Quando a minha irmã Poliana era pequena pedia coisas estranhas que não existiam na cidade em que vivíamos. Não me lembro exactamente dos pedidos dela: sapatos de ballet, lápis da Caran d’Ache, bonecas falantes? Nem sabíamos bem onde ia ela buscar aqueles desejos. Nós, os irmãos mais velhos, andávamos todos na escola pública e crescêramos entre reguadas, Salve Marias e as paradas dos lusitos. Ela era a única a estudar no Colégio e talvez as meninas das famílias do Norte, cujas famílias estavam de passagem e habitavam as grandes moradias das Avenidas do Centenário, tivessem objectos daqueles. Se por um acaso que não recordo, alguma vez a cobiça nos levou a imitar os seus pedidos, faltava-nos a imaginação para formular pedidos coerentes. Nem imaginação era coisa que os nossos pais esperassem de nós. Por um capricho que sempre aceitáramos como natural, o Pai tinha interrompido a austeridade no momento em que a nossa irmã acedera ao dom da palavra. Brinquedos e roupa estranha, telas e pautas, eram atributos de um mundo feminino, das mulheres do Norte e dos Colégios, que na nossa família se inaugurara com a chegada da Poliana. À noite, no quarto dos rapazes, chegámos a pensar se ela era mesmo nossa irmã, ou se os nossos pais a tinham recolhido nalguma caravana de refugiados a caminho da América.
As colegas da minha irmã tinham nomes estranhos, da primeira dinastia, sobrenomes com hífen, e nós pensávamos que, mais do que das cidades do Norte, eram estrangeiras,.
Aos pedidos da minha irmã o meu Pai costumava responder: - Para a semana, quando vier o Recoveiro do P. (P. era a maior cidade do Norte), eu encomendo-lhe. E não deixava de cumprir.
O Recoveiro gozou sempre, lá em casa, de um estatuto superior ao do Menino Jesus, do Pai Natal ou do Humberto Delgado. Recoveiro era uma palavra paterna, designando um homem certamente bondoso e viajado, que o Pai encontrava e a quem fazia encomendas. Tudo de que precisávamos se comprava em lojas que conhecíamos: a papelaria do senhor Brandão, a livraria da Menina Alice, a mercearia do senhor Serafim, a sapataria do Carlinhos, a discoteca do Neves, a casa de equipamentos desportivos do senhor Fernandes, que também vendia fardas e chapéus. Aquilo de que a Poliana precisava, pedia-se ao Recoveiro. O Recoveiro não tinha nome, e na ordem dos Recoveiros, o maior era o Recoveiro de P. Não inspirava temor nem devoção. O Recoveiro
era. E o Pai o seu profeta e interlocutor. Nunca nos passou pela cabeça vê-lo, muito menos querer conhecê-lo.
Depois crescemos, a minha irmã passou a ir às compras, esbateu-se o mistério da vida. Um dia viajámos todos à cidade do P. , que tinha pontes com nomes de reis e era grave e imperscrutável. Almoçámos num restaurante com serviço Christople, criados de uniforme e pratos com comida desconhecida. Talvez o senhor que comia sozinho na mesa do fundo, e à saída veio cumprimentar, fosse o Recoveiro.