalidade do legado de Margareth Thatcher reside na cega agressividade dos mercados destruindo as nossas vidas. O fausto do funeral de Londres e o mundo intelectual de Thatcher são já como o império de Vitória: um parque temático que alguns visitam com nostalgia e que no dia seguinte se esquece com o anúncio dos novos cortes governamentais nos serviços públicos.


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15 abril 2013

Nem sempre se morre



Cândido, o herói do conto filosófico de Voltaire, é afastado do idílico Castelo da Vestefália onde crescera, por ter sido surpreendido a beijar a menina Cunegundes atrás de um biombo. Cunegundes, muito inclinada para as ciências experimentais, apenas tentava repetir a lição de física que o Professor Pangloss dava a Paquette, a airosa criada de quarto da sua mãe, a Baronesa de Thunder-ten-tronckh, entre os arbustos do bosque. No primeiro encontro, ainda os lábios se aproximavam, os dois enamorados foram separados com brutalidade e a expulsão do Castelo deu início à vertiginosa deambulação de Cândido. Arregimentado no exército Búlgaro, é envolvido na guerra sem quartel que estes travam com os Abaros. 

Quando, mais tarde, encontra o Professor Pangloss, este comunica-lhe os terríveis acontecimentos: do encontro com Paquette contraíra o treponema da sífilis, que, apesar de nesse ano distante ainda não ter sido identificado, lhe fizera já cair os dentes e parte do nariz; o Castelo fora assaltado pelo exército Búlgaro e não ficara pedra sobre pedra. Pior, Cunegundes também perecera “esventrada pelos soldados, depois de ter sido tão violada quanto se pode sê-lo.” Algumas peripécias depois, nos arredores de Lisboa destruída pelo Grande Terramoto, uma velha conduz o nosso herói a uma casa dos arredores e a uma mulher que, quando se descobriu, não era outra senão a bela Cunegundes, pérola das raparigas. –Que é isto! sois vós, espantou-se Cândido. Estais viva! Encontro-vos em Portugal! Não fostes violada? Não vos rasgaram o ventre como me assegurou Pangloss? 

E é então que Cunegundes responde: - Assim foi, mas nem sempre se morre destes dois acidentes. Quando Cândido recebe esta resposta e apesar de estarmos apenas no capítulo sete, já tinha sido pontapeado pelo Barão, seviciado repetidamente pelo exército búlgaro, traiçoeiramente agredido na cabeça pela mulher de um orador papal, soçobrado num naufrágio no tsunami de Lisboa, condenado pela Universidade de Coimbra a penitenciar-se num auto da fé onde o sermoaram e açoitaram em cadência. Por duas vezes, à força das sevícias, perdeu a pele e ficou descarnado, salvo por emolientes, cremes e pomadas. Atravessou todas estas provações com uma grande perplexidade. Discípulo do Professor Pangloss, o melhor Filósofo da província, e portanto do mundo conhecido, sempre aprendera que este era o melhor dos mundos possíveis, onde as coisas não podiam passar-se de outra forma, dirigindo-se para o melhor dos fins. Era terrível tudo o que lhe acontecia, e o sofrimento infligido àqueles que amava. Mas o rapaz aceitava que todos aqueles males particulares compunham o bem geral e conformara-se com um mundo do qual desaparecera para sempre a bela Cunegundes. Violada pelos soldados búlgaros. E depois- têm que ler outra vez- o ventre rasgado. 

Somos todos filhos e filhas dessa interminável violação. Não de um acto de amor, mas de uma bárbara intrusão. Dos testículos da soldadesca como uma arma de guerra total, apontada às mulheres não combatentes. Foi assim nas tribos e nos primeiros estados. Nos gregos e nos persas, nos avanços das legiões romanas. E numa lista recente a que não vos pouparei: o Congo e Darfur, como antes o Ruanda e a Bósnia Herzegovina, Myanmar e a Somália, Bangladesh, Cambodja, Costa do Marfim, Chipre, Timor Leste, Haiti, Libéria, Peru e Uganda. A resposta da rapariga é de uma grande simplicidade. Nem sempre se morre destes dois acidentes, diz ela. E isso é novo, leve, encantador e também um sopro de esperança no Cândido e no tempo que anuncia. Cunegundes não se queixa. Não se vê como vítima ou troféu do vencedor. A violência é abjecta, mas ela não. Não tem cicatrizes, traumas, sequelas, vergonha. Continua a ser uma mulher que pode ser amada. Do mesmo modo que os emplastros curaram Cândido, assim ela renasceu. Uma sobrevivente, utilizando os seus encantos, os seus poderes. Cunegundes é o reverso do pessimismo. Se o homem mata, estropia, perfura, rasga e por todo o lado encena a destruição como espectáculo do poder, a mulher lembra aos que conservam a ingenuidade que a destruição nem sempre é total. Não sucumbem todos nos autos da fé, nos campos de extermínio e de violação, no circo romano, nos saldos do Pingo Doce, nas eleições democráticas, no Palácio da Ajuda. Alguns sobrevivem, no melhor dos mundos possíveis. E estes ouvirão de uma mulher ( e do Professor Pangloss, ele também redivivo) as palavras simples que tornam tudo possível, outra vez, para a espécie maldita. 

Cândido, ou o Optimismo, Voltaire, Tinta da China, 2012


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07 abril 2013

Balcão com mão de mulher e copo




Robert Doisneau (1912-1994) foi um fotógrafo francês que em 1950 ganhou a celebridade com Um Beijo no Hotel de Ville, a foto de um jovem e elegante casal, beijando-se, enquanto passa, em segundo plano, o tapete rolante da vida quotidiana. Capa da revista Life, teve milhões de reproduções e decorou as paredes da primeira geração do pós guerra, como símbolo discreto da nova moral hedonista e despreconceituosa. Doisneau foi um fotógrafo de rua, como Kertész ou Cartier-Bresson. Muitos anos mais tarde percebeu-se, e isso excitou incompreensivelmente alguns, que a foto de O Beijo fora encenada, e a mulher “modelo” a quem Doisneau cedera o negativo deu entrevistas e acabou por vendê-lo, por soma avultada, a um coleccionador incógnito.
Uma das fotos de Doisneau foi escolhida por John Szarkowski para o livro de 1973 intitulado Looking at Photographs.  Szarkowski, ele próprio um fotógrafo, foi curador do Museum of Modern Art de Nova Iorque e aí responsável, durante 30 anos, pelo Departamento fotográfico. Exerceu um magistério de influência sobre gerações de profissionais e apreciadores de fotografia e escreveu textos, agora clássicos, sobre Eugène Atget, Garry Winogrand ou Irving Penn entre outros.  A imagem de Doisneau que Szarkowski seleccionou a partir do acervo do MOMA para esta obra singular da história da fotografia, chama-se No Café, Chez Fraysse, Rue de Seine, Paris (1958).  A cena é descrita soberbamente por John Szarkowski. Um homem e uma mulher bebem vinho tinto no balcão de um café. Ela tem os olhos em baixo e uma face esfíngica. Parece hesitar numa decisão, estar suspensa, por pudor, nos segundos que precedem um assentimento equívoco ou uma recusa gentil. Naquele momento ouve o homem. Ele está virado para ela, tem um fato de flanela grossa e um lenço branco aflorando, negligentemente, o bolso do casaco. Apoiada no balcão ela volta para ele o ombro esquerdo. O homem é baixo, fita a hemiface esquerda dela enquanto fala. John Szarkowski detém-se neste momento de sedução, em que um homem joga tudo. Diz, a certa altura, que este homem “não tem nenhuma estratégia de retirada satisfatória”. E continua: ...”Pior do que isso, ele é mais velho do que devia ser”...
( Worse yet, he is older than he should be...).
Temos então, num bar de Paris, captado pela lente de uma Leica, um homem “que não devia ser tão velho”, tendo à frente um copo vazio de tinto Beaujolais, Beaujolais nouveau, dirigindo-se a uma mulher com quem partilha um segundo copo de vinho.
A mulher está separada do homem pela face posterior e externa do seu braço flectido, por cima do qual veste uma malha preta e um casaco de camurça. O sorriso dela é melancólico, mas ele não pode vê-lo. Totalmente concentrado na face dela, na sua hemiface esquerda, distingue apenas a comissura dos lábios, a saliência do malar, a pálpebra sombreada, a sobrancelha erguida e, na periferia, os cabelos finos, negros, desalinhados, divergindo de um ponto da testa ovalada. Um homem pletórico, talvez calvo, apoiado no antebraço, totalmente virado para a mulher, falando com os lábios cerrados, pesado, maciço como um velho pugilista. Há alguma coisa dramática neste quadro. A tensão do homem contrastando com a serenidade da mulher. O esforço contra a leveza. A claridade contra a sombra. O passado contra o presente. A mão delicada dela tocando o copo sobre o balcão e as mãos decepadas dele. Um homem arriscando alto, empenhado e talvez comovendo a mulher com tanta determinação. Mas essa obstinação, a comoção que desperta, é também a sua fragilidade. “Pior do que tudo”, como ouvimos dizer, “ é mais velho do que devia ser”. E, por isso mesmo, condenado ao fracasso.
Voltamos a olhar. O centro da composição é, afinal, a face da mulher, a zona de maior luminosidade, de onde parte o olhar oculto dela. Dessa borboleta de luz acompanhamos a direcção do seu olhar. Até ao copo de vinho. E desde aí, pela mão clara, subimos ao longo do braço até ao olhar turvo do homem. Paramos na mancha negra do chapéu. E quando voltamos a descer, refazendo o percurso em V que o nosso olhar traçou na imagem, deparamos de novo com o rosto imóvel dela, o pequeno sinal saliente no sulco naso-geniano. E nesse instante perdemos o homem, fundido na penumbra de outros homens indistintos ao fundo. Ela fica sozinha no Café da Rue de Seine,  agarrada ao balcão, depois içando-se para a luz como para o bordo de uma piscina, depois ainda, abrindo as asas para voar.


Looking at Photographs, John Szarkowski, The Museum of Modern Art, 1973. Eight print 2009. Distr. by Thames & Hudson Ltd, London

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01 abril 2013

Soletro o título



1. A Primavera é uma fraude. Sim, uma fraude. Um conteúdo escolar, formal. A mancebia entre a meteorologia, o turismo massificado e o romantismo gagá. Vai chover e as temperaturas médias serão baixas. Continuam em casa as Colombinas de Fevereiro, desbotadas e receosas. Privadas e inacessíveis. E os Pierrots, suspirando nos pátios desertos, abrigados nas garagens, assobiando na esperança de serem notados. Ou simplesmente ouvindo, inesgotável, a água nas caleiras. É assim hoje e foi assim numa Páscoa distante. As raparigas estavam silenciosas, recolhidas. Cada casa parecia um mosteiro de clausura. Os rapazes acordavam cedo. Não se podia jogar a bola, nem andar de bicicleta, nem ir à mata cerrada ou ao canavial. As raparigas, os rapazes grandes e os lingrinhas dormiam até tarde. Invisíveis. Era escusado tocar às campainhas. Tudo molhado e frio. Em casa há um bolo chamado folar, embrulhado em papel translúcido. Melhora à medida que endurece. Vem de um padeiro de Anadia. O bolo de cá não presta. Não têm a receita. Os ovos são de aviário. Come-se com manteiga ou geleia. Com marmelada ou compota de cereja. Os dias são santos. Quinta feira. Santa. Sexta feira. Santa. Sábado de Aleluia, o dia em que nasceu a mana. Domingo de Páscoa. Vamos à procissão. Vamos beijar o Senhor. E sempre a chover. Sempre tudo molhado. Sempre a separação dos sexos. Sempre a dureza dos dias sem raparigas. A rudeza dos rapazes à chuva. Das botas de couro cozidas em sola de pneu velho que duram uma estação. Das mãos gretadas pelas frieiras. Dos casacos de cabedal preto de poupa levantada. Das palavras rudes dos rapazes. Da educação sexual nos canaviais. Das conversas sobre as raparigas, sem raparigas. Como se falássemos de animais extintos ou da vida dos santos.


2. Não suporto ver sangue. Ou, dito de outra maneira: não suporto a parte de mim que se habituou a ver sangue, a calçar luvas para mexer nas feridas. Agora, nas pessoas que são submetidas a terapêuticas mais prolongadas, usam cateteres, botões. São vias venosas viradas para o exterior, miraculosamente suportadas pela parede dos vasos, a que tenho de verificar a permeabilidade antes de injectar os produtos prescritos, diluídos em água destilada ou soro, e mesmo assim devagar, muito devagar. Odeio esta ideia que estou a entrar em ti com meia permissão, a contragosto, que deste consentimento como as mulheres fazem onde não lhes resta outra saída. E sinto a vertigem absurda das mães dos andares altos, quando espreitam à janela e seguram as crianças contra o corpo, assustadas com o turbilhão de um rumor assassino. Ininteligível. Também eu deixei veneno dentro de ti, o esperma tóxico dos rapazes corrompendo as células estratificadas do cérvix. Quis ser outra coisa nessas Páscoas. Estudante de literatura sul-americana. Fui levado, pela mão do meu pai, ao guru da juventude: “Este miúdo é parvo. Anda a mijar fora do penico. Faça qualquer coisa que se veja, primeiro. E depois há-de ter tempo para divagações poéticas”. Bibliotecário arquivista na Biblioteca Geral. E o meu pai: “Estuda. A Revolução há-de precisar de alguém que tenha estudado”. Agrimensor.


3. Com as férias de Páscoa, a cidade e a sala de espera das Urgências estão desertas. Para onde foram os doentes urgentes? Para onde vão os doentes urgentes nas férias, quando chove e nem se vislumbra o fim da chuva? O dia de trabalho acaba mais cedo e vou à livraria. Peço O Fardo do Homem Branco, de Madalena C. Campos. Vão pesquisar. Repita lá. Digo a editora. Companhia das Ilhas. E outra vez o nome do livro. Madalena... Não vale a pena. Posso pedir o que quiser. Ócio Seguido de Veteranos do Pânico, de Fabián Casas, Milita Molina, Efraim Medina Reyes, o celebrado autor de Técnicas de Masturbação para Batman e Robin. Para me ficar pela literatura latino-americana, depois do boom. E Amália Bautista ? Se eu experimentasse Amália Bautista? Sempre o mesmo gesto, virado para o écran do computador. Estão a fazer uma pesquisa. Como é o nome? E a editora? R-e-y-e-s, soletro. Mas-tur-ba-ção. Ba-te-men. Sim, estou a ver. Mas não está a ver nada. E eu, do outro lado do balcão, também não. Não vejo o nome que ele escreve, os dados a que acede. Só a cara de quem não sabe, não encontra, não tem, não conhece, não se espanta, não tem interesse. Manda vir. Mandam vir tudo. Basta deixar o contato. E saber soletrar.
Houve um tempo em que uma miúda vestida de preto ia directamente à estante onde estava Roberta Iannamico ou Martín Prieto, para não sair da literatura sul-americana. E trazia-me os livros quase sem eu ter pedido, inundada numa luz cúmplice. Emigrou há anos, antes de a livraria acabar entaipada em jornais antigos. Vou lá colar esta crónica, que ninguém lerá, em homenagem a ela e aos livreiros que sabiam o nome de quem escreve. Não custa nada. Continuei a mijar fora do penico, Páscoa a Páscoa, e agora injecto-te nas veias a ceftriaxona, enquanto digo os versos de Martín Prieto:

Compro velas para o meu santuário.
A rapariga que vende velas chama-se Laura Sandoval,
e diz que nunca comeu à luz de velas;
não sei se me está a dar uma informação
de que posso prescindir nos próximos 50 anos,
ou pedir-me para a convidar para jantar à luz
das velas.

Alguma coisa nela me diz que a primeira é verdadeira;
alguma coisa em mim me diz que a segunda é mais verdadeira.

Acendo uma vela por Laura Sandoval,
que activou o motor oxidado da dúvida.


(Em Novembro de 2000 Laura Sandoval era empregada do supermercado La Gallega, Rosário, Argentina).


Antologia de la Nueva Poesia Argentina, Perceval Press, 2009.
Madalena C. Campos, O Fardo do Homem Branco, Companhia das Ilhas, 2013

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