foto de The SartorialistHá um tipo de homem que usa botões de punho. Ou que pode usar botões de punho. Raramente usa. Mas um dia olhamos, e lá estão eles. Os botões de punho. Não acreditamos. Voltamos a olhar. Não, não é a “petite tache” de que falava o Barthes. É um enorme borrão, de ambos os lados, uma bandarilha pronta a espetar-se no flanco aterrado dos que ainda não acreditam. Há camisas assim. Que se atravessam na nossa vida e pedem botões de punho. Aquela era assim. Uma fatalidade em que devia ter reparado quando a escolhi, na loja do costume onde me visto, ou onde, apressado ou complacente, deixo que me vistam. Uma camisa de colarinhos e punhos brancos e riscas azuis. O Camisas deve ter uma dúzia destas, alinhadas no closet, uma para cada cruzeta. Nenhuma como esta camisa horrível que junto ao umbigo ostenta uma etiqueta da marca, um toque de modernidade. E na extremidade das mangas lá estão os punhos dobrados, duas dobras, quatro casas a pedir botões. No caso os botões de punho do meu pai, por sinal feiotes, e que nunca me lembro de lhe ter visto, embora o meu pai fosse o tipo de homem que podia usar botões de punho e lenço no bolso do casaco.
Enfiei os botões e andei todo o dia de ontem com eles, inconsciente do efeito produzido, porque os homens que usam botões de punho não se apercebem do que acontece de cada vez que levantam um braço, seguram o queixo como as intelectuais na foto de entrevista, coçam o nariz, apoiam a testa. Estava calor dentro de casa e tirei o casaco. E foi assim que estive, toda a tarde, sem arregaçar as mangas, porque isso é difícil quando se usam botões de punho. E tive uma tarde feliz. Ninguém me fez perguntas difíceis, ninguém me confrontou com os mistérios da minha existência, os crimes que terei cometido nas encarnações pretéritas, as escolhas erradas, as pequenas e grandes traições. Ninguém me disse que eu desiludira as grandes esperanças em mim depositadas. As pessoas viam os botões de punho e aceitavam-me assim. Um pobre homem, amansado pela vida, resignado à fatalidade de uma camisa às riscas, com direito a viver sem ser questionado, como o cão que se enroscava na lareira ou o pássaro que batia na vidraça.
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