Filho-da-puta
masson, esqueci-me de te mandar um abraço, o tempo não dá para tudo.
Iam a caminho da Margaraça e cruzaram com ele em Coja, logo depois da ponte, às nove da manhã. Foram cumprimentá-lo. Ele trocou algumas palavras com eles, inteirou-se do passeio, pediu desculpa por não poder acompanhar e convidou para um chá, em sua casa, se chegássem a horas. Todos os homens morrem e aqueles caminhantes não haviam de chegar a horas. Mas, desobedecendo à prescrição que lhe proíbe mexer no desvão da memória, quer um deles lembrar-se desta história. Era um ano muito antigo do século passado. Alguns meses depois haveria milhões de pessoas nas ruas a celebrar a liberdade. Mas daquele Inverno, só se lembra do frio, do silêncio, da escuridão e do tempo que demorava chegar a Arganil. Havia alguns amigos generosos, uma rapariga cheia de coragem e Leo Férré na rádio a cantar Beaudelaire, que neste país sempre a poesia encontrou frinchas entre a crosta pesada da boçalidade. No Teatro, em Arganil, era quase tudo estudantada vinda de Coimbra, gente sem experiência nem credibilidade. A Pide a mostrar-se. E ele, o dr. Fernando Valle, à espera, calmo, reservado, protector, a sentar-se no palco, a ouvir com atenção. O medo tinha quase tudo nesse ano, mas aquele avô já tinha visto a democracia e dizia que outro país era possível.
A maior causa de perturbação do mundo tem a ver com a gramática.
No debate da rtp 1, O Estado Da Nação, encontrei uma razão para ser de esquerda. O homem trazia um fato azul escuro de riscas finas claras, uma camisa azul de riscas largas e uma gravata azul de bolas azuis.
Margaret Hassan. Ao serviço da Care International, no Iraque. Denunciando desde 1991 os efeitos da guerra e do embargo. Alertando para a catástrofe humanitária que a intervenção armada poderia agravar. Não abandonou o país e continuou a fazer muito mais do que era exigível. A turba de crianças que a rodeava chamava-lhe Madam Margaret. Que nome lhe deram os raptores que a obrigaram a gravar apelos lancinantes aos MP's britânicos e provávelmente a mataram, em Faluja.
Há algum tempo que deixou de cheirar a torradas pela manhã. Um erro sistemático impede-me a entrada nas Musas Esqueléticas. O rapaz da Tasca deixou mesmo de escrever. Será que o Joaquim já voltou?
Os Animais Carnívoros
I
Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso chamá-lo sem voz - difundia uma colorida multiplicação de mãos, e aparecia depois todo nu escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua durante um parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera um crime, os jornais diziam, ele vinha em estado completo de fotografia embriagada, descobria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão, a boca estava impressa na doçura intransponível da pêra, e depois já se não sabia o que fazer, ele era belo muito, daquela espécie de beleza repentina e urgente, inspirava a mais terrível acção do louvor, mas vinha comer às nossas mãos, e bastava que tivéssemos muito silêncio para isso, e então os dias cruzavam-se uns pelos outros e no meio habitava uma montanha intensa, e mais tarde às noites trocavam-se e no meio o que existia agora era uma plantação de espelhos, o Amor aparecia e desaparecia em todos eles, e tínhamos de ficar imóveis e sem compreender, porque ele era uma criança assassina e andava pela terra com as suas camisas brancas abertas, as suas camisas negras e vermelhas todas desabotoadas.
A morte de Theo Van Gogh, o sobrinho bisneto de Vincent ou simplesmente o bisneto de Theo, o das cartas, ou apenas o Theo realizador de Amsterdam, o autor de Submissão, é uma morte que me atormenta especialmente. Dizem-me que não, que foi muito e bem noticiada. Pois eu acho que há um grande silêncio sobre esta morte. Um silêncio tão mortal como a condenação que um ayatollah proferiu numa cave de culto em Amsterdam, como as punhaladas que um fiel alucinado por um baptismo de sangue desferiu, como as balas despejadas que os cúmplices carregaram. Agradeço à Espuma o seu post de cor.
Acho que devo contar o que se passou entre mim e I. Hoje, 8 de Novembro de 2004, a probabilidade de I. ler este blog é mínima. Aliás é mínima a probalidade de acontecer algo na vida de I., hoje. Conheci-a numa cidade do sul da Alemanha, com uma ferida no centro para lembrar uma noite de braseiro. I. era muito nova mas trazia consigo a memória da cidade. Tinha um conjunto de pequenos pontos entre as sobrancelhas, tão ordenado como uma tatuagem ou uma cosmética hindu. Disse-me que era uma sinal de nascimento e passei sempre a ver o seu belo rosto com o símbolo da devastação que atingira a sua cidade. Deve ter tido piedade do meu olhar de emigrante sem casa e aproximou-se de mim. Falava-lhe num alemão infantil e tinha que estar muito atento ao que ela dizia, como no Gabinete de Estrangeiros onde ia todos os meses, ou no Instituto de Cálculos e Medições onde era bolseiro. Correu tão bem o nosso primeiro encontro que me espantei que ela não quisesse prolongá-lo. Mas ignorava tudo dela e presumi que tivesse afazeres inadiáveis. De facto, percebi mais tarde, aquele dia em que nos encontrámos na Praça V., era o dia 10 de janeiro do primeiro ano deste século, capicua perfeita. I. tinha muito medo desses dias, dito de modo mais directo, de se apaixonar em dias desses, por homens que não a mereciam, como era claramente o meu caso. Uns dias depois, numa data desprestigiada da sua tabela, beijou-me e foi surpreendente. Encontrávamo-nos, em semi clandestinidade, no apartamento de uma tia onde ela tinha um estúdio. Um dia a senhora voltou mais cedo do que prevíramos e ela ficou imóvel na cama. Como me espantasse, revelou-me que só se levantava às 5:15h, e faltavam três minutos. Quando ela percebeu o meu mau carácter quis despachar-me. Mas não era capaz. Até que uma manhã, recebi um telefonema no Instituto, o que era contra os regulamentos e só podia acontecer por motivos excepcionais. Era ela. Disse-me que era a última vez que me falava. Tinha um calendário em frente. Era o fatídico dia 20 de fevereiro de 2002. Olhei para o relógio: dez horas e um minuto. Tentei argumentar alguns segundos mas ela desligou e eu sabia que a minha condenação era já sem recurso.
Queria falar de W.G. Sebald e de Vila-Matas. No Mal de Montano (Teorema, nas bancas esta semana) Vila-Matas, ou Rosário Girondo, fala de Sebald por quatro vezes. Uma delas a propósito da sua morte, sexta-feira catorze de Dezembro, "parecia sempre recém-chegado de outra época: um homem ligeiramente antigo que, à vista de paisagens solitárias, deparava com vestígios de um passado em ruínas que o remetia para a totalidade do mundo.” Outra para lembrar um fragmento de Vertigem, em que "o passado, todo o passado, sem precisar de cartão de visita, sem que o invoquemos, está aí, oferecendo-se no presente. É emocionante, e aterrorizador.”
A primeira é uma breve citação, no início do seu Dicionário do tímido amor à vida, a segunda parte de O mal de Montano. Rosário Girondo, talvez o pai de Montano, narrador de Bartleby e Cª, reconhece, com W.G. Sebald, a necessidade do autor mostrar os seus trunfos e enumera vários diaristas. Um deles é Sérgio Pitol. Em 23 de Agosto de 1973, Pitol autografou um exemplar do seu livro El tañido de una flauta, que ofereceu a Vila-matas / Rosário Girondo. Sem que entretanto se tivessem voltado a escrever, o narrador de O mal de Montano, recebeu uma carta de Pitol datada de 23 de Agosto de 1993, exactamente vinte anos depois. Quando se viu confrontado com tal coincidência, Pitol respondeu nervosamente: "Algo debió pasar, eso seguro.”
Nessa manhã o narrador de Montano leu uma entrevista de Sebald no El Pais (trata-se provavelmente da entrevista de W.G. Sebald a Babelia e que seria a sua última entrevista). Aí refere que existe uma razão autobiográfica para a homenagem que presta a Robert Walser. O avô de Sebald morreu no mesmo dia que Walser, a manhã do Natal de 1956, também quando passeava sozinho nos campos cobertos de neve de uma aldeia, Wertach, muito próximo do hospício em que Walser viveu os últimos longos anos da sua vida.
Scalinata della Trinitá dei Monti, à meia noite. As escadas estão cheias de gente. Aqui e ali há grupos de rapazes dos subúrbios ou que vieram a Roma aproveitando o feriado. Está um calor de monção e parece que vai acontecer qualquer coisa. É então que um grupo de rapazes começa a cantar baixinho. Os outros alegram-se. Quando um grupo acaba outro recomeça. Os que não sabem cantam para dentro. Os olhos estão iluminados como os olhos dos coristas fervorosos. Que cantam os rapazes? As canções que sabem, os cânticos dos estádios de futebol. Vem a polícia e manda-os calar. Eles obedecem, como os garotos das escolas. Levantam-se e debandam para as ruas escuras.