30 setembro 2005

Manda-me um sms


Cracóvia, 2005
Autor: Senhor Catavento

// andré bonirre

In Vitro


Biography (Hans le Maire, 1586-1641, maker of gold leather wallcovering)
2004, optical glass with inside laser marking, 50 x 50 cm

Autor: Harmen Brethouwer

// andré bonirre

Delft Waves


Apocalipse - Composition with SWAN (simulating waves nearshore)
(wind: NW - 315º / waves: height 17 m / velocity: 50 m/s)
2004, 100 x 100 cm, uv ink on forex, ed. 3

Autor: Harmen Brethouwer

// andré bonirre

29 setembro 2005

Manda-me um mail



Autor: Doutor Catavento, durante o exercício de um direito de saída já não penalizado

// andré bonirre

28 setembro 2005

Sugestões da Chicapardoca

jazz em Leiria,
nos dias 1 de Outubro (Gerry Hemingway em trio),
2 de Outubro (a nova formação de Dave Holland com Chris Potter, Robin Eubanks, Steve Nelson e Nate Smith)
e 4 de Outubro (quarteto de Ravi Coltrane),

sempre às 22h, no Mercado de Sant' Ana.

O caderno de notas

Numa entrevista perguntaram a Vila-Matas se era verdade que anotava num caderno os resultados dos jogos de futebol. Ele disse que não. Só os da segunda e terceira divisão. O s da primeira sabia-os de cor. Agora, no primeiro passeio que dão juntos, o doutor Pasavento, em quem Andrés desapareceu, visita Morante, internado num hospício de loucos. Almoçam junto virados para o Vesúvio, embora Morante só olhe as nuvens. Morante diz frases ambíguas ,de tal forma que o dr Pasavento não percebe se ele está de facto louco se apenas finge. Pede licença para anotar num Moleskino as réplicas de Morentes para à noite, no hotel, as poder estudar. - Que escreve você aí, numa letra tão apertada?, pergunta Morente. E nós percebemos que Andrés ainda não desapareceu porque a todo o momento lhe vêm à memória pequenas frases cuja autoria não seria fácil atribuir ao dr. Pasavento. Por exemplo, aquilo que Walter Benjamim escreveu de Walser: “podemos dizer que ao escrever se ausenta”. E sorrimos, porque a letra apertada do Moleskino de Andrés, aliás do psiquiatra Pasavento é muito semelhante aos microtextos que Morante escreve no asilo e aos microgramas que, a lápis, indecifráveis, Robert Walser gravou antes de ser internado no hospício de Waldau. E continuamos a sorrir porque sabemos que no Moleskino estão os resultados da segunda divisão, desde o início da Liga de 1987, e à mistura, nomes de jovens futebolistas promissores e de escritores estreantes e cheios de futuro.
A Igreja católica proíbe o aceso das mulheres ao sacerdócio e a cargos directivos . Penso que esta regra discriminatória é contra o preceito constitucional da igualdade das mulheres perante a lei. (art 13º 1, 2)
(Nota: os próximos 137 comentários são da Zazie, do blog Cocanha. A minha ausência de réplica nos próximos quatro dias deve-se apenas ao exercício de um direito de saída ainda não despenalizado.)

Descobertas na blogosfera

amnh'ser, o blog de david santos (da).

27 setembro 2005

Herr Pasavento junto ao Vesúvio

É impossível ler Doctor Pasavento, de Vila-Matas, e falar de outra coisa que não de herr Pasavento, o psiquiatra em quem o narrador Vila-Matasiano desaparece em Nápoles. Como leio o livro à luz de Kate Moss, nas tardes tristes em que saio dos Correios e me sento nas paragem do autocarro, cito de cor, quase sempre mal.
Ontem o dr. Pasavento falava com Morante junto ao Vesúvio. Morante é muito parecido com Walser e com o avô de Sebald. Um deles diz:
" A vida não tem sentido. O que dá o sentido à vida é a literatura."



(ver Também Um Buraco na Sombra:"Le rossignol est le premier d'entre les oiseaux qui chantent, adorent, prient, disent leur poème et leur complainte auprès de la rose, mais le rossignol ne manifeste pas de sentiments pour la rose"

Ao encontro de Kate


Autor: Nuno Moura

// andré bonirre

Um regresso feliz

Voltou a Noite, de Rui Bebiano.

26 setembro 2005

Kate


Kate, que sorte, vais deixar de usar aquela roupa foleira dos suecos e da Burberry. Se a Madame Chanel estivesse viva não havias de sair das paragens de autocarro. Todas as noites ao voltar a casa é à tua luz que leio o Vila-Matas.

25 setembro 2005

Direitos de saída



(...) en los años setenta, la lucha política fue por los derechos de entrada: la maternidad libre, convertir la natalidad en algo voluntario. Yo creo que en la década de los diez, y quizá antes, se tiene que plantear una lucha política por los derechos de salida, como la eutanasia o similares, que forman parte del proceso de envejecimiento. Que sigamos dejando en manos del azar o de la providencia nuestros últimos años de vida no tiene ningún sentido para un sujeto libre, individualista y con derechos que hemos conseguido reconocer en las constituciones. Creo que ésa es una lucha política, ciudadana, muy importante para los próximos años.


María Ángeles Durán, entrevista a El País

Escala

Nem por isso é pequena a morte de um bonsai.

Optimismo antropológico

Enrique Vila-Matas hoje, em entrevista ao El País: " Sou optimista, mas as coisas acabam sempre mal."

Advertência

Aos leitores deste blog.
Não haverá mais posts referentes à actualidade política. A blogosfera a que consigo chegar é tão autista como os partidos políticos e mais fechada que os jornais, rádio e cadeias de televisão. Os blogs importantes têm fechadas as caixas de comentários e já publicam correio de leitores. Ninguém responde a ninguém. Ninguém fala verdadeiramente com ninguém. Há temas tabu, quase sempre por más razões.
Os que desde o início preveniam que a blogosfera não podia ser melhor do que o país estavam certos. Como sempre a razão destes não me alegra.
O ambiente político está tão degradado com a aproximação das eleições, apoderou-se dos intervenientes tal frenesim, que o risco de contaminação atinge todos os que não se afastarem convenientemente.
Também por estes motivos este blog passa à sua segunda edição. É um blog literário,de diversão, intimista, com uma visão naturalista do mundo, isto é, que não rejeita o misticismo e o sobrenatural mas que os vê sob um ponto de vista de alternativa eliminativista.

24 setembro 2005

Elisabete, Imaculada e Malcolm


A praça onde vive Henry Perowne, o neurocirurgião de Sábado, fica nas traseiras da Torre dos Correios de Londres. Quando escrevia sobre o livro de Ian McEwan lembrei-me de Elisabete, uma jornalista de televisão da Rede 5, que uma vez me entrevistou sobre a privatização dos Correios. O trabalho dela era sério mas a minha participação foi lamentável e prejudicou irremediavelmente o resultado final. Fiquei com uma grande admiração por ela, a forma receosa com que fazia as perguntas, como se esperasse uma confidência que me iria expor excessivamente e disso me estivesse a advertir. A Torre dos Correios iluminada da capa de Sábado trouxe-me à memória os episódios do início da privatização, Elisabete, e a minha equívoca promoção. No momento em que era assaltado por aquela evocação recebi uma chamada e vi no visor o nome dela, o que não sucedia há largos meses. Não atendi. Não atendo chamadas. Leio os nomes, quando estão identificados, ouço o voice mail e faço eu a ligação, quando é caso disso. A conta do telefone é astronómica mas tenho a sensação de só falar com quem devo. Ouvi Elisabete dizer que queria falar sobre “um assunto que talvez fosse importante e do meu interesse”. O tipo de recado a que não respondo. Não me lembro de nenhum assunto que possa ser simultaneamente importante e do meu interesse. A modernização dos Correios está quase concluída, vamos continuar a apear o pessoal excedentário, recebi o carro e o cartão a que este ano tenho direito, faço parte do Grupo Europeu de Contactos. Nada que excite uma jornalista como Elisabete. Mas a dupla coincidência, a sobreposição da Torre com a chamada, alertou-me para a possibilidade do dia ser especial. Quando assim é fico à espera. De pé, à espera, imóvel. Não sucedeu nada que mereça ser recordado. Só algumas horas depois a agenda do telefone tocou para recordar um compromisso. A consulta da Imaculada. Era então a isso que me conduzia aquela promissora sequência. À minha busca de sentido no sem-sentido da subjectividade. Imaculada é a minha psiquiatra. É assim que lhe chamo, pelo menos. Primeiro pelo seu aspecto antiquado, com blusas de renda e cabelo apanhado. Depois porque sendo adepta das teorias cognitivas nunca me interrogou sobre sexo. Finalmente porque, desde a primeira hora, provavelmente por resposta mimética, adopto com ela uma linguagem completamente desprovida de sedução. Dizem-se coisas incríveis aos psis. Quase sempre lixo, mentiras, literatura de novela, lama das profundidades. Aquele tipo de coisas que a mente saudavelmente atirou para as caves e que a situação de entrevista tem prazer em recuperar. Passei anos a resistir, soltando o grito de Eliot a Stetson, e agora Imaculada faz parte da minha agenda semanal. Entro, cumprimentamo-nos sem nos tocarmos e ocupo o cadeirão desconfortável, a três quartos do seu sorriso terapêutico. Estar sentado para o perfil do psiquiatra cria o tipo de situação em que o paciente sente o dever de afectar uma enorme interioridade, quase sempre revolta em sofrimento. As pessoas que não estão excessivamente doentes dizem então o que julgam que um psi está habituado a ouvir. É importante agradar ao psi, justificar interiormente o preço e a maçada da consulta. O curioso é que a subjectividade me faz mal. Falar de mim, apesar de ser a pessoa mais desinteressante que conheço, é fácil. Difícil é tentar articular com alguma coerência as aquilo que sinto e faço desordenadamente, simplificar o meu caos informe em aspectos fenomenológicos que ela conheça e seja capaz de interpretar, dar à Imaculada uma linha de fuga, um nó que ela consiga desatar, para continuar a apreciá-la profissionalmente e ter um motivo para marcar a consulta da próxima semana. A hora da semana em que Imaculadame recebe passava-a eu com Malcolm, um pintor que foi meu professor de Inglês. Vivia num estúdio modesto com uma sala e um quarto. As aulas decorriam na sala, arrumada com uma mesa redonda de camilha, algumas cadeiras, um sofá de napa e um pequeno forno. Malcolm tinha sempre as mãos e as unhas manchadas de barro e tinta. Perto do Natal levei-lhe uma chaleira e passámos a tomar chá, enquanto as aulas decorriam, enfadonhas mas impregnadas de felicidade. Para tornar as aulas menos monótonas ele procurava temas ligados aos meus interesses. Mas eu não lhe consegui mostrar nenhum interesse que pudesse servir de âncora àquela hora de pasmada sonolência. A casa não tinha televisão. Um dia falei-lhe do programa que Elisabete iniciara na Rede 5, e como ele tivesse mostrado curiosidade levei um aparelho velho, onde, sem ele dar conta, mandei instalar Cabo. Passámos a ver os desafios mais importantes da Liga inglesa. Um dia vimos também o programa de Elisabete. Em horário de repetição. Malcolm gostou. Fez-me algumas perguntas para justificar os honorários e a seguir confessou-me que conhecia Elisabete de um bar chamado Q-spot, na parte alta da cidade. Era impossível. Elisabete não frequenta bares. Ele insistiu. Naquele dia a casa cheirava a barro cozido e Malcolm tinha as mãos azuis, porque tentar reproduzir a azulejaria das estações abandonadas dos caminhos-de-ferro era a sua última obsessão. À saída disse-me:
- Heitor, tenho que aumentar o preço das classes.
Eu respondi :- Força Malcolm. Será sempre mais barato que o preço de um psiquiatra.
Não era. Foi assim que abandonei Malcolm e conheci Imaculada. O meu maior problema é ter abandonado Malcolm aos jogos da Premier League e à esperança vã de encontrar Elisabete no Q-spot. A minha maior ambição é falar em inglês com Imaculada.

O poema da semana: A foto da capa



A foto da capa
Chico Buarque/1993





O retrato do artista quando moço
Não é promissora, cândida pintura
É a figura do larápio rastaqüera
Numa foto que não era para capa
Uma pose para câmera tão dura
Cujo foco toda lírica solapa

Era rala a luz naquele calabouço
Do talento a clarabóia se tampara
E o poeta que ele sempre se soubera
Claramente não mirava algum futuro
Via o tira da sinistra que rosnara
E o fotógrafo frontal batendo a chapa

É uma foto que não era para capa
Era a mera contracara, a face obscura
O retrato da paúra quando o cara
Se prepara para dar a cara a tapa

A canção da semana: Choro Bandido

Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso
São bonitas, não importa
São bonitas as canções


(Chico Buarque de Holanda)

23 setembro 2005

O começo de um filme em Cracóvia


Cris, tu és tão linda no Gehanowska.Deixa-te ficar.

Livros recomendados

Ler o que não foi escrito, de João Barrento, na Cotovia. A conferência que João Barrento levou aos Encontros do Século, promovidos pela Culturgest em 1999, encena uma conversa entre Paul Celan e Walter Benjamim.
Sobre Walter Benjamim escreveu Gershom Scholem um livro fabuloso a que chamou História de uma amizade e a editora Perspectiva (Brasil) publicou em 1975 mas que se encontra ocasionalmente em algumas livrarias.

O fim do romance


Ian McEwan conta no Guardian que, como os livros já não lhe cabiam em casa, foi para a rua oferecer romances (exemplares dos Future Classics editados pela Vintage Books e cópias americanas dos seus livros). O filho Greg era cúmplice nesta operação. As mulheres jovens paravam("todas as mulheres parecem jovens em Central London") , viam que se tratava de romances, agradeciam, começavam logo a ler e a folhear.
-Quanto é?, perguntavam desconfiados os homens. - É de graça, respondiam eles.- É um romance, não tem de pagar nada, só de o ler se assim quiser.
Só um aceitou. Ian McEwan lembrou-se de ter aprendido nas aulas de literatura, com Ian Watt, que foram as mulheres quem, no século XVIII, permitiram o aparecimento do romance e lhe moldaram o contúdo. As mulheres têm o romance inscrito no seu código genético, através das redes neuronais que permitem a cognição emocional. Quando as mulheres deixarem de ler, o romance acaba, conclui. Se o jovem sensível que aceitou o livro, e que não era senão Vila-Matas disfarçado, ler isto, a sua angústia aumentará.

Entre a cabala e a teoria da conspiração

Eu fico perturbado por Vital Moreira ficar perturbado com o “ escândalo suscitado por esse país fora pela revogação judicial da prisão preventiva que lhe tinha sido aplicada e de que ela escapara (eufemismo para fugira).”
E se Vital só retirou do Público de hoje matéria para uma teoria conspirativa aconselho-lhe a ler com mais atenção o Público de hoje: uma das acusações que impendem sobre a autarca socialista foi a de ter feito contratos fantasmas com a Resin, uma empresa de intervenções no ambiente. Os cheques da autarquia passados à Resin iriam parar a um saco azul do PS. Os dinheiros viriam do governo e de fundos comunitários e o processo seria avalizado pelo Ministério do Ambiente de Guterres (tudo segundo o Público).
Já dizia ontem Fátima Felgueiras: o engº Sócrates sabe que estou inocente.
Como: Os portugueses têm que saber distinguir entre julgamento dos Tribunais e o julgamento político e ético, declara o bastonário da Ordem dos Advogados. O julgamento político implica conhecer as acusações relativamente às quais Fátima Felgueiras irá responder (se até lá não se escapar).
Mas não é só por isso que Vital devia ler com mais atenção o Público de hoje.

Luís Januário

22 setembro 2005

Manifestação dos polícias em Belém

Manifestação histórica: pela primeira vez a Polícia e os organizadores coincidiram na contagem dos manifestantes.

A poesia é uma arma

Num dos momentos de maior tensão de Sábado um poema salva os inocentes.
O poema é de Matthew Arnold (1822-1888).

Dover Beach


The sea is calm to-night.
The tide is full, the moon lies fair
Upon the straits; -on the French coast the light
Gleams and is gone; the cliffs of England stand,
Glimmering and vast, out in the tranquil bay.
Come to the window, sweet is the night air!
Only, from the long line of spray
Where the sea meets the moon-blanch'd land,
Listen! you hear the grating roar
Of pebbles which the waves draw back, and fling,
At their return, up the high strand,
Begin, and cease, and then again begin,
With tremulous cadence slow, and bring
The eternal note of sadness in.

Sophocles long ago
Heard it on the Aegean, and it brought
Into his mind the turbid ebb and flow
Of human misery; we
Find also in the sound a thought,
Hearing it by this distant northern sea.

The Sea of Faith
Was once, too, at the full, and round earth's shore
Lay like the folds of a bright girdle furl'd.
But now I only hear
Its melancholy, long, withdrawing roar,
Retreating, to the breath
Of the night-wind, down the vast edges drear
And naked shingles of the world.

Ah, love, let us be true
To one another! for the world, which seems
To lie before us like a land of dreams,
So various, so beautiful, so new,
Hath really neither joy, nor love, nor light,
Nor certitude, nor peace, nor help for pain;
And we are here as on a darkling plain
Swept with confused alarms of struggle and flight,
Where ignorant armies clash by night.

Sábado, de Ian McEwan



Sábado é o último livro de Ian McEwan. Passou dois anos com um neurocirurgião e os médicos de um hospital de Londres e criou uma personagem, Henry Perowne, casado com uma jornalista, com dois filhos talentosos e naquela altura da vida em que, insensivelmente, se começa a morrer. A acção inicia-se num sábado especial. O dia em que as ruas de Londres se encheram com a mega-manifestação contra a guerra do Iraque. Henry acorda eufórico de madrugada e da janela do seu apartamento, junto à torre dos correios, assiste ao despenhamento de um avião. Esse sinal, de um perigo que não chega a concretizar-se, vai atravessar o livro. O tema não podia ser mais actual: a ameaça pendente de um ataque terrorista já se concretizou, no metro de Londres.( A esse propósito McEwan escreveu numa crónica do Guardian: And we will face again that deal we must constantly make and remake with the state - how much power must we grant Leviathan, how much freedom will we be asked to trade for our security?) As várias posições sobre a Guerra passam no livro e na cabeça de Henry, como passa o dia e a manifestação engrossa, desfila, ocupa as ruas e os ecrãs de televisão e finalmente se dispersa.
Nesse sábado a família junta-se, e um acontecimento particular vai pô-la à prova.
Ian Mc Ewan é um excelente escritor, o trabalho de pesquisa junto dos médicos foi perfeito, a descrição das intervenções cirúrgicas é excelente. Todos gostaríamos, na infelicidade de uma patologia neurocirúrgica, poder encontrar um Henry Perowne. pela frente.
Há no livro momentos de grande mestria. Desde logo a longa cena inicial em que o médico acorda de madrugada e descreve, ao largo, o avião que se despenha e os seus próprios estados de alma, com a sabedoria de um neurobiólogo. A evocação da mãe quando jovem nadadora é das melhores página deste verão. A cena em que o dia atinge o seu clímax e toda a violência latente se materializa, igualmente.

Duas coisas me irritaram ao longo da leitura: uma é a obsessão fisicalista. A ideia de que um informado e inteligente investigador das neurociencias pode ver tudo assim, claramente iluminado pelo estado actual dos conhecimentos, a consciência tão imediatamente ligada à oscilação neuronal sincronizada a 40Hz, os neuromediadores sempre tão presentes, os deficits da mãe tão parecidos aos do livro, as transformações que sente tão bem explicadas pela fisiologia do envelhecimento.
A segunda coisa que me irrita não digo. Isto é ainda não disse a ninguém até agora. Houve alguém que descobriu logo. Mas não foi exactamente por esses motivos, Cristina.

Um fotógrafo luminoso


Autor: Alberto Alvim

// andré bonirre

Olho por olho?

Parece-me um ligeiro exagero exigir aos israelitas que destruam as sinagogas para os anti-israelitas não capitalizarem o espectáculo das sinagogas queimadas. Parece-me um ligeiro exagero comparar uma mesquita degradada, abandonada, entregue à restauração, com uma sinagoga destruída com júbilo. Parece-me uma operação deslocada fazer agora a contabilidade das igrejas e mesquitas destruídas no passado pelos israelitas quando estão quentes as cinzas das sinagogas de Gaza.

A Feira

EPC, o apoiante de Carrilho, lá reagiu oito dias depois. E veio a falar de cultura, o sem vergonha. Devia furar os olhos, ir para o deserto e deixar passar oito anos. Depois podia voltar e falar de cultura. Hoje, lendo este EPC parece mais fácil encontrar poesia num empreiteiro que neste peregrino de resorts e nos amigos vaporosos.

A dor vicariante

Numa das últimas Lancet (1), um psiquiatra canadiano escreve sobre a Dor vicariante em resposta aos desastres globais. Parece que somos capazes de estabelecer empatia com os nossos semelhante que foram vítimas do 11 de Setembro, do terror madrileno, do metro de Londres, do tsunami e do ciclone Katrina. Um sentimento de dor e perda, semelhante ao que sentimos com a perda de alguém próximo. Como este fenómeno, de participar de uma tragédia que não vivemos e não nos afectou pessoalmente, é recente, a sua fenomenologia não está ainda estudada. Mas parece que o facto de se tratar de uma desastre de grandes proporções, não antecipado, súbito, com muitos mortos e feridos, está associado a dor, ansiedade, medo, vulnerabilidade e perda da segurança. Um dos factores que possibilita esta resposta emocional complexa é a proximidade provocada pelos relatos jornalísticos, sobretudo televisivos. Após New Orleans, alguns comentadores escreveram que os jornalistas tinham feito bem o seu trabalho. Expuseram-se, correram riscos de vida, passaram sono e fome, escreveram ou captaram imagens ao lado das vítimas. Possibilitaram uma tomada de consciência nacional e depois mundial. Permitiram-nos que nos identificássemos com as vítimas. Aceleraram a intervenção do presidente, obrigaram-no a tomar medidas adequadas à dimensão do desastre. A reacção saudável da opinião pública fez demitir alguns dos incompetentes, mobilizar a resposta do Estado americano e da comunidade internacional. O montante das dádivas pessoais para as vítimas do tsunami, por exemplo, foi de cerca de 1,2 mil milhões de dólares ( em contraste com os 200 a 300 milhões de dólares que o mundo gasta anualmente para controlar a malária, doença que mata anualmente 1-2 milhões de pessoas). Aqueles que sentiram dor, sofrimento e luto pelas vítimas de New Orleans estavam a reagir adequadamente. Todos os grandes momentos da humanidade se deram assim. Quando sentimos os outros como parte de nós. Incharam-nos nos ossos as dores dos afogados, chorámos com as famílias separadas, cheirámos as águas putrefactas, as casa arrancadas ao chão. Quando sentirmos assim as mortes de SIDA, percebermos que 1% dos orçamentos militares chegariam para um plano eficaz de combate à SIDA nos países menos desenvolvidos ( 8000 mil mortes em 2004), seremos mais capazes de desarmar os exércitos e obrigar os nossos governos a executar políticas consequentes. Sem jornalistas, a destruição de New Orleans seria igual à do princípio do século vinte, ao massacre dos grandes lagos, à Shoah durante os anos da guerra.
Como somos todos diferentes há sempre quem se identifique com os que conseguiram fugir, porque perceberam melhor a informação, a receberam mais cedo, vivem em sítios mais altos, chegam mais depressa às vias de fuga, têm carros mais rápidos. E até há quem se identifique com Bush e Cheney, ou com o senhor que dava informações desactualizadas e conselhos impossíveis de seguir. Até há quem ache que se devia mostrar apenas a Natureza, ou a mulher desolada na casa sem tecto só porque era branca. Como se a mulher branca não fosse nossa. Nós preferimos a nossa doença, esta dor vicariante pós catástrofe e agradecemos aos jornalistas que nos permitiram estar lá.

(1)The Lancet, HM Chochinov, 28 Aug 2005, 366:697-8

21 setembro 2005

Mensagens do futuro



"Ele recebera mensagens do futuro. Pelo que me disse era algo que vinha a acontecer há algum tempo. Não teria havido trauma ou acontecimento potencialmente endutor de tal anomalia. Ele recebia as mensagens e lá ia ignorando ou aceitando o seu conteúdo consoante o que a sua atormentada personalidade escolhesse. Por vezes negava completamente algo ou simplesmente dizia que era um simples sonho. Às vezes o futuro era um mundo definhante, sem astronautas, sem roupas de alumínio ou migrações massivas interplanetárias. Era sujo e seco... Como aqueles lagos cinzentos de lama seca que forma puzzels bizarros. Ele não era dado a sentimentalismos, mas isto de saber que andamos aqui só para aquecer, mesmo que um milhão de anos no futuro, não agrada a ninguém.

Algumas revelações que ele me contava eram perdidas por mim numa onda de quase total alheamento. Desde o cliché da mancha da parede àquelas situações em que pensava "Merda, o imposto era para pagar até hoje", passando pela azia que me provocara a lasanha do almoço. Ficou-me, no entanto, cravada no cérebro a ideia de que a preservação do panda iria criar um espécie geneticamente modificada altamente procriadora e imune a todas as maleitas que os apoquentam actualmente. Essa espécie iria criar um praga global que iria, em primeira instância, colocar o bambu à beira da extinção."


Texto e foto: Castor

// andré bonirre

Arte evolucionária


NEvAR – Neuro Evolutionary Art

Autor: Penousal Machado

// andré bonirre

20 setembro 2005

Extinção

Já a águia apanhou o tritão e o bufo. As palavras doem até ao seu insuportável sentido literal. Por detrás das estrelas um bilião de estrelas. Tivémos olhos para as ver mas acumulava-se tanta coisa inútil e perigosa. Os melhores já estavam a desaparecer.

Comboio Rápido com destino

um silêncio no sangue uma paragem
uma reunião das sombras ofuscante
um bolçar para dentro uma viagem
do tempo todo junto num instante

um derrame de esperança acumulada
as traqueias anunciando o coma
os comboios na direcção errada
trinta aeons de heresia e seu pleroma

a noite que não precede a madrugada
um filho no sonho a abandonar-me
uma casa na veiga o labirinto
um charuto com a ponta incendiada
o espanto de não ter soado o alarme
ao saber que morro ou que te minto

Rasga-me toda


da série “sexo, sorrisos e fotografia digital”

Autor: Gica

// andré bonirre

A noite e o riso

Na Alemanha a direita não conseguiu votos suficientes para formar uma coligação e não se sabe se a esquerda o conseguirá. Durão Barroso, apela aos políticos alemães para que compreendam a gravidade do momento e encontrem uma solução estável. O enviado da Antena Um entrevista dois deputados angolanos, observadores às eleições alemãs. Uma confusão, diz um deles. E ri-se. Não para de se rir, está a ter um ataque de riso. O colega saiu de campo, possivelmente para se rir à vontade ou porque a câmara fez aproximação ao mais novo, a rir-se e a dizer que se trata de uma grande confusão. É de noite em Berlim, eles riem-se, e o riso deles é uma coisa insuportável.

Lowly Origin

" It seems to me, that man with all his noble qualities- with his god-like intellect wich has penetrate into the movements and constitution of the solar sistem- with all his exaltated powers- Man still bears his bodily frame the indelible stamp of his lowly origin"

Charles Darwin, The Descent of Man, (1871)

19 setembro 2005

A caminho da felicidade seja lá ela onde for



Autor: J. Condinho

// andré bonirre

17 setembro 2005

Manifesto para a desistência de Mário Soares

Nós, cidadãos eleitores, admiradores do Dr. Mário Soares e seus potenciais eleitores , que de forma mais ou menos entusiástica reconhecemos o seu papel na luta contra a ditadura e na construção do estado democrático, recordados da elevação dos seus mandatos presidenciais e tendo ainda fresca na memória o clima verdadeiramente nacional e patriótico da comemoração do seu aniversário, pedimos ao Dr. Soares e aos elementos mais lúcidos da sua candidatura a coragem necessária para desistir.
As portuguesas e os portugueses precisam do Dr. Soares onde ele estava. Generoso, informado, atento, no despacho da Fundação, em entrevistas e conferências onde discorra sobre a realidade do país e do mundo sem a avidez dos que agem por táctica e com a serenidade de quem não tem outra estratégia que a procura da verdade.
É aí que o queremos continuar a ver. Nem nós, nem o senhor precisa de ouvir a arquitecta Roseta dizer de si o que Mafoma não disse do toucinho. Nem de assistir à multiplicação das estátuas ao autor da Praça da Canção, à sua inclusão no segundo volume da Antologia Século de Ouro. Nem de ler o que a candidatura do Prof. Cavaco já começou a desenterrar das lixeiras. Nem de assistir, ao longo de quatro longos meses, ao esforço militante de Louçã e de Jerónimo.
Em nome da qualidade do ambiente, da esperança, mesmo que infundada, no futuro, do convívio intergeracional, da história de Portugal que os meninos futuros hão-de aprender, desista Dr. Mário Soares.
Não houve e poderá não haver tempo para uma alternativa à esquerda para o Prof. Cavaco? É lamentável. Mas o senhor não é essa alternativa. Se ela existe irá aparecer, a esquerda e a mulher ou o homem que a possam representar. E se não aparecer tanto pior e tanto melhor. Assim todos saberão aquilo com que verdadeiramente podem contar.

Luís Januário, eleitor 4288, freguesia dos Olivais, Coimbra

Os mecanismos de defesa

recolho-me. mantenho-me imóvel, para sustentar o que dói.

A insónia não vibrava com a nitidez dos sinos, dos cristais mas era o lado esquerdo que tinha esmagado. Alguma parte do lado esquerdo não cabia no seu espaço anterior e era ela, ou os vizinhos, quem produzia aquele qualia extraordinário, intenso de tal modo que não podia acreditar que fosse continuar assim, tão súbito e ameaçador que não me tinha dado tempo para gritar. Na corte dos anjos também não me acreditavam. -São gases, disseram-me. Contam que frequentemente chegam às urgências dos hospitais infelizes, dobrados sobre o lado esquerdo, acreditando ter chegado a hora do seu coração, para depois serem desqualificados, às vezes sem exames complementares, e reenviadas para casa com o opróbrio de um diagnóstico das vísceras menores. Os gases não pesam. E a mim pesava-me um lugar recôndito do lado esquerdo, da intimidade do lado esquerdo. Não era excessivamente alto, embora parecesse transmitir-se para o coração e o mantivesse encolhido, a bater apenas o suficiente para poder continuar a existir, numa oscilação sistólica que o pulso não registava. Não era nas costas, embora nas costas, no lado esquerdo, junto à omoplata, fosse uma faca, ainda só pressão intolerável, como se a mão que a despediu se tivesse arrependido ao contacto com o osso da omoplata, ou sádica, quisesse que o qualia fosse apreciado longamente antes do alívio da penetração. Não era a dor de um apêndice que apodrece e rompe. O apêndice é do lado direito e o lado direito tinha-se apagado, como se para aquele combate chegasse a metade mais gasta do meu corpo. Aquilo que crescia devia sair, ou encontrar um corpo que não se revoltasse. O corpo é como um campo de batalha. O invasor encontra resistência e há imenso sofrimento enquanto a revolta persiste. Depois tudo se aquieta, quando uma nova ordem se instala. Quem era o invasor? Quem por mim, se obstinava a resistir? Em nome de quê? Eu tinha ouvido a advertência que Maria Gabriela Llansol deu, num diário de 1975, aos pobres de Lisboa: - Abandonai a ideia de justiça. Interessava-me lá o invasor. Talvez se me não mexesse, como os covardes nas guerras do passado, ele passasse ao lado. Mas já me tinha visto. Estava dentro de mim, talvez à procura de uma saída. Encarcerado entre um pilar do diafragma e os feixes altos do psoas. A dor resplandecente engolia a noite, hora a hora. Uma parte de mim ia escapar, e em lugar de me dedicar a ela ou de lhe dar o afecto que merecia por se portar tão bem, odiava-a pela complacência, pelo silêncio acomodado. Enquanto morria pelo lado esquerdo recriminava o lado que me sobrevivia.



Créditos: Calamity Spot; Carlos de Oliveira; Maria Gabriela Llansol ; dados de autópsia.

16 setembro 2005

Dona Berta



"Dona Berta é, a um tempo, a designação do lugar onde elas foram recolhidas e o espírito desse lugar."

Autor: A.Reis
Fotografias Polaroid

// andré bonirre

Na direcção do mar

Carrilho liquidou ontem o que restava do debate político. Com um ar agastado de permanente acusação, como se o Outro fosse a incarnação do mal, contando pelos dedos as malfeitorias do adversário, o pensamento flutuante a tentar meter as buchas que a equipa eleitoral tinha preparado (estilo:"você é o candidato de uma facção do seu partido"), excessivamente activado, impaciente, zangado. Um homem horrível, distante do inefável ministro da cultura de Guterres. Num momento do debate pensei que aquela truculência talvez agradasse aos muito jovens eleitores. Mas os que estavam perto de mim estavam tristes e aterrados. Carrilho é da estirpe do Major e do autarca da Quinta das Celebridades. O drama eleitoral de Carrilho é que veio cedo demais. Lisboa ainda não é Gondomar ou o Marco. A cidade mestiça, cosmopolita, moura, tolerante, ainda tem peso eleitoral. Que haja um Partido que suporte candidatos destes ( e não só em Lisboa ) é dramático. Mas esse drama é parte da nossa vida, podemos com ele, é fácil deixá-los a falar, fechar a televisão, ler Enrique Vila-Matas e o Doctor Pasavento, por exemplo, junto ao rio, como fazia um personagem de Vailland, até que eles passam, Carrilho e os outros , na direcção do mar.

Os charutos de Gonçalves Pereira e Vitorino

Vital Moreira pergunta "se os blogs que anunciaram a contratação de Vitorino já fizeram menção desta notícia". Faço menção desta notícia e agradeço a Vital a referência.

Solitário como nós

Filipe, quando lá fores diz-me, por favor. Quero ir contigo.

15 setembro 2005

Privatizar o Governo

Um amigo contou-me que, há uns anos, trabalhando no ministério da D. fez parte da equipa ministerial encarregada de discutir com a Empresa M. um contrato de aluguer de serviços. Do lado da Empresa M. estava um ex-ministro, conhecido pela capacidade combativa e pelos dotes histriónicos, que oscilavam entre a afabilidade e a rudeza. Do lado do ministério um grupo de jovens com instruções tíbias. O contrato permitiu que a Empresa M. recuperasse da sua situação financeira. Os benefícios do serviço alugado nunca foram objecto de avaliação independente.
Agora leio que António Vitorino foi contratado para integrar a representação de um ministério numa negociação bem mais importante que a que refiro. Trata-se de um progresso evidente. Vitorino teve a passadeira estendida para vir tomar conta do PS e do governo mas tinha outros desígnios. Aconselhar os investidores espanhóis através de um gabinete privado. A importância de Vitorino advém-lhe das suas capacidades naturais e do imenso capital de conhecimentos e relações humanas que adquiriu enquanto Comissário europeu, um cargo da burocracia da União pago pelos contribuintes europeus. Que ele tenha decidido pôr os seus dotes ao serviço de um Escritório de advogados é um assunto pessoal que só ao próprio diz respeito. Mas a solução encontrada afigura-se-me boa. O Prof. Gonçalves Pereira queixava-se, quando era ministro, de que não ganhava para os charutos. Agora o governo pode, sempre que uma questão verdadeiramente importante de Negócios Estrangeiros estiver em causa, alugar o Prof. André Gonçalves Pereira e pagar os seus serviços de forma adequada.

Minimally Invasive


Autor: 2001 © Paulo Fernandes
Nome da foto: A rosa
Data: 2001.Nov.16
Suporte original: Película
Espectáculo: Performance "Minimally Invasive", da autoria de Paulo Henriques, no Teatro José Lúcio da Silva, em Leiria

// andré bonirre

O verdadeiro nome

O verdadeiro nome d'A Natureza do Mal é Das mais baixas origens.

14 setembro 2005

Camuflagens e outras rendas - colagens


Isabel Ferrand, soldadinhos de papel sobre capolana

// andré bonirre

Um blogue chamado América


Chute, a.k.a. Flute(de Pan), um rapaz de Caracas, abriu o seu blogue e está esperando visitas.
Do mesmo continente ver também o Diego: Chancharras Mancharras.

A mala



Nesta viagem fui procurar Lúcia a Strasbourg. Estava em Milão a trabalhar num programa destinado a transformar as estações de Correios em pontos multimedia, tinha o fim-de-semana livre e telefonei-lhe. Ela atendeu e disse que sim. Anulava um programa com as amigas, a colega com quem partilhava a casa ia sair, eu podia lá ficar, se quisesse. Fui a uma agência. Havia voos directos para Strasbourg. Demoravam pouco mais de uma hora. Três horas e meia de comboio. Era rápido de mais para mim. Comprei um bilhete de autocarro para Zeebrook com escala em Strasbourg. Viajei de noite. Não consegui dormir. Em Menton entrou uma japonesa com uma criança muito pequena ao colo. Só falava japonês, tinha o nome do destino escrito numa folha de papel. Mostrou-mo. Disse-lhe que sim várias vezes e baixei a cabeça. Sim, percebo o que quer, sim, conheço essa cidade, sim, aviso-a quando chegarmos. Pouco tempo depois a criança adormeceu. A cabeça da criança veio pousar-me no braço e a mãe não a retirou, o que interpretei como um sinal de grande confiança. Quando a imobilidade se tornou insuportável, improvisei uma almofada com um blusão e retirei o meu braço devagar, ao mesmo tempo que tocava levemente na cabeça da criança e olhava com ar de agradecimento para a mulher. Ela nunca devolvia o olhar, mas não me preocupava porque lera na Amélie Nothomb que as mulheres japoneses não olham nos olhos. De cada vez que o autocarro parava ela tirava o papel da carteira, mostrava-mo com apreensão. Eu dizia-lhe que não e abanava a cabeça, tentava sossegá-la com um gesto, abanava a cabeça e depois voltava a fazer gestos que lhe queriam demonstrar um perfeito conhecimento do trajecto, das paragens intermédias e da minha competência para a avisar do seu destino. O autocarro tinha as luzes apagadas e avançava depressa demais para a minha expectativa. Imaginava-me como um peregrino. Uma peregrinação leva o seu tempo e deve ter um grau de dificuldade proporcional à fé e ao lugar de culto. Eu queria demorar a chegar a Strasbourg. E chegar cansado, para não sentir excessivamente. Tentava pensar muito em Lúcia. A noite de verão, a progressão silenciosa do autocarro, a tensão da mulher japonesa na cadeira do lado, a cabeça da criança encostada ao meu braço. Mas só conseguia pensar em coisas absurdas. Com quem se iria encontrar a mulher japonesa, que emprego teria, o que faria na Europa, sem conhecer uma só das línguas indo-europeias, quem lhes escreveu o nome da cidade do destino. Mas sobretudo pensava se a carteira Louis Vouitton era verdadeira ou de contrafacção. Uma vez em que me surpreendera pela venda de imitações que me pareciam perfeitas, num mercado de rua em Roma, perguntei a L., uma elegante com quem costumo viajar, como é que se distinguiam os originais. Pela classe, respondeu-me ela. Nunca percebi esses pormenores que fazem a diferença. Passei a olhar as carteiras à procura da classe das mulheres e a olhar as mulheres em busca da classe da carteira. Esta questão parece fútil. Mas foi Curling, um escritor muito sério, quem disse que o comunismo caiu não porque os homens quisessem usar fatos, mas porque queriam usar fatos Armani. Essa incapacidade em distinguir os discretos sinais da classe preocupou-me em diversas épocas da vida e seguramente na viagem de Milão a Zeebrook, com escala em Strasbourg, onde estava Lúcia. Não distinguir as ruivas, quando, ultrapassada a extrema juventude, são só mulheres sardentas. Não distinguir as louras da multidão de mulheres que descolora os cabelos. Não distinguir uma mulher que leu A Morte em Veneza de outra que só viu o filme. Não distinguir a que pratica a verdade da que tem falta de imaginação, a que precisa de ajuda da que veste a pele da inocência, a corajosa da destemida, a reservada da destituída de dotes. Se há mulheres com classe uma delas é Lúcia, disso estava seguro. Ainda me lembrava da forma como ela patinara em Viseu. É fácil patinar com classe em New York, com os arranha céus e a memória do cinema por detrás. Difícil mesmo é patinar no Palácio de gelo de Viseu, contra os patins de aluguer e as famílias que olham com o mesmo olhar que dedicaram às montras das lojas onde nunca entrarão e ao jogo de futebol com a sua equipa eternamente perdedora. Lúcia tinha classe, por isso me deixara, por isso me ia receber fingindo um contentamento que não podia sentir. Outra mulher que tinha classe era a japonesa. Apesar da quase obscuridade do autocarro, as luzes da estrada iluminavam-lhe a cara aos clarões e via-lhe a boca maquilhada em rouge absolu, o pulso fino, o queixo apontado para o alto, a parte de trás do pescoço, cuidadosamente a descoberto, realçada por uma gola que se abria atrás e se desdobrava como um estojo apresentando cuidadosamente a sua preciosidade.
A menina japonesa dorme sobre o meu blusão. Em que idade se começa a sonhar no Japão. Parece sorrir. As crianças japonesas têm, incrivelmente desenvolvidas, as marcas neoténicas que asseguram a protecção dos juvenis. Face arredondada, malares salientes, queixo doce. Está a meu cargo nesta noite, ela e o seu sono, pelas estradas que cruzam o centro da Europa em direcção aos barcos do Norte. Há-de sair no seu destino, numa paragem que assinalarei à mãe, antes de amanhecer e antes do rouge absolu lhe desmaiar nos lábios. Talvez esta seja, para a mulher japonesa e a sua filha, uma viajem única na vida. Como é que vou saber. Por enquanto é só uma palavra impressa numa folha de papel, uma carteira clara, e depois a estação dos autocarros de Strasbourg, sábado de manhã, numa cidade que ignora ser sede de peregrinação.

13 setembro 2005

Camuflagens e outras rendas - colagens



Exposição de Isabel Ferrand,
na Galeria Santa Clara - Coimbra,
sábado, às 18 horas.

// andré bonirre

12 setembro 2005

Blank absolu

O Francisco diz que às vezes olha para o seu blog e vê blank, blank absoluto. Que saiba ninguém lhe pediu uma autocrítica tão radical.

As Sugestões da Chica Pardoca


A segunda metade da entrevista a Caetano Veloso por Alex Lerner, no canal GNT, sábado, dia 17 Set., às 22h. Mesmo não se tendo visto a primeira parte, transmitida esta semana, vale a pena.

Cartão de eleitor

Antes de viajar tiro da mochila os livros que não irei ler, os cadernos com outros destinos que as notas de viagem, os lápis (E a afiadeira? Nunca encontro a afiadeira). Alivio a carteira dos cartões que não utilizo. Eleitor, utente do Serviço de Saúde, sócio das várias agremiações culturais e dos Bombeiros Voluntários, beneficiário dos serviços sociais da PT. Tiro as chaves de casa, da garagem, do correio, as chaves da repartição. Deito fora os analgésicos, os anti-histamínicos e os anti-depressivos que ultrapassaram o prazo de validade. Vejo com apreensão as contas por pagar e certifico-me de que os prazos não acabarão antes do regresso. Guardo tudo no lugar mais óbvio e mais seguro. Nas viagens não preciso de quase nada. Levo portátil e escrevo coisas de que me arrependo, íntimas mas de um outro. Geralmente dos pares com quem me sento nos cafés e nos bancos de jardim, trocando frases que não entendo. Dá-me um beijo, ou ainda estás amuada? Dou-te meio. Meio quê? Meio beijo. Mas eu contento-me com meio beijo teu, com meia boca tua. Fico a olhar aquela meia boca, a invejar o amor económico de um rapaz cujo nome não cheguei a ouvir. É indecente ouvir as conversas nos cafés, mesmo se se está em viagem, em terras onde ninguém diz bom-dia. Mais indecente é viver as vidas deles. Às vezes tenho de escrever. Já não uso cadernos. Para o tipo de coisas que quero registar chega a conta do restaurante, o verso do bilhete do museu. (E os lápis dos hotéis. Vivo na abundância de lápis e na falta angustiante de afiadeiras.) No regresso percebo que perdi todos os cartões. Os sítios seguros não eram tão óbvios afinal. Vou ter de pedir segundas vias. Pagar juros, mandar ligar a água, ir envergonhado ao Bonirre, que é metódico e tem as chaves de segurança, arrombar a caixa do correio. O cartão de eleitor não. Não voto mais. Pelo menos nas presidenciais.

Pela verdura



// andré bonirre

11 setembro 2005

A sharía islâmica no Canadá.

Desde 1991 que, no Canadá, algumas comunidades ganharam a possibilidade de resolver as suas disputas em tribunais especiais com critérios inspirados pela religião . Agora a comunidade islâmica reclama o mesmo direito. A questão é séria e tem a ver com o multiculturalismo de que o Canadá francófono se orgulha. Mas o multiculturalismo só é possível no interior de uma sociedade laica que aplique a todos os cidadãos os mesmos Códigos. Assustadas com a lapidação das adúlteras e a amputação dos clítoris algumas associações estão a reagir. A entrega das mulheres muçulmanas de Ontário a tribunais islâmicos, mesmo que revisionistas, é um cenário de pesadelo. Se este conceito tribal de multiculturalismo pega, a minoria laica ainda terá que meter requerimento quando pretender que se lhe aplique o direito comum.

(este assunto foi igualmente objecto de um post no blog geosapiens)

Os homens do Mal: Marcello Mastroianni



Um dos melhores actores italianos conta que estava a ser dirigido por Fellini e que, volta e meia, este lhe dizia: - Merda, faz-me cá falta o Mastroianni.
Acontece-me o mesmo.


Com Anita Eckberg, na Fontana de Trevi

Os homens do Mal: James Watson e Francis Crick



Descobriram o Código Genético, a maior proeza desde A Origem das Espécies. Crick morreu. Mas com 77 anos, James Watson ainda tem opiniões que abalam os hipócritas do pensamento dominante deste início do século XXI. Hoje no El País.

Mulheres, mais um esforço

- Qual é o problema com Angela Merckel?
- As mulheres na política têm um problema. Tocadas pela maldição de Midas vão ficando cada vez mais parecidas com os homens. Mas falta-lhes sempre qualquer coisa. Não conseguem ser tão más como eles.
- É mais uma vez a discriminação de género. As mulheres têm que ser mesmo muito más para poderem ser um bocadinho pior do que os homens.

Europa mais fraca


Imagens de um Chirac diminuído a sair do Hospital. Os amigos americanos devem exultar. Com Dominique de Villepin a sair do teste dos 100 dias de governo, mas ainda sem imagem presidencial, a França fica entregue a Sarkovski ou a um dos frouxos barões socialistas.

A Natureza e o Dique (cont...)

A imprensa americana de fim-de-semana vem cheia de informações, textos, comentários, opiniões anti-americanas. Para equilibrar, o NYT e o Washington Post estão a pensar contratar o José Pacheco Pereira e o Francisco Manuel Viegas. No caso do Viegas há um pequeno problema contratual: não sabem se ele se reclama um pequeno ou médio comentador.(link para o artigo de Viegas no JN de sexta)

10 setembro 2005

Uma fotografia plástica


ceci est une fleur

// andré bonirre

09 setembro 2005

Sophie Marceau


Na verdade não gosto de Sophie Marceau. Quem gosta é o Andrzej Żuławski . Foi o que ele me disse, em Lviv, embora a realidade em Lviv necessite de confirmação. Era a musa dele. Uma musa menor, dizem. O homem era um chato, fazia filmes intragáveis, uma espécie de nouvelle vague ressuscitada com laivos de misticismo, dizem. Mas uma musa menor produz sempre resultados decepcionantes? Os grandes criadores foram iluminados por clarões ? Retiraram deles apenas uma fracção da luz ? Lou Andreas Salomé era uma mulher horrível. O sofrimento que despertou a Rilke, a Nietzsche e a uma porção de outros homens que tiveram a desgraça de a cruzar, foi enorme. Apesar de tudo deu origem a poemas e reflexões que nenhum amor feliz inspirou. Gala deixou Paul Éluard às portas do desespero, e foi aí que escreveu os seus melhores poemas. Sophie Marceau é vulgar. Nem o Bruno (Avatares) a veio defender. Ele que se emocionou quando ela em Cannes, este ano. Mas Sophie Marceau só pode desencadear emoções de curta duração. O olhar não tem profundidade, a boca é demasiado explícita, a inclinação da cabeça ameaça sempre com um calendário de motorista TIR. Concordo. Mas era a musa de Andrzej Żuławski . Vão-lhe dizer a ele, se tiverem coragem. E o que ganham em dizer a um homem a mulher que é a musa que têm. Foi há quatro anos, também dizem . Sabe-se lá o tempo que uma musa permanece na cabeça de um cineasta sem pátria.

Vindima fácil em Glória, Ribatejo



// andré bonirre

As Sugestões da Chicapardoca



Santa Milonga, um CD de um tipo argentino chamado Daniel Melingo (ed. Mañana, 2004) Produzido por uma editora pequena, de uns tipos argentinos, sediada em França.
O catálogo só tem 3 discos...O site da editora é www.mananamusic.com. Pode-se dar uma espreitadela e até ouvir um cheirinho do CD do Melingo.

A Natureza e o dique (ao JPP)

A Natureza é a canção que os fracos ouvem na desgraça. A natureza é o ópio do povo. Quando a Natureza inunda a Baixa os da Acrópole dizem : a Natureza é cruel.
A Natureza é a missa, o dique é o laboratório de investigação.
O dique é a inteligência, a vacina, o antibiótico de espectro reduzido, o soluto de rehidratação.
A Natureza é o mistério da vida, o dique é o código genético. A Natureza é a escravatura e o dique são os blues.
A Natureza é a Segurança Social, o dique é a Revolução Social.
A Natureza é a Igreja. O dique são os jornalistas livres.
A Natureza é toda poderosa e o dique frágil. Mas devemos restaurar todos os diques.

Dique, diz

Para José Pacheco Pereira (Historiador*, Público de ontem , link não disponível) há culpados para o desastre de New Orleans. A natureza e a os anti americanos primários. A natureza e os herdeiros do Cominform e do gaullismo. E os jornalistas claro. Tal como os socialistas que só viram os fogos do verão nos noticiários, Pacheco vê New Orleans através dos “mil e um comentadores tendenciosos”. Como na batalha da Maratona, eles gostariam de matar o mensageiro, ou de o pôr a dar a notícia de maneira correcta: muito vento, muita água, sem diques por favor, dique é uma palavra que a esquerda radical e os burocratas perversos da União Europeia inventaram, dique é hoje uma palavra que tresanda a ideologia, dique é ideologia , dique é pobre, é estado mínimo, dique é Mc Donald, diz dique e Pacheco ouve hipocrisia.

08 setembro 2005

O cavalinho do Fernando, Matilde e Ana


Quem fez o cavalinho foi um artista chamado Fernando Luís e os seus alunos da ARCA. O cavalo foi feito para uma história infantil escrita pela Matilde para a Ana (http://jambalaika.blogspot.com). Um dia, o Fernando ofereceu o cavalo ao sítio das picas. O cavalo era manso. Os meninos saltavam-lhe para o lombo, enterravam as esporas, queriam sempre andar a galope. As meninas afagavam a crina, mas logo em seguida, com aquelas unhas que já são grandes e não crescem, arranhavam o pescoço e as orelhas do cavalo. Quando ele ajoelhou já ninguém se importava. Só a Matilde. Se ninguém se importa quando um cavalo envelhece e morre, então a morte de um cavalo não é importante. Só para a Matilde. Então tiraram o cavalo do sítio das picas e, como não cabia no depósito, levaram-no para um pátio. Ali estava ele, agonizando no pátio, quando a Fátima, o Bonirre, o Jica e Castor o fotografaram, julgando terem encontrado Douglas, o cavalinho canadiano. Era o cavalo do Fernando, da Matilde e da Ana, um animal que já não é deste tempo. As primeiras chuvas vão abrir-lhe o ventre e ao fim do dia hão-de mijar-lhe em cima.

Alopatia do prazer sensível


// andré bonirre

Esquecia-me de dizer

Outra coisa pouco inteligente: os camponeses do Baixo Mondego que se cuidem. Os habitantes das zonas baixas que vão de Coimbra a Montemor que se preparem. Os governos não repararam os diques danificados em 2001, nem o vão fazer porque “pela primeira vez temos uma política de contenção e, pelo menos para já, não vamos fazer o que o que os outros deviam ter feito (dar verbas ao Instituto Nacional das Águas)”(Ministro do Ambiente, segunda feira em Coimbra).


PS: Num país atento, ou pelo menos no país do Lopes, enormidades destas teriam pelo menos feito levantar Sampaio.

Esquecia-me de dizer

Francisco José Viegas achou o artigo de opinião de Rosas sobre o Katrina pouco inteligente. Como FJV não escreveu até agora sobre a tragédia de New Orleans sentimo-nos como FJV julga que Rosas estaria ao escrever. O artigo de Rosas no Público (link impossível porque o sôr Zé Manel Furnandes retirou o jornal da free net) é aquilo que se esperava que ele escrevesse: uma invectiva contra Bush e as políticas que abandonam os cidadãos mais pobres aos mercados. A questão é que Rosas a escreve no dia em que a retirada das águas põe a descoberto os cadáveres sem conta: “pobres , negros, pobres, negros”. Se a revolta de Rosas é pouco inteligente então há momentos em que os inteligentes se deviam esquecer de dizer, ou que dissessem pelo menos qualquer coisinha que aquecesse.

PS: Charles, desculpa, são as nossas mais baixas origens.

As sugestões da Chicapardoca



Um filme de Juan Pittaluga (assistente de realização em Mondovino) com Aurélien Recoing, Elina Löwensohn, Diego Bernabé, Rosa Simonelli.

Na terrinha está no Avenida, às 19:15h

07 setembro 2005

Doctor Pasavento: o regresso de Vila-Matas



Há dois anos este blog nascia também da fascinação literária pelo Vila-Matas de O Mal de Montano. Depois disso Paris não se acaba aqui saiu em grande silêncio, a Teorema traduziu Montano sem que nenhum leitor se tivesse declarado. Agora Vila- Matas convoca de novo Robert Walser(o escritor favorito da Cristina, que fez mais pela sua divulgação que todos os suplementos literários juntos) para a vertigem que acomete o escritor que quer desaparecer.
Ver a recensão crítica na Babelia.

DOCTOR PASAVENTO
Enrique Vila-Matas
Anagrama. Barcelona, 2005
388 páginas. 19 euros

A festa da blogosfera.


Sotto Voce, o blogue que queria ser um Steinway

Escrita


// andré bonirre

A não perder

As férias de Ivan;
o blog de Nuno Galopin e de João Lopes (Sound+Vision)

Virá a tarde.

Sobretudo não se ir abaixo, como se diz aos doentes graves. Aguentar a hora funesta da manhã, a representação normal da vida, uns a mandar, os outros a fazerem o que podem, e todos a falarem, é muito saudável falar, mesmo se, no meio de uma frase animada, claudica subitamente o entusiasmo. Virá a tarde.

Work in progress

Actimel com Lactobacilos casei
Amoxicilina com ácido clavulânico

NAN 1 com LCPUFAS
Atrix com Pantenol
Pantene com Pró V
Marcelo com Ana Sousa Dias
Sócrates com Jorge Coelho
Carrilho com Martim
Jorge Coelho com Boquinhas


Kerastase com Vitaciment

Tahiti com monoi (alguém se lembra?)

The Smiths com Morissey
O circo Cardinali com o palhaço Quinito.

Murray, McCarthy e os primários


O meu tio A. era uma pessoa calma, que nunca levantava a voz. Quando uma vez falava comigo da URSS, a voz ficou-lhe ainda mais rouca e disse que eu era um anticomunista primário, o que me não magoou, porque sabia que a palavra primário se seguia automaticamente à palavra anticomunista, mesmo nas pessoas boas e generosas como foi sempre o meu tio A. Eu não era um anticomunista primário. Os primários diziam que os comunistas matavam os velhos com uma injecção atrás da orelha quando o método mais utilizado era o tiro na nuca.

Há agora um género de pessoas que, quando alguém fala do presidente Bush e dos neo cons com o desprezo que eles merecem, ou simplesmente fala dos Estados Unidos com alguma crítica, saltam logo com o antiamericanismo (uma doença da esquerda europeia, dizem) e pegado ao antiamericanismo, vem o primário.
Devo declarar que gosto muito de New Orleans. Fiquei contente quando encontraram Fats Domino. Como os pobres e velhos, ele não teve tempo, meios ou vontade de fugir. Gosto de New Orleans por causa do jazz, do Mississipi, da proximidade de Louisiana onde foi rodado Shy People (1987) do grande Andreï Kontchalovski, do gang do Tom Sawyer, do Huckleberry Finn e da viúva Douglas. Não têm fim o nome dos americanos que admiro. ( Tive, um ano inteiro, uma americana nas paredes de um quarto que habitei.) Numa entrevista recente o actor e realizador George Clooney , contava que o pai, um jornalista do Kentucky perseguido durante o McCarthysmo, manteve sempre opiniões de grande coragem, tendo como modelo Edward Murray, um símbolo da independência jornalística nos USA. “Com a minha irmã aprendemos a comer depressa quando éramos convidados por outra família, porque o meu pai quase sempre discutia com os anfitriões e tínhamos que nos ir embora antes da sobremesa.” E Clooney, que dirigiu Boa Noite e Boa Sorte, para recordar Murray e Mc Carthy, continua: “E sabe que mais? Sinto orgulho de todas as discussões, de todas as refeições sem fim e de todas os despedimentos de que ele foi alvo.”
Desta América sou eu. Podem ficar com as sobremesas.

Os pés, as mãos, a face


Sarah Mendley e Hammasa Kohistani, no Miss England Contest. O imã de Liverpool, um tal Hashim, disse:
uma mulher temente a deus só deve mostrar os pés, as mãos e a face.

Mesmo assim, Hashim, elas ganhavam.

Avisem a Ereira

O Ministro do Ambiente declarou em Coimbra que nenhuma obra de recuperação dos diques danificados nas cheias de 2001 foi até agora realizada. O ministro culpou os governos anteriores do facto e continuou: Não foi feita nem será, porque nós, pela primeira vez, temos uma política de rigor e contenção e não temos dinheiro para isso.
(in Diário de Coimbra, terça feira , 6/9/05)

06 setembro 2005

Leitura reflectida


// andré bonirre

05 setembro 2005

Estrada de Lviv (regresso)

Agora são seis horas. Na fronteira entre a Polónia e a Ucrânia uma camioneta baloiça ao longo da estrada. Só devia escrever a esta hora do dia. Só a esta hora devia responder às tuas perguntas. Esta luz doce do entardecer percorre os campos e assegura-nos a permanência do verão. Os camponeses empilham o feno e as medas não são mais altas do que eles. Numa colina vêem-se as torres enegrecidas de um castelo. Tenho uma dor benigna no centro da cabeça, um apelo, um gerador que se alimenta desta tarde que entorpece e despeja uma onda de despolarização em redor. Como é que posso saber se vou dormir ou simplesmente morrer?

Na Galícia ( lembrando Lwow)


Parámos nas aldeias. Procurava a praça : a câmara, o café, a farmácia. Não bem aquelas. Se houvesse não seria capaz de as reconhecer. Ninguém fala nenhuma das minhas línguas . Depois chegámos a Lviv. Não há nenhum judeu em Lviv. Os polacos foram mortos pelos alemães, pelos ucranianos e pelos russos. Em Lviv, muito saudavelmente, ninguém quer falar disso. Em 12 de Setembro de 1939 Lviv chamava-se Lwów quando as tropas nazis cercaram a cidade. A batalha durou dez dias mas foram dias que não mudaram o mundo. A 19 de Setembro, quando os polacos ainda resistiam, chegou o 6º exército do Exército Vermelho que substituiu as posições alemãs. Os generais polacos Langner e Sirkowski decidiram render-se aos soviéticos depois de uma negociação cujos termos foram aceites: entre outros pontos, os oficiais polacos podiam deixar a cidade para qualquer outro país e levar consigo os seus bens. Ao fim da manhã de 22 de Setembro a rendição foi assinada. Nessa noite a NKVD prendeu os responsáveis polacos, enviou-os para Tarnopol e daí para vários gulags, entre eles o campo de Starolbiesk perto de Kharkhov de onde alguns foram levados para o massacre da floresta de Katyn. Entre eles estava Sirkowski. Em 22 de Junho de 1941, com o pacto germano-soviético enterrado, os alemães entraram em Lwow. A NKVD procedeu a execuções durante toda a semana que precedeu a derrota soviética. Os nazis criaram o gueto de Lwow, procederam à evacuação em massa dos judeus para os campos de extermínio e praticaram fuzilamentos durante toda a ocupação, especialmente dirigidos contra os professores e membros da intelligentsia polaca. Em 23 de Julho de 1944, com o Exército Vermelho por perto, tropas polacas reconquistaram Lwow. Foram convocadas pelo comando soviético e os seus oficiais presos ou incorporados.

Num banco de uma praça que os doentes do século vinte não distinguem das outras praças da Galicia pois tudo lhes parece outra coisa e coisa nenhuma, um homem chamado Andrzej Żuławski contou-me histórias desses tempos. Mas verdadeiramente do que ele me queria falar era de Sophie Marceau, e nisso nos entretivemos o resto da tarde.

Um grupo assim

Clara Díez e o seu filho Aitor, de 18 anos, contam ao El País que não puderam sair de New Orleans porque desde domingo, antes do furacão, os voos tinham sido cancelados. Ficaram no hotel. Quando as condições no hotel, sem água, electricidade nem comida, se tornaram insuportáveis, abandonaram o local. “Deslocávamo-nos em grupos de 50 pessoas. Saímos juntos do hotel. Foi uma boa decisão porque nos deu segurança.”

Em grupos de 50 pessoas. Era assim que nos deslocávamos nas savanas da África Ocidental. Foi há 100.000 anos. Os que tiverem um grupo assim sobreviverão.

Pé de atleta e perna


// andré bonirre

Old enough to know better

Nestes dias parece terem surgido mais dois candidatos à Presidência. Soares e Louçã. No discurso em que aceitou a designação de uma Mesa quase unanimista, Louçã disse que os seus concorrentes tinham 210 anos de experiência. Imediatamente a seguir, declarou que aquela linha de argumentação seria demagógica se utilizada contra a sua juventude. Era a segunda vez na mesma semana que o grilo de Wilde lhe segredava, mas ou o grilo está excessivamente velho e declina a citação inadequada ou Louçã ainda não tem idade para o saber.

02 setembro 2005

O rio Vistula


Nao percebo. As palavras que ouco. O nome das ruas. Para onde corre o transito. As noticias dos jornais. Ja tinhas nascido em 1939? Viste partir os comboios para Treblinka? Eras da classe dirigente em 1954? De que lado te sentaste em Gdansk? Ninguem parece importar-se verdadeiramente. Subo ao muro do Castelo Real para ver o Vistula. Por onde entrou o Exercito Vermelho? Ninguem pergunta quando. De que vez. Olho para o Vistula. Vejo passar os Neville Brother, o espolio da Preservation Hall Jazz Band boiando nas aguas do Vistula. Ninguem ve. Ninguem verdadeiramente se importa. O presidente ha-de vir, alugar tres andares do Marriot, distribuir casas novas. Ate a proxima bomba, ao proximo fogo, a proxima seca, a proxima cheia. A gasolina custa mais que a prata e mais cara ainda esta a agua. Nao importa. Vamos andando nas autoestradas. E vamos bebendo. O homem, o ultimo animal da evolucao, ou o primeiro da criacao, tanto faz, sempre encontrou solucao para estas coisas. Agora, num jardim igual a todos os jardins das cidades que arderam, vejo finalmente uma cena que posso entender.Uma mulher esta sentada num banco a chorar e ao lado um homem tenta reconforta-la sem sucesso.

Solilóquio (2)


// andré bonirre

Solilóquio


// andré bonirre