31 outubro 2004
Enganei-me absolutamente ao vaticinar a captura de Bin Laden como o ultimo argumento eleitoral do cowboy. Bush precisa de Bin Laden vivo. E o Mundo precisa de Kerry na Casa Branca.
29 outubro 2004
Se por acaso o virem
A Vila Matas, em breve em Portugal, gostava de dizer: Sou um leitor. Tenho o mal de Montano. Não me quero curar. A literatura pode salvar.
A Esquerda que vier
Pacheco Pereira conclui ontem a sua série de reflexões sobre a distinção Esquerda / Direita. Da melhor maneira, aliás: um convite à imaginação. Concordo com quase tudo o que ele escreve, embora sinta que ficou algo por dizer. Mas talvez o que falta seja do domínio da imaginação.
A Armadilha para a Esquerda
Vejo a Esquerda toda alterada com a questão Marcelo. Eu próprio, se bem me lembro. Nos últimos tempos tem sido sempre assim. Sem um modelo alternativo de sociedade a esquerda agarra-se a Causas. E se as Causas dão trabalho arranjam-se umas causinhas vistosas. A questão Marcelo é a ponta do iceberg da liberdade de expressão. O problema não é Marcelo. É a intimidação dos jornalistas, o domínio dos meios de comunicação pelos detentores do poder económico, as concentrações, a manipulação das agendas e dos conteúdos. Mas combater isso dá um trabalhão. Por isso vamo-nos entretendo com Marcelo, com Jardim, com aquele valete de Santana que na Tulha, em Ponte de Lima, combinava a bem sucedida estratégia de diversão com o Autarca do Norte. Ou vamo sobrevivendo com temas de diversão. Como o barco do aborto, lembro-me bem. Ou o Buttiglione. Enquanto isso, na sombra, os homens sem nome fazem o seu trabalho. A Escola pública desacreditada, o Serviço público de saúde desacreditado (e destruído por aqueles que o deviam defender), o Serviço público de televisão desacreditado, o sector económico do Estado desacreditado. Quando comecei a escrever isto tinha na cabeça este título: Armadilha para a Esquerda. Mas está mal escolhido. Não é bem uma armadilha. É mais um entretenimento, nuns casos, uma garantia de emprego, um rendimento mínimo, noutros.
28 outubro 2004
Previsão
Hoje senti, quase vi, o que se vai ver na América. Aliás, isto já devia ter sido, adiantando-se uma semana às eleições, não fosse a falta de evidências sobre a memória dos americanos. Entre hoje e amanhã, Bush trará à praça a cabeça de Bin Laden e a reeleição será grande.
27 outubro 2004
Adições
Como certamente têm reparado o blogger tem andado louco. Acesso difícil, resmungão, fugidio. Mas não é só o blogger. Não consigo abrir mails, ou têm anexos incompreensíveis, ou a impressora não tem tinteiro. No meio deste desconcerto algumas notícias boas: o regresso do nosso Ford Mustang, ainda mais barroco, se possível. O Filipe Nunes Vicente escreve todos os dias. Já tenho o endereço do Alcides, o bode (As Barbas do Hernâni). Na Florista Carvera há sempre flores, uma Urze que seja. E mais uma adição: Tomografia das Emoções. O Aknowledgement está a ficar bonito. E como já foi dito é nesse negrume #000000 que os sonhos começam.
O Inimigo Público está em todo o lado
Substituição do Secretário Geral. O PCP vai ouvir Cunhal.
(título do Expresso).
(título do Expresso).
Última Hora
A posição de Barroso está verdadeiramente ameaçada. Barroso pode voltar. Em Lisboa, o ambiente é de pânico nas hostes do Regente.
O Agente Triplo, de Eric Rohmer
Hoje, no Cine Avenida,aqui na terrinha. Ao fim da tarde, ou às 00H.Não perder o último Rohmer.
Sagacidade
Clara Ferreira Alves demorou três semanas a perceber que Luís Delgado e Resendes não lhe garantiam as condições necessárias "para voltar a fazer do DN um diário de referência, isenção e aceitação pública".
O cardeal Martino desmente José Manuel Fernandes
Há dias José Manuel Fernandes classificava como liberal a atitude de Buttiglione, que embora alardeasse posições extremistas sobre os homossexuais e a família, acrescentava que se tratava de posições éticas que não defenderia politica ou jurídicamente. Houve quem desconfiasse de tais liberais. Hoje o cardeal Renato Martino, presidente do CPJP veio esclarecer: (este manual destina-se também a)"evitar a separação entre ética e política, e a remissão da ética para o campo da moral privada". Sobre as uniões homossexuais o cardeal reafirmou o conteúdo de um documento de há um ano: "os políticos católicos devem opor-se a projectos legislativos que reconheçam aquelas uniões."
(2ª versão)
(2ª versão)
Guerra preventiva
Eduardo Prado Coelho escreve hoje, com candura sobre uns estudos que leu no número de Outubro da revista Sciences Humaines ( uma revista de divulgação científica do estilo Digest). Ele terá lido uns artigos que descredibilizam os testemunhos de crianças que assistiram a crimes, e apressa-se a resumi-los. Sob o tema em questão EPC merece tanto crédito como qualquer cidadão capaz de dizer que leu um digest francês de investigação científica. Acontece que escreve nas vésperas do julgamento Casa Pia. Justamente quando, como a defesa mais do que tudo teme, o impacto dos depoimentos das vítimas na opinião pública pode ser devastador.
26 outubro 2004
Razões para não querer Butiglione
O Prof. Mário Pinto escreveu ontem sobre Butiglione. O artifício que utilizou já foi desmontado.O Prof.MP., tal como B., declara-se perseguido pelas suas convicções, que são as do Vaticano. Os que opõem à nomeação de B. para Comissário Europeu são intolerantes. Ele próprio não se sente em condições para exercer funções públicas, ironiza. De caminho ataca os padres que não pensam como ele e ameaça com uma manifestação.
Eu tenho alguma dificuldade em ler o Prof. Mário Pinto, confesso. Gosto muito mais do cardeal Ratzinger. Mas defenderia sem hesitar o direito do Prof. MP ter cargos públicos. Se ele fosse a votos tendo como programa a doutrina da Igreja, considerasse a homosexualidade um pecado, não criminalizável, e uma mãe solteira, uma mãe menos má, eu não votaria nele. Mas se por má informação, convicção ou desespero, os meus compatriotas votassem nele e o elegessem, se o seu Partido o colocasse no cargo de Comissário para a Família do Governo de Salvação Nacional, eu aceitava-o( embora mantivesse a vigilância possível para saber se as suas convicções estariam assim tão impecavelmente separadas da sua actividade legislativa). Sucede que a força política que elegeu B. é minoritária na Itália e na Europa. Que as políticas de família dos estados europeus não têm nada a ver com a doutrina da Igreja. Na Europa, as mulheres têm um lugar na família e no casamento igual à dos seus parceiros masculinos. Na Europa o figurino da família é actualizado à luz das novas realidades. Na Europa a homossexualidade é uma orientação sexual que não pode ser discriminada. Seria natural que os Comissários Europeus reflectissem essas conquistas civilizacionais. É concerteza legítimo que um revisionista austríaco se sente no Parlamento Europeu se uns eleitores austríacos, prontos a jurar que a Shoah foi uma invenção sionista, nele depositaram confiança. Mas seria insensato depositar nele a pasta das Minorias Étnicas.
Mas há uma razão, igualmente fundada no bom senso e nas lições da história, ainda mais poderosa para rejeitar B. Quem garante que Barroso, quando for convidado para Secretário Geral das Nações Unidas não o deixa como sucessor?
(escrito às 13:30h)
Eu tenho alguma dificuldade em ler o Prof. Mário Pinto, confesso. Gosto muito mais do cardeal Ratzinger. Mas defenderia sem hesitar o direito do Prof. MP ter cargos públicos. Se ele fosse a votos tendo como programa a doutrina da Igreja, considerasse a homosexualidade um pecado, não criminalizável, e uma mãe solteira, uma mãe menos má, eu não votaria nele. Mas se por má informação, convicção ou desespero, os meus compatriotas votassem nele e o elegessem, se o seu Partido o colocasse no cargo de Comissário para a Família do Governo de Salvação Nacional, eu aceitava-o( embora mantivesse a vigilância possível para saber se as suas convicções estariam assim tão impecavelmente separadas da sua actividade legislativa). Sucede que a força política que elegeu B. é minoritária na Itália e na Europa. Que as políticas de família dos estados europeus não têm nada a ver com a doutrina da Igreja. Na Europa, as mulheres têm um lugar na família e no casamento igual à dos seus parceiros masculinos. Na Europa o figurino da família é actualizado à luz das novas realidades. Na Europa a homossexualidade é uma orientação sexual que não pode ser discriminada. Seria natural que os Comissários Europeus reflectissem essas conquistas civilizacionais. É concerteza legítimo que um revisionista austríaco se sente no Parlamento Europeu se uns eleitores austríacos, prontos a jurar que a Shoah foi uma invenção sionista, nele depositaram confiança. Mas seria insensato depositar nele a pasta das Minorias Étnicas.
Mas há uma razão, igualmente fundada no bom senso e nas lições da história, ainda mais poderosa para rejeitar B. Quem garante que Barroso, quando for convidado para Secretário Geral das Nações Unidas não o deixa como sucessor?
(escrito às 13:30h)
My Moleskine. Perdeu-se
Não me interessa o passado e não sei nada do futuro. Vivo no tempo presente, por prescrição, mas absolutamente. No presente, My Moleskine faz-me falta. Deus gosta das miúdas como a Inês.
Um século de violência, outro de ignorância
Yakovlev foi membro do ultimo Politburo do PCUS, conselheiro de Gorbatchov. Actualmente com oitenta anos, dedica-se à reabilitação das vítimas do comunismo soviético. O livro que a Ulisseia agora edita dá conta dessa actividade. A escrita de Yakovlev não é particularmente atraente. A tradução de Miguel Serras Pereira é surpreendentemente descuidada ( ou o editor prescindiu de revisor). Mas a massa enorme de evidências recolhidas confirma o que já há muito se sabe: o comunismo soviético foi um regime fundado e mantido por uma repressão sistemática, selvagem, indiscriminada dirigida contra os intelectuais, os camponeses e qualquer forma de dissidência; as diferenças entre a repressão leninista e estalinista são pequenas; a política militar de Estaline assentava num enorme desprezo pelo povo russo, tratado como carne para canhão ( particularmente chocante é a descrição da deportação em massa dos soldados russos, prisioneiros dos nazis, directamente dos campos de extermínio alemães para os campos de detenção que o aparelho comunista lhes destinou). Que no século 21 ainda exista uma força política que se reclama desta tradição eis o que é motivo de grande espanto e apreensão.
Um século de violência na Rússia Soviética, Alexander N. Yakovlev, Ulisseia
Um século de violência na Rússia Soviética, Alexander N. Yakovlev, Ulisseia
Austerlitz de W.G.Sebald
O livro da semana é Austerlitz de W.G.Sebald editado pela Teorema. Tradução de Telma Costa. A capa, atribuída a Fernando Mateus, reproduz, sem conseguir destruir completamente, a capa da edição original.
25 outubro 2004
Morte em Lisboa
A posição de um sector da opinião portuguesa relativamente à pedofilia é um pouco perturbadora. Alguns não têm dúvidas. A questão da pedofilia confundiu-se com o processo da Casa Pia. Uma cabala contra o PS. Despacham os menores com uma piedosa declaração genérica de duas linhas e o resto do discurso é dedicado a erros de instrução dos processos aos presumíveis culpados, perseguição policial, atentado aos direitos fundamentais. Falar de pedofilia é coisa de plebeus, vulgarérrimo, um assunto de costureiras e domésticas. A pedofilia é, ou um episódio de bestialidade, se se trata dessas cenas que se dirimem entre padrinhos e afilhados lá das berças, tema para o 24 horas, ou uma preferência sexual, estilo Nabokov de Lolita ou o Thomas Mann da Morte em Veneza, se os envolvidos são gente como nós. Parece subentender-se que, como preferência sexual, devia ser despenalizada, embora ainda não seja oportuno agendar.
Os bem pensantes acham que o abuso sexual de menores acantonados nas casas de acolhimento é um tema da segurança social, uma coisa tão antiquada como os romances de Dickens. Pagam para não ver, não ouvir falar.
Um jornal de referência, na esteira da imprensa do coração, dedicou ontem as quatro primeiras páginas à publicidade da defesa de um réu. Oportuno, na véspera do julgamento, quando a parte contrária está manietada pelo segredo de justiça, ou desacreditada (como claramente se conseguiu com as vítimas).
Os bem pensantes acham que o abuso sexual de menores acantonados nas casas de acolhimento é um tema da segurança social, uma coisa tão antiquada como os romances de Dickens. Pagam para não ver, não ouvir falar.
Um jornal de referência, na esteira da imprensa do coração, dedicou ontem as quatro primeiras páginas à publicidade da defesa de um réu. Oportuno, na véspera do julgamento, quando a parte contrária está manietada pelo segredo de justiça, ou desacreditada (como claramente se conseguiu com as vítimas).
24 outubro 2004
Psycho
Hanna Schygulla terá contado a João Bénard da Costa a história de
alguém que se espantava com o humano pudor que leva a ocultar o sexo mas a exibir a cara, "a coisa mais nua que todos temos".
22 outubro 2004
Aubade (cantiga do amanhecer)
Trabalho todo o dia e à noite bebo.
Acordado às quatro para o silêncio escuro, olho .
Em breve crescerá a luz na orla das cortinas.
Entretanto vejo o que realmente sempre ali esteve:
a morte inquieta, agora um dia mais próxima,
impedindo qualquer pensamento a não ser como
e onde e quando eu próprio hei-de morrer.
Pergunta vã: contudo o pavor
de morrer, e de estar morto,
de novo lampeja para tolher e horrorizar.
A mente esvai-se no fulgor. Não com remorso
- o bem que não se fez, o amor que não se deu, o tempo
mal gasto- nem com perfídia porque
cada vida pode levar muito tempo a ultrapassar
os seus errados começos, e talvez nunca;
mas para sempre no vazio absoluto,
é certo que viajamos para a extinção
e para sempre perdidos . Para não estar aqui,
para não estar em nenhum lugar,
em breve; nada mais terrível, nada mais verdadeiro.
Esta é uma maneira particular de ter medo.
Sem recorrer a truques. A religião sempre usou,
um vasto brocado musical, roído pelas traças,
criado para fingir que nós nunca morremos,
e aquele sofisma da treta que diz Nenhum ser racional
pode temer o que não sentirá, sem perceber
que é precisamente isso que receamos - não ver, não ouvir,
nenhum toque ou gosto ou cheiro, nada em que pensar,
nada para amar, nada com que se unir,
a profunda anestesia sem retorno.
E assim permanece na margem da visão,
uma pequena mancha desfocada, um calafrio contínuo
que arrasta cada impulso até à indecisão.
Muitas coisas podem não chegar a acontecer: esta acontece,
e quando vem arrebata o medo
que arde na fornalha, quando nos apanha
sem companhia de gente ou de bebida, de nada vale a coragem:
apenas significa não assustar os outros. Ser bravo
não livra ninguém da sepultura.
A morte é sempre igual quer se resista ou não.
Lentamente a luz aumenta, e o quarto ganha forma,
Firme como um roupeiro permanece o que sabemos,
sempre soubemos, é certo que ninguém escapa,
mas não conseguimos aceitar. Algum dos lados perderá.
Entretanto aprontam-se os telefones prestes a tocar
dentro de escritórios trancados, e toda a humanidade
dividida, confusa e desleixada, começa a despertar.
O céu está branco como argila, sem sol.
Há trabalho para fazer.
Os carteiros, como os médicos, vão de porta em porta.
Philip Larkin
(tradução a partir de contributos vários. Ver tb, Mª Teresa Guerreiro, Fora de Texto, 1989)
Acordado às quatro para o silêncio escuro, olho .
Em breve crescerá a luz na orla das cortinas.
Entretanto vejo o que realmente sempre ali esteve:
a morte inquieta, agora um dia mais próxima,
impedindo qualquer pensamento a não ser como
e onde e quando eu próprio hei-de morrer.
Pergunta vã: contudo o pavor
de morrer, e de estar morto,
de novo lampeja para tolher e horrorizar.
A mente esvai-se no fulgor. Não com remorso
- o bem que não se fez, o amor que não se deu, o tempo
mal gasto- nem com perfídia porque
cada vida pode levar muito tempo a ultrapassar
os seus errados começos, e talvez nunca;
mas para sempre no vazio absoluto,
é certo que viajamos para a extinção
e para sempre perdidos . Para não estar aqui,
para não estar em nenhum lugar,
em breve; nada mais terrível, nada mais verdadeiro.
Esta é uma maneira particular de ter medo.
Sem recorrer a truques. A religião sempre usou,
um vasto brocado musical, roído pelas traças,
criado para fingir que nós nunca morremos,
e aquele sofisma da treta que diz Nenhum ser racional
pode temer o que não sentirá, sem perceber
que é precisamente isso que receamos - não ver, não ouvir,
nenhum toque ou gosto ou cheiro, nada em que pensar,
nada para amar, nada com que se unir,
a profunda anestesia sem retorno.
E assim permanece na margem da visão,
uma pequena mancha desfocada, um calafrio contínuo
que arrasta cada impulso até à indecisão.
Muitas coisas podem não chegar a acontecer: esta acontece,
e quando vem arrebata o medo
que arde na fornalha, quando nos apanha
sem companhia de gente ou de bebida, de nada vale a coragem:
apenas significa não assustar os outros. Ser bravo
não livra ninguém da sepultura.
A morte é sempre igual quer se resista ou não.
Lentamente a luz aumenta, e o quarto ganha forma,
Firme como um roupeiro permanece o que sabemos,
sempre soubemos, é certo que ninguém escapa,
mas não conseguimos aceitar. Algum dos lados perderá.
Entretanto aprontam-se os telefones prestes a tocar
dentro de escritórios trancados, e toda a humanidade
dividida, confusa e desleixada, começa a despertar.
O céu está branco como argila, sem sol.
Há trabalho para fazer.
Os carteiros, como os médicos, vão de porta em porta.
Philip Larkin
(tradução a partir de contributos vários. Ver tb, Mª Teresa Guerreiro, Fora de Texto, 1989)
Take 6
O dia é sol e luz
e sempre a pele basta para abrigo.
A marmelada começa a ser comida.
O Outono declina no ar das serras
a música amena da vida.
A língua quente da terra
lambe-me os pés.
Loreta
e sempre a pele basta para abrigo.
A marmelada começa a ser comida.
O Outono declina no ar das serras
a música amena da vida.
A língua quente da terra
lambe-me os pés.
Loreta
Imortal
Jill Bioskop é uma mulher que tem os lábios e as lágrimas azuis. O azul bioskop. Um camaleão morrerá por não ser capaz de imitar esse azul que não há. Também os mamilos de Jill são azuis, mas isso só os deuses saberão. Hórus, o cruel deus egípcio que nos criou sem ser à sua imagem e semelhança, vai morrer se em sete dias não fecundar uma mulher muito rara no universo. Essa mulher é Jill, hospedada num quarto do Hotel da Histeria Ocidental. Isto passa-se em Nova Yorque, trinta anos depois da última rebelião histórica ter sido esmagada e um dos seus cabecilhas, Nikopol, congelado. Um ano antes do previsto, Nikopol cairá sobre as ruínas de uma ponte em Brooklin. Há-de perder uma perna e acordar recitando Les Fleurs du Mal. Nele é que o deus Horus reincarna. Quando Nikopol encontra Jill, viola-a com algum consentimento. Jill nunca saberá se beija Nikopol. Há no Central Park uma zona entre todas proibida. A zona da última intrusão, a zona Zero, aux sables émouvants, onde John criou Jill. Aí é que Horus destruirá a besta sanguinária ao serviço do mayor capitalista, já depois de John não ser senão um sobretudo preto nos braços de Jill. A história pode recomeçar em Paris, no berço do jovem herói (são heróis os filhos que os deuses fazem às mortais).
Os poemas do Imortal (2)
Le poison
Le vin sait revêtir le plus sordide bouge
D'un luxe miraculeux,
Et fait surgir plus d'un portique fabuleux
Dans l'or de sa vapeur rouge,
Comme un soleil couchant dans un ciel nébuleux.
L'opium agrandit ce qui n'a pas de bornes,
Allonge l'illimité,
Approfondit le temps, creuse la volupté,
Et de plaisirs noirs et mornes
Remplit l'âme au delà de sa capacité.
Tout cela ne vaut pas le poison qui découle
De tes yeux, de tes yeux verts,
Lacs où mon âme tremble et se voit à l'envers...
Mes songes viennent en foule
Pour se désaltérer à ces gouffres amers.
Tout cela ne vaut pas le terrible prodige
De ta salive qui mord,
Qui plonge dans l'oubli mon âme sans remord,
Et, charriant le vertige,
La roule défaillante aux rives de la mort !
de Les Fleurs du Mal (enviado pelo Mundo Imaginado)
Os poemas do Imortal (1)
Une charogne
Rappelez-vous l'objet que nous vîmes, mon âme,
Ce beau matin d'été si doux :
Au détour d'un sentier une charogne infâme
Sur un lit semé de cailloux,
Les jambes en l'air, comme une femme lubrique,
Brûlante et suant les poisons,
Ouvrait d'une façon nonchalante et cynique
Son ventre plein d'exhalaisons.
Le soleil rayonnait sur cette pourriture,
Comme afin de la cuire à point,
Et de rendre au centuple à la grande Nature
Tout ce qu'ensemble elle avait joint ;
Et le ciel regardait la carcasse superbe
Comme une fleur s'épanouir.
La puanteur était si forte, que sur l'herbe
Vous crûtes vous évanouir.
Les mouches bourdonnaient sur ce ventre putride,
D'où sortaient de noirs bataillons
De larves, qui coulaient comme un épais liquide
Le long de ces vivants haillons.
Tout cela descendait, montait comme une vague,
Ou s'élançait en pétillant ;
On eût dit que le corps, enflé d'un souffle vague,
Vivait en se multipliant.
Et ce monde rendait une étrange musique,
Comme l'eau courante et le vent,
Ou le grain qu'un vanneur d'un mouvement rythmique
Agite et tourne dans son van.
Les formes s'effaçaient et n'étaient plus qu'un rêve,
Une ébauche lente à venir,
Sur la toile oubliée, et que l'artiste achève
Seulement par le souvenir.
Derrière les rochers une chienne inquiète
Nous regardait d'un oeil fâché,
Epiant le moment de reprendre au squelette
Le morceau qu'elle avait lâché.
- Et pourtant vous serez semblable à cette ordure,
A cette horrible infection,
Etoile de mes yeux, soleil de ma nature,
Vous, mon ange et ma passion !
Oui ! telle vous serez, ô la reine des grâces,
Après les derniers sacrements,
Quand vous irez, sous l'herbe et les floraisons grasses,
Moisir parmi les ossements.
Alors, ô ma beauté ! dites à la vermine
Qui vous mangera de baisers,
Que j'ai gardé la forme et l'essence divine
De mes amours décomposés !
de Les Fleurs du Mal (com um agradecimento ao Mundo Imaginado)
21 outubro 2004
Um bilhete
A miúda tinha doze anos na primeira fuga. Foi apanhada numa cidade a trinta quilómetros da residência, a olhar para as montras do shopping. Tinha um ramo de flores no braço, um lenço com sangue e era bonita. Isso e o olhar, sim sobretudo o olhar, chamaram a atenção dos lojistas e da polícia. A miúda contou que se tinha encontrado com um homem que conhecera no teletexto. Ele levou-a para um bosque onde ela adormeceu. Acordou com um ramo de flores, um lenço com sangue e um bilhete que dizia: Para a próxima é pior. O sangue no lenço era do nariz, o bilhete nunca foi encontrado. As flores eram verdadeiras.
Da segunda vez a miúda esteve desaparecida doze dias. Ao décimo terceiro dia a mãe ouviu gemidos que vinham do lenheiro. Era ela. Nua, amarrada e amordaçada com a própria roupa. Aos pés dela estava o saco de viagem. Dizem que tinha roupa nova, de marcas e um bilhete que dizia: Para a próxima é pior.
Da segunda vez a miúda esteve desaparecida doze dias. Ao décimo terceiro dia a mãe ouviu gemidos que vinham do lenheiro. Era ela. Nua, amarrada e amordaçada com a própria roupa. Aos pés dela estava o saco de viagem. Dizem que tinha roupa nova, de marcas e um bilhete que dizia: Para a próxima é pior.
Flores (1)
Os correios como os médicos vão de porta em porta. Agora de porta em porta só as entregas de pizzas, as testemunhas de Jeová e os candidatos a lugares públicos. Mas é tão raro. Eu hoje fui de porta em porta e era madrugada, a luz ainda se coava nos telhados, uma neblina embrulhava tudo. Caminhava sem ruído. E vi-te sair, à hora em que pensava que dormias. É tão cedo, gritei. Dorme um pouco, gritei. Mas a voz calava, como os passos. E tu, talvez florista, caminhaste sonâmbula. Depois viraste-te e levantaste a mão. Era para um carro preto que te abriu a porta mais à frente. Passou muito perto de mim. Ainda tenho o braço levantado e a lama na cara.
O Huck Finn está nas bancas
O miúdo é muito feio. Cresceram-lhe demais as mãos e os pés. Não tem jeito para as meninas e se por acaso consegue aproximar-se delas, magoa-as. É sem querer, está sempre a dizer. Mas elas evitam-no. A professora, que depois de uma revelação se condenou a um estado que ele não entende, mas a que chamarei da mais rigorosa castidade, vive um delírio milenar e não o aprecia. Pode decorar os afluentes da margem esquerda do Tâmega e as estações e apeadeiros da linha do Tua. Ela não se comove.
Um dia descobre As Aventuras de Huckleberry Finn e enquanto dura ele é feliz. O livro explica quase tudo o que há para saber. E depois pode correr ao Tom Sawyer. Ou ao contrário. Vive oito dias de êxtase, com pequenos intervalos de alimentação. As noites em que lê o Huck Finn são fantásticas e de manhã pode fechar os olhos , fingir que dorme e continuar a sonhar com o Mississipi.
Um dia descobre As Aventuras de Huckleberry Finn e enquanto dura ele é feliz. O livro explica quase tudo o que há para saber. E depois pode correr ao Tom Sawyer. Ou ao contrário. Vive oito dias de êxtase, com pequenos intervalos de alimentação. As noites em que lê o Huck Finn são fantásticas e de manhã pode fechar os olhos , fingir que dorme e continuar a sonhar com o Mississipi.
l'Immortel de Bilal
Hoje, às 20:30H não se esqueçam, os daqui. É o Bilal, porra, o Imortal. Et n'oubliez jamais: toutes les femmes sont des femmes-pièges
.
20 outubro 2004
Les choristes de Christophe Barratier
Um filme com história. Uma casa de correcção onde há homens bons e a redenção é possível através da música coral. Uma aristocrata benfeitora a quem o director tem de prestar contas. Um homem de talento chamado Clément Mathieu, capaz de estabelecer cumplicidades com as crianças. Foi ontem em França, no fim da guerra, quando havia uma grande esperança pelo mundo, mesmo que à luz crua de hoje sejam ingénuos os olhos dos nossos pais e avós. E a esperança volta a ser possível aqui, outra vez, pela magia de um cinema sem efeitos especiais, um cinema com o nosso ritmo, o bom cinema francês.
Valeria Bruni –Tedeschi
Valeria Bruni –Tedeschi, estreou recentemente em Espanha o seu primeiro filme como realizadora, É mais fácil um camelo..., uma autobiografia. Valeria é também a actriz do último François Ozon, 5X2, estreado em Setembro e ontem apresentado na 5ª Festa do Cinema Francês. É a história de um par como muitos que conheço, só que ela é mais bonita, mais alta e mais bem feita. Se me é permitida uma nota pessoal: o marido, é detestável. Aquele tipo de homem que dá conselhos sobre o modo de colocar a louça na máquina de lavar, capaz de levar a namorada para um Club Med na Tunísia ou no Tenerife, que se cala quando devia falar e fala quando o importante era estar calado, que está em cima de uma a pensar na outra. A história é contada ao contrário, talvez a única forma de narração em que um happy-end é ainda possível, aquele momento quase-perfeito em que duas pessoas se encontram. Como Marion, Valeria é sublime. A infinita tristeza dos olhos na violação, a ternura com que conta uma história a Nicholas, a solidão no parto e a procissão assombrada à incubadora do filho, uma noiva quase trágica que lembra uma mulher de Andrei Konchalovsky, a secretária ingénua do fim-começo. Com Valeria qualquer filme seria bom. Ainda não é desta que fico fan de Ozon.
19 outubro 2004
Would you mind?
O que eu quis sempre foi fazer sexo. Os corpos só, sem o amor. Um episódio urbano de preferência, a partir duma discoteca in. Ou out of place, o começo debaixo da mesa da reunião. Eu seria seco como uma folha de Outono, os movimentos na fronteira da brutalidade. Foder como os bichos, de costas para a alma. Inscrevi-me várias vezes para o acontecimento e em todas atrasei-me. Gostei delas, cheguei sempre tarde demais.
//sent by Stefan Varta
//sent by Stefan Varta
Antologia de O Mal: Aubade de Larkin
I work all day, and get half-drunk at night.
Waking at four to soundless dark, I stare.
In time the curtain-edges will grow light.
Till then I see what's really always there:
Unresting death, a whole day nearer now,
Making all thought impossible but how
And where and when I shall myself die.
Arid interrogation: yet the dread
Of dying, and being dead,
Flashes afresh to hold and horrify.
The mind blanks at the glare. Not in remorse
-- The good not done, the love not given, time
Torn off unused -- nor wretchedly because
An only life can take so long to climb
Clear of its wrong beginnings, and may never;
But at the total emptiness for ever,
The sure extinction that we travel to
And shall be lost in always. Not to be here,
Not to be anywhere,
And soon; nothing more terrible, nothing more true.
This is a special way of being afraid
No trick dispels. Religion used to try,
That vast moth-eaten musical brocade
Created to pretend we never die,
And specious stuff that says No rational being
Can fear a thing it will not feel, not seeing
That this is what we fear -- no sight, no sound,
No touch or taste or smell, nothing to think with,
Nothing to love or link with,
The anaesthetic from which none come round.
And so it stays just on the edge of vision,
A small unfocused blur, a standing chill
That slows each impulse down to indecision.
Most things may never happen: this one will,
And realisation of it rages out
In furnace-fear when we are caught without
People or drink. Courage is no good:
It means not scaring others. Being brave
Lets no one off the grave.
Death is no different whined at than withstood.
Slowly light strengthens, and the room takes shape.
It stands plain as a wardrobe, what we know,
Have always known, know that we can't escape,
Yet can't accept. One side will have to go.
Meanwhile telephones crouch, getting ready to ring
In locked-up offices, and all the uncaring
Intricate rented world begins to rouse.
The sky is white as clay, with no sun.
Work has to be done.
Postmen like doctors go from house to house.
Philip Larkin
Waking at four to soundless dark, I stare.
In time the curtain-edges will grow light.
Till then I see what's really always there:
Unresting death, a whole day nearer now,
Making all thought impossible but how
And where and when I shall myself die.
Arid interrogation: yet the dread
Of dying, and being dead,
Flashes afresh to hold and horrify.
The mind blanks at the glare. Not in remorse
-- The good not done, the love not given, time
Torn off unused -- nor wretchedly because
An only life can take so long to climb
Clear of its wrong beginnings, and may never;
But at the total emptiness for ever,
The sure extinction that we travel to
And shall be lost in always. Not to be here,
Not to be anywhere,
And soon; nothing more terrible, nothing more true.
This is a special way of being afraid
No trick dispels. Religion used to try,
That vast moth-eaten musical brocade
Created to pretend we never die,
And specious stuff that says No rational being
Can fear a thing it will not feel, not seeing
That this is what we fear -- no sight, no sound,
No touch or taste or smell, nothing to think with,
Nothing to love or link with,
The anaesthetic from which none come round.
And so it stays just on the edge of vision,
A small unfocused blur, a standing chill
That slows each impulse down to indecision.
Most things may never happen: this one will,
And realisation of it rages out
In furnace-fear when we are caught without
People or drink. Courage is no good:
It means not scaring others. Being brave
Lets no one off the grave.
Death is no different whined at than withstood.
Slowly light strengthens, and the room takes shape.
It stands plain as a wardrobe, what we know,
Have always known, know that we can't escape,
Yet can't accept. One side will have to go.
Meanwhile telephones crouch, getting ready to ring
In locked-up offices, and all the uncaring
Intricate rented world begins to rouse.
The sky is white as clay, with no sun.
Work has to be done.
Postmen like doctors go from house to house.
Philip Larkin
18 outubro 2004
Um fim de mim
Li ontem o Aubade, do Larkin, como se fosse a primeira vez. Não me ajudou. Essa morte que não é serenidade mas solidão, dor, abandono era a crueldade de que não estava a precisar. Lodge, Stig Dagerman, a canalização e o computador que entopem ao mesmo tempo. Tudo me falava do mesmo. Era tão visível na minha pele como a escarlatina. Ainda não era noite e Loreta mandava dizer que não me contava mais nada daquele episódio da sua vida na cidade de L. Tudo por causa de uma pequena alteração no texto. Foi Bartleby, quase de certeza. Loreta descrevia o pequeno almoço do Hotel, enquanto o Mamute se aproximava, e Bartleby não o transcreveu por não lhe parecer relevante. Loreta deu conta e não gostou. É muito difícil manter uma colaboradora literária satisfeita, sobretudo se a história é em capítulos e ela se chama Loreta Granada. Todos os dias ameaça veladamente renegociar o contrato, deixar de escrever, introduzir pormenores que podem pôr em causa o bom nome do blog. Bartleby é um pretexto, eu sei. Mas o escrivão traz maus hábitos da Janela. Esperava encontrar, não digo humildade e reconhecimento, mas ao menos espírito de conciliação. Foi com soberba obstinada que ele me respondeu que voltaria a omitir a descrição do pequeno-almoço.
Não vejo maneira de Loreta voltar a entregar a narração de L. Talvez Varta, o Mamute. Eu sou do Mamute. Mas não sei se sobrevivo a Larkin e à escarlatina. Vou entregar o blog à Sofia e parar. Até perceber se é um exantema ou se são mesmo livores. O silêncio não será o mínimo sopro do Mal.
17 outubro 2004
Um Blog de cinema
Os críticos de cinema de O Público ainda não se levantaram desde que foi descoberto o seu livro de estilo (cf. O Inimigo Público de 2/10). Porque é que pessoas que não gostam de cinema escrevem sobre cinema? Quem os obriga a tal esforço? (Estou a falar de um que não consegue ver filmes que mereçam mais de uma bolinha na escala deles). Aqui, quando queremos uma opinião sobre fitas xunga vamos ao Cinema Xunga. E quando queremos sobre uma que não seja xunga, também vamos.
Nenhuma Flor
Na livraria Navio de Espelhos em Aveiro, Nenhuma Flor hoje a partir das 15:00, com a presença dos autores: Paulo Gaspar Ferreira e Sandra Costa.
FESTA DO CINEMA FRANCÊS
Segunda, 18
21h30 - Feux rouges, de Cédric Kahn
Terça, 19
16H30 - Notre musique, de Jean-Luc Godard
18H30 - Brodeuses, de Eléonore Faucher
20H30 - Les choristes, de Christophe Barratier
22H30 - 5x2, de François Ozon
Quarta, 20
11H00 - Le Roi et l'Oiseau, de Paul Grimault
16H30 - 10ème Chambre, de Raymond Depardon
18H30 - Les Sentiments
20H30 - 2046, de Wong Kar Wai
22H30 - Wild side
Quinta, 21
16H30 - Ils se marierent et eurent beacoup d'enfants
20H30 - Immortel, de Enki Bilal
22H30 - Haute Tension
Coimbra, Millenium Avenida
16 outubro 2004
Esclarecimento
O sítio a que me orgulho de pertencer é a Janela Indiscreta da Cristina Fernandes, Zazie, António Rebelo, Lídia Pereira, Luís Rei, Marta Almeida, Paulo Azevedo. Fui dado como desaparecido mas continuo a fazer o meu trabalho. Nada de relevo. Nada de que se sinta a falta. Listas, como diz a Cristina. Mas outro dia reparei que estes dizem escrever sobre quase nada. Está mais de acordo sobre a minha natureza. De vez em quando têm opiniões. Sobre essas preferia não me pronunciar. Direi que as condições de alojamento e alimentação não são inferiores às da Janela. Compete-me além disso ler os mails da Loreta Granada e do Stefan Varta e decidir da oportunidade da sua publicação, enviar pontualmente apelos a um tal André Bonirre para que volte, esconder o sitemeter e o tecnorati dos outros residentes, fazer recortes do que escrevem os autores dos blog linkados. Voltarei à minha Janela sempre e logo que tal me seja solicitado.
Primo Levi
Ele é um bom amigo: diz-nos que a condição humana é miserável mas que o compadecimento resulta ocioso e é obrigatório dedicar-se a melhorá-la.
Primo Levi sobre o Bertrand Russel de Porque não somos felizes
Etxebarría ganha o Planeta
Lucía Etxebarría (Valencia, 1966) ganhou o Prémio Planeta, o mais importante prémio literário espanhol, com o romance Un milagro en equilibrio.
Até aqui publicara quatro romances: Amor, Curiosidade, Prozac e Dúvidas, Beatriz e os Corpos Celestes, Nós Que Somos Diferentes das Outras, Uma história de amor como outra qualquer , todas traduzidas pela Editorial Notícias e Courtney y yo, uma biografia de Courtney Love. Publicou igualmente crónicas literárias: En brazos de la mujer fetiche , A Eva Futura (igualmente na Notícias) e poesia (Estación de Infierno).
Até aqui publicara quatro romances: Amor, Curiosidade, Prozac e Dúvidas, Beatriz e os Corpos Celestes, Nós Que Somos Diferentes das Outras, Uma história de amor como outra qualquer , todas traduzidas pela Editorial Notícias e Courtney y yo, uma biografia de Courtney Love. Publicou igualmente crónicas literárias: En brazos de la mujer fetiche , A Eva Futura (igualmente na Notícias) e poesia (Estación de Infierno).
Sábado de manhã
Estou na cama do Hotel de L., é a manhã do dia a seguir ao Congresso. Nunca me aconteceu e não se vai repetir. Ficar depois do fim da festa. É sábado de manhã e acordei sozinha na cama do Hotel L. Tinha-me deitado feliz. A minha vida havia de ser sempre assim. Entre Congressos, hotéis confortáveis, um pouco de luxo discreto. Conhecer ao vivo as pessoas interessantes que assinam os artigos míticos da minha bibliografia. Falar-lhes da minha investigação. Imaginar que posso vir a trabalhar com eles, que os convites que me fazem têm validade para lá da mesa do jantar, da conversa ao lado do poster. Agora que acordo tudo passou. Vejo-me no hotel de L., longe da casa onde ninguém me espera. Quando sair para o pequeno-almoço só haverá turistas. Talvez compre um livro no aeroporto. Mas para já estou na cama, imobilizada por uma dor no peito que reconheço. É a aquela estúpida angústia juvenil que me garantiram iria desaparecer com a idade. Estou na cama, dobrada sobre mim própria, como se quisesse comprimir aquela dor absurda, quando a postura correcta talvez fosse deixá-la partir para as extremidades do corpo, dissipar-se pelos membros. No escuro deste sofrimento brilhou sempre a luz agoniante da salvação. Hoje o príncipe encantado é o Mamute. O meu Mamute anjo salvar-me-ia. Havia de vir buscar-me para uma última volta nas Avenidas de L., talvez víssemos finalmente aquele quadro do Museu N. e nos encantássemos. Talvez eu conseguisse fingir ser aquele o meu homem, aquelas as palavras que esperava ouvir, talvez o meu braço no braço dele acreditasse. Talvez, na despedida, ele me desse o mail do Laboratório, e trocássemos mensagens inteligentes onde a recordação desta manhã durasse até ao próximo Congresso. Continuo na cama abraçando o peito como uma bomba que explode à descompressão. Que coisa de mau gosto esta visita do príncipe encantado. Que ia eu fazer com um príncipe encantado. Quero um Mamute descartável. Queria um Mamute que não fosse meu.
sent by//Loreta Granada
Não há silêncio nem palavras
JMF (link para o editorial do Público de ontem) está de volta. E se o populismo de Santana o irrita, o liberalismo de Buttiglione estimula-o. O problema, JMF, é que o pecado do ministro de Berlusconi não tem aspas. E como homem culto, JMF devia saber que pecado significa desobediência e os pecadores devem ser punidos, excluidos.
Se o Filipe quer dizer o que penso estou de acordo. Entre ellas dos suena el humo, e ao fumo devemos estar atentos, é aliás o quase nada a que este blog se dedica. Mas
Se o Filipe quer dizer o que penso estou de acordo. Entre ellas dos suena el humo, e ao fumo devemos estar atentos, é aliás o quase nada a que este blog se dedica. Mas
Lo que habrá de venir será de todos,
pues no hay merecimiento en el nacer
y nada justifica nuestra muerte.
Lamento nocturno
Lamber-te os pés é coisa assim tão estranha
que os teus pés a língua não recordem?
sent by//Stefan Varta
que os teus pés a língua não recordem?
sent by//Stefan Varta
15 outubro 2004
Valência Princesa do Mundo pelo Camaleão
Na 2ª feira estreamos um espectáculo chamado VALÊNCIA PRINCESA DO MUNDO.Trata-se de um monólogo de uma puta que conta episódios da sua vida. Um universo degradado e de cortar à faca. Suponho que é um espectáculocorrosivo, pertinente e interessante. Não dá seca. É no INATEL, em Coimbra, às 22h. Apareçam.
Lena Faria
Lena Faria
Novos Livros
EL PRESIDENTE DEL BIEN Y DEL MAL
Peter Singer
Tusquets/Barcelona 2004
Sobre as políticas de Bush. Para lá da invasão ao Iraque. O ponto de vista do homem da Ética Animal.
MIS ALMUERZOS CON GENTE e
LOS DEMONIOS FAMILIARES
Manuel Vazquez Montalbán
ambos na Random House Mondadori . Quase um ano após a sua morte, e enquanto se aguarda a segunda parte de Millenium, dois livros de Manolo.
AQUEL DOMINGO
Jorge Semprun
Quinteto, Barcelona 2004, formato de bolso
SECOND SPACE. NEW POEMS
Czeslaw Milosz
Farrar Straus Giroux , New York 2004
Peter Singer
Tusquets/Barcelona 2004
Sobre as políticas de Bush. Para lá da invasão ao Iraque. O ponto de vista do homem da Ética Animal.
MIS ALMUERZOS CON GENTE e
LOS DEMONIOS FAMILIARES
Manuel Vazquez Montalbán
ambos na Random House Mondadori . Quase um ano após a sua morte, e enquanto se aguarda a segunda parte de Millenium, dois livros de Manolo.
AQUEL DOMINGO
Jorge Semprun
Quinteto, Barcelona 2004, formato de bolso
SECOND SPACE. NEW POEMS
Czeslaw Milosz
Farrar Straus Giroux , New York 2004
Rappaport pelos Bonifrates
Eu não sou o Rappaport, de Herb Gardner,ainda em cena às quintas e sábados, dias16, 21 e 23 de Outubro, às 21.45 horas, no Teatro-Estúdio Bonifrates, na Casa Municipal da Cultura de Coimbra. Para entrar basta levar um livro infantil. E vale a pena ver este Rappaport.
14 outubro 2004
Outono, take 4
Se a vida não corre bem
é melhor que morra à chuva.
Aí terei
o meu par por sombra.
Que a minha pele te sirva então
de abrigo.
Um dia fui comido
como marmelada no Outono.
sent by//Stefan Varta
é melhor que morra à chuva.
Aí terei
o meu par por sombra.
Que a minha pele te sirva então
de abrigo.
Um dia fui comido
como marmelada no Outono.
sent by//Stefan Varta
As Escolhas de Barroso
Barroso escolheu, de entre o pessoal político Berlusconiano, um tal Buttiglione para responsável da Justiça. Buttiglione disse uma coisas sobre as mulheres e os homossexuais, pelos vistos dois dos fantasmas que assolam a direita, neste princípio de século. Nada de especial: a homossexualidade é pecado e as mulheres devem parir no casamento sob a protecção do marido, qualquer coisa assim. Em Itália ele está habituado a que declarações destas não tenham grande eco. A Itália é desde há alguns anos uma espécie de Madeira, de jardim de infância da Europa. Ouve-se aquilo e não se liga. É para rir, não mordem. Talvez se magoem uns aos outros mas é só brincadeira. Mas desta vez a Europa não achou piada. Talvez por desconhecer a especificidade italiana, houve quem achasse estranho que um homem destes tivesse de fazer o esforço de pôr a sua moral entre parênteses quando se trata da justiça. Agora apareceu outro italiano, que no governo de Berlusconi ocupa o cargo extraordinário de Ministro dos Italianos no Estrangeiro a dizer, em papel timbrado e oficial: "Pobre Europa, os maricas (culattoni) são maioria".
Felizmente, Pacheco, existem estas criaturas, os Jardins da Madeira e os Tremaglia da República de Saló, para tornarem menos trabalhosa a nossa pertença ao que se chama a Esquerda.
Felizmente, Pacheco, existem estas criaturas, os Jardins da Madeira e os Tremaglia da República de Saló, para tornarem menos trabalhosa a nossa pertença ao que se chama a Esquerda.
13 outubro 2004
Despedimento por justa causa
Há qualquer coisa de injusto nisto. O meu programa favorito passa a uma hora impossível. Quando trabalhava nos Correios podia pretextar uma urgência e sair do balcão. Mas agora não. O meu patrão é implacável e o contrato diz claramente que não posso ouvir a Antena Dois às terças feiras às 17:15 H, mesmo que apenas duas vezes por mês. E nunca poesia, nunca esse poeta maldito chamado António Franco Alexandre, também por amor do qual há catorze meses se iniciou este blog.
Cada indústria cheira ao produto com que trabalha*
Eu trabalho com corpos. Aqui cheira sobretudo a formol.
Eu trabalho com pernas. Meia perna é o que mais se vende. Aqui cheira a cera depilatória.
Eu trabalho com talentos. Mas cheira quase sempre a transpirado.
Eu trabalho com betão. Dizem que cheira a álcool mas o álcool tirou-me o cheiro.
Eu trabalho com papel de jornal. No princípio cheirava-me à floresta.
Eu trabalho com as cabeças. Cheira à fermentação do sebo pelos champôs, os amaciadores, os solventes, as tintas.
*Mestre Gualter, da Fábrica de Conservas H. , S. João do Campo, Ilha Terceira, em resposta à repórter da Antena Um que se queixava do cheiro do atum.
Morte Segura
Cada morte tem de ser certificada por um ajuramentado a Hipócrates, o bibliocasta. Há-de notificar-se em seguida o Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP). Este decide se o cadáver deve ou não ser escrutinado pelos serviços competentes do Instituto de Medicina Legal. É só então que a morte é livre.
12 outubro 2004
Manuscrito encontrado em Saragoça, de Jan Potocki
Em 1971 a editorial Estampa publicou o Manuscrito, numa colecção lindíssima de capas pretas a que chamava Livro B, onde também saíram Borges, Marcel Schwob, o Stendhal de Crónicas Italianas e contos góticos de Ann Radcliffe. Alguns volumes encontram-se naqueles saldos subterrâneos que anunciam o Natal.
O autor, Potocki (ler Poe-tos-ki) foi um polaco que nasceu em 1761 em Pikow ou Podolia, hoje na Ucrânia, foi viajante, arqueólogo, historiador, cabalista, estudioso da Rosa Cruz, conselheiro do czar da Rússia, aerobalonista. Morreu em 1815, num castelo da Transilvânia, provavelmente atingido pela sífilis, a depressão e o desencanto político. Rebentou o crânio com uma bala de prata que ele próprio poliu, depois de ter escrito um epitáfio adequado. Falava várias línguas mas escreveu em francês.
Com um amigo turco, Osman, perseguiu, sem sucesso, o manuscrito original das Mil e Uma Noites. Escreveu livros de viagem, de arqueologia, história, política e, para sua glória e nosso deleite, o Manuscrito de Saragoça.
O Manuscrito foi encontrado por um soldado de Napoleão numa casa deserta dos arredores de Saragoça. O narrador ficou famoso. É o chefe dos guardas valões Alphonse von Worden que se perde numa terra de Castela sugestivamente chamada Venta Quemada onde um chefe cigano, Avadoro, lhe conta a história da sua vida interrompida trinta e cinco vezes.
O Manuscrito organiza-se em 66 jornadas. Este é o número cabalístico que designa a palavra samech, que significa círculo. E a narrativa é circular, como um sonho, ora um sonho erótico de mouras de Tunes de lábios doces, ora um pesadelo de enforcados.
A versão da Estampa, muito reduzida, era a de Roger Caillois. Este escritor francês contou que encontrara uma nota manuscrita apensa à edição de S. Petersburgo, provavelmente da autoria de um tal Ant.-Alex Barbier, autor de Dicionário dos Anónimos afirmando que o bibliófilo e fantasista Charles Nodier tinha vendido o original ao Conde de Courchamps, um plagiador. Algum tempo mais tarde um estudioso do Manuscrito afirmou que Nodier era de facto o seu autor.
A versão que a Cavalo de Ferro agora publica foi conseguida após uma investigação na Polónia, nos anos noventa, a partir de várias fontes e da edição de um amigo de família.
Em 1963 o realizador polaco Wojciech Hás filmou o Manuscrito. E o filme prossegue a história de mistérios e sombras do livro. Objecto de culto, existe actualment uma cópia em DVD que contou com o empenhamento directo de Scorsese e do pai da Sofia Coppola.
Manuscrito encontrado em Saragoça, dois volumes, na tradução de José Espadeiro Martins,pela Cavalo de Ferro.
O autor, Potocki (ler Poe-tos-ki) foi um polaco que nasceu em 1761 em Pikow ou Podolia, hoje na Ucrânia, foi viajante, arqueólogo, historiador, cabalista, estudioso da Rosa Cruz, conselheiro do czar da Rússia, aerobalonista. Morreu em 1815, num castelo da Transilvânia, provavelmente atingido pela sífilis, a depressão e o desencanto político. Rebentou o crânio com uma bala de prata que ele próprio poliu, depois de ter escrito um epitáfio adequado. Falava várias línguas mas escreveu em francês.
Com um amigo turco, Osman, perseguiu, sem sucesso, o manuscrito original das Mil e Uma Noites. Escreveu livros de viagem, de arqueologia, história, política e, para sua glória e nosso deleite, o Manuscrito de Saragoça.
O Manuscrito foi encontrado por um soldado de Napoleão numa casa deserta dos arredores de Saragoça. O narrador ficou famoso. É o chefe dos guardas valões Alphonse von Worden que se perde numa terra de Castela sugestivamente chamada Venta Quemada onde um chefe cigano, Avadoro, lhe conta a história da sua vida interrompida trinta e cinco vezes.
O Manuscrito organiza-se em 66 jornadas. Este é o número cabalístico que designa a palavra samech, que significa círculo. E a narrativa é circular, como um sonho, ora um sonho erótico de mouras de Tunes de lábios doces, ora um pesadelo de enforcados.
A versão da Estampa, muito reduzida, era a de Roger Caillois. Este escritor francês contou que encontrara uma nota manuscrita apensa à edição de S. Petersburgo, provavelmente da autoria de um tal Ant.-Alex Barbier, autor de Dicionário dos Anónimos afirmando que o bibliófilo e fantasista Charles Nodier tinha vendido o original ao Conde de Courchamps, um plagiador. Algum tempo mais tarde um estudioso do Manuscrito afirmou que Nodier era de facto o seu autor.
A versão que a Cavalo de Ferro agora publica foi conseguida após uma investigação na Polónia, nos anos noventa, a partir de várias fontes e da edição de um amigo de família.
Em 1963 o realizador polaco Wojciech Hás filmou o Manuscrito. E o filme prossegue a história de mistérios e sombras do livro. Objecto de culto, existe actualment uma cópia em DVD que contou com o empenhamento directo de Scorsese e do pai da Sofia Coppola.
Manuscrito encontrado em Saragoça, dois volumes, na tradução de José Espadeiro Martins,pela Cavalo de Ferro.
11 outubro 2004
Barroso não se mete na nossa vida
Adoro estes tempos. O Presidente da Comissão Europeia, José Barroso, estava em Lisboa a ensinar os trabalhadores a serem bem comportados, com uma cantilena neo marxista (olhem que se houver uma crise na Europa são vocês quem se trama, não são os detentores do capital, esses vão para a China ou para a India, vocês e as vossas famílias é que não se podem dslocalizar, não se esqueçam que só têm a vossa força de trabalho) quando os jornalistas lhe perguntaram a opinião sobre Marcelo, a TVI, a liberdade de expressão, a concentração dos media nos grandes grupos económicos, a dependência dstes dos governos, enfim, minudências. E ele, com grande despacho: Minhas senhoras e meus senhores eu não me pronuncio sobre as vossas questões internas. E depois, paternal: Eu compreendo, vocês estão habituados a fazerem-me essas perguntas, mas eu já estou noutra, vocês têm que se habituar à mudança, olhem que entender a mudança é fundamental nos tempos que correm.
Ouvindo o Chefe da campanha
Como em tudo na vida houve coisas que não correram bem. Mas o que é isso comparado com o essencial? E o essencial é que estamos no poder. E o outro calou-se ou não se calou?
10 outubro 2004
Uma palavra
Pachacha é uma palavra muito interessante. Hoje sou completamente livre neste blog. Não aspiro a nenhum cargo público. Desde que fui despedido dos Correios que tenho uma profissão liberal, insusceptível de ser prejudicada pelas regras habituais do mercado. Não quero converter ninguém àquilo em que acredito. Não quero impressionar ninguém com falsas imagens. É domingo, Marcelo não vai falar na TVI, Santana prepara febrilmente o seu discurso às portuguesas e aos portugueses, a selecção das bandeiras nas janelas empatou no Liechenstein. E eu tenho esta liberdade de poder dizer e escrever esta palavra de três sílabas, pachacha, fofa, cheia de cor e ritmo. Uma palavra que pode ser cantada. Uma palavra sem gravidade, apesar de vir no Houaiss e surpreendentemente não estar no Aurelião. Que pode ser repetida sem risco de palinfrasia. Pachacha.
Adormecer
Quando cheguei ao pé da mulher que me disse chamar-se Loreta, na grande sala dos pequenos almoços do hotel da Lexington Av. em L., sabia que seria posto à prova. Fingira-me adormecido no quarto, quando ela acordou . Respirei lentamente, exagerando a expiração, com algumas pausas longas. Eu sei fazer de morto desde que li o russo que escreveu faz de morto, morre e ressuscita, qualquer coisa assim. Ela tocou-me com as pontas dos dedos na cara e nos cabelos. Não era particularmente agradável. Mas não podia acordar. Fazer sexo não é a maior das intimidades. Íntimo mesmo é estar sentado num sofá, lado a lado, a ver filmes ingleses com a Emma Thompson no papel principal. É andar de mota e sentir os joelhos dela nos quadris, a face interna das coxas, cabedal com cabedal. Íntimo é estar na cama a falar, depois do sexo, sem a urgência do sexo. Eu tinha resistido a essa intimidade. Bastara-me dormir com ela no rescaldo do Congresso de Antropologia, na cidade de L. Agradou-me tudo nela: não ser da minha área científica- estou farto de antropólogos culturais- não ser falante da meu grupo linguístico. Ter um sorriso enigmático, um olhar oblíquo, ser muito magra e supersticiosa. As mulheres do Mediterrâneo são assim. Religiosas. Devotas. Facilmente as imaginamos na missa, numa procissão, ajoelhadas aos pés de um altar. O nome dela é perfeito. Um nome magro, musical, cheio de vogais. Para o dizer, enrolo a língua. Sempre que o digo ela ri-se. E riu-se muitas vezes na noite de ontem. Antes e depois do champagne. Na rua, ela simulou um incómodo num pé para se apoiar no meu braço. Veio para o meu quarto, como se se tivesse enganado no andar, e simulou surpresa ao perceber que era eu quem abria a porta. Depois teve medo, ou hesitou. Mas estava avisado para com as mulheres do Sul e sei que elas precisam de muito tempo e de muito paciência, que para elas foder é qualquer coisa de transcendente. De sagrado. Não sei nada disso, nunca aprofundei. Mas sei esperar e tinha todo o tempo para esperar. O desejo dela parecia uma maré, dizia coisas na língua dela e acho que me portei bem, ela gostou. Depois era importante adormecer. Não ser avaliado. Escapar ao impiedoso escrutínio das mulheres depois do sexo. Adormecer.
sent by// Stefen
sent by// Stefen
Mistério
Não tenho o prazer de conhecer pessoalmente. Mas, do ponto de vista do leitor, um dos mistérios mais antigos, semanalmente renovado, é o de perceber se o director do Expresso é naturalmente simples ou se se trata de um efeito literário.
Semprun, Yakovlev
Semprún nasceu em 1923. Tem a mesma idade de Alexander Yakovlev, de quem Miguel Serras Pereira traduziu Um século de violência na Rússia Soviética, um livro fundamental numa colecção que já nos dera A Espécie Humana de Robert Antelme, o amigo de Blanchot.
Os Afluentes da Memória, Editora Ulisseia
Os Afluentes da Memória, Editora Ulisseia
Hipócrates
Fernando Baéz (Babelia de 09/10/04) revela que Hipócrates de Cós, responsável pelo juramento que os médicos de todo o mundo recitam, queimou os livros da Biblioteca da Saúde de Cnido. Sempre me pareceu que havia algo de errado no juramento dos médicos.
Biblioclasmo
Na Babelia deste fim-de-semana, imagens desoladoras de bibliotecas queimadas. Bagdad e os milhares de livros queimados pelos bombardeamentos democráticos. As cinzas da biblioteca de Sarajevo destruída pela loucura dos sérvios. As cinzas de uma biblioteca de Weimar. E um artigo magnífico de Fernando Báez, autor de Historia universal de la destrucción de libros ( Destino, 2004) onde aprendi, entre muitas outras coisas, que um tal Frei Juan de Zumárraga, responsável pela primeira biblioteca mexicana, queimou, em 1530 o Código dos Maias.
Sobre o mesmo tema ver Biblioclasmo, de Fernando R. de la Flor, recentemente editado pela Cotovia (Lisboa, 2004).
Dívidas
Em alguns jornais portugueses entrevistas a Jorge Semprun, a propósito da sua visita a Lisboa para lançamento do seu último livro, Vinte anos e um dia. Tenho várias dívidas para com Semprun. O primeiro livro que li dele, Ramon Mercader, levou-me ao Maurutshuis de Haia, à procura da Vista de Delft, de Vermeer. Em frente, na mesma sala, estava A rapariga com o brinco e foi assim que, perdido na translação, conheci Scarlet Joahnson antes do tempo.
09 outubro 2004
Freitas
Posso estar a ser injusto. Mas não consigo encontrar à esquerda alguém com a consistência, a lucidez, a firmeza e a independência de Freitas do Amaral. A Psicologia já explicou isto há trinta anos como o Filipe, enfaticamente, lembrou. Mas trinta anos não é muito para perceber.
Imortal (ad vitam) de Enki Bilal
A longa metragem realizada por Bilal a partir da história de Nikopol e Jill vai estrear em Portugal, através da 5ª Festa do Cinema Francês. Em Coimbra, O Imortal passa no Millenium Avenida, na quinta feira 21 de Outubro, às 20:30h. A rodagem durou três anos e envolveu os infográficos de Spielberg e Lucas, preocupados em reproduzir o "estilo Bilal", crepuscular, post apocaliptico, com personagens de corpo histórico, hibridos de deuses e humanos, saídos de uma mitologia que tem a ver com a história da Europa e dos seus berços pré helénicos mas que é ao mesmo tempo contemporânea. Tão fascinante como Jill, de cabelos, mamilos e lágrimas azuis.
Voo
As brincadeiras das crianças são iguais por todo o lado. Mais ou menos iguais: na rua da minha infância houve uma que não voltei a encontrar. Montávamos teleféricos em lego em forma de avião, aplicávamos roldanas e fazíamo-los deslizar numa corda. A montagem requeria conhecimentos do equilíbrio, peso, aerodinamismo, design e robustez. O teleférico tinha de planar por baixo da corda e no fim do percurso suportar uma aterragem sem largar nenhuma peça. Manejar a corda do alto de uma garagem ou de uma árvore era também uma precisão a apurar. A velocidade e a inclinação perfeitas ditava-as a mão hábil. Foi bom fazer construções coloridas e o voo ser o único propósito do dia.
//sent by Sofia
//sent by Sofia
08 outubro 2004
Marcelo
Se Marcelo for um homem livre virá a público contar a história. Se Marcelo for refém do que pensa ser o seu alto desígnio, virá contar outra história.
Moniz e o silêncio de Marcelo
O director da TVI era uma das pessoas de quem se esperava uma declaração. Veio fazê-la, em pose de estado, com tele ponto, olhos nos olhos dos portugueses. A declaração tem três pontos. 1. A TVI de Moniz foi construída em torno dos valores da liberdade e independência 2. Marcelo é credor da maior admiração pelas suas qualidades de inteligência, etc. 3. Os valores chave que norteiam a prática jornalistica de Moniz e da TVI saem deste episódio incólumes.
A leitura desta declaração é unívoca. Moniz obteve do patrão da Media Capital a garantia de que, a ter havido pressões para amordaçar Marcelo, elas não tiveram efeito. A conclusão é de que se tratou de uma demissão, de uma desistência, de uma capitulação do próprio comentador.
Pressionado pelo governo e pelo Partido, Marcelo teria desistido da sua principal tribuna.
Moniz limpa a Media Capital, a TVI, e de certa forma o Governo, e torna o silêncio de Marcelo insustentável.
A leitura desta declaração é unívoca. Moniz obteve do patrão da Media Capital a garantia de que, a ter havido pressões para amordaçar Marcelo, elas não tiveram efeito. A conclusão é de que se tratou de uma demissão, de uma desistência, de uma capitulação do próprio comentador.
Pressionado pelo governo e pelo Partido, Marcelo teria desistido da sua principal tribuna.
Moniz limpa a Media Capital, a TVI, e de certa forma o Governo, e torna o silêncio de Marcelo insustentável.
Nobel
Se eu votasse, o Nobel da literatura teria sido para Elizabeth Costello, escritora australiana, autora de A casa na rua Eccles, ainda não traduzido entre nós.
Outono, take 3
Se a vida corre tão bem
tanto faz chuva como Sol.
O ar das serras,
e cada um com o seu par por sombra.
Que a pele do outro nos sirva
de abrigo.
O dia é este e a marmelada
está quase a ser comida.
copiado de Sofia
tanto faz chuva como Sol.
O ar das serras,
e cada um com o seu par por sombra.
Que a pele do outro nos sirva
de abrigo.
O dia é este e a marmelada
está quase a ser comida.
copiado de Sofia
07 outubro 2004
Correio
Entrei no restaurante dos Sábados. De todos os Sábados em que não houve doença ou ausência ou mais contrariedades menores. Levava a criança pela mão, embora não exactamente a mesma criança. Ou sim, exactamente a mesma criança, agora roubada de alguma coisa do que é ser criança. Foi sentada à mesa, a criança ao meu lado distraída com a manteiga, que aconteceu o pensamento, a voz do narrador que reconhece todos os acontecimentos antes e depois e avançava: é a tua vida, lembras-te? Dois dias mais e saía do serviço quando voltou a acontecer. Comprava eu o bolo de Ançã à Dona Alice quando me surpreendeu a minha vida a voltar. Passou depois a acontecer muito, mas não demais, para eu recolher as marcas todas do que poderia ter esquecido, pequenas. Se escrevesse a minha vida teria de contar do lenço preto da Dona Alice e do sabor das queijadas de Tentúgal, do som da campainha da casa, do cheiro do cabrito na travessa, do perfume da minha mãe, da pele lisa da Inês, das canções da rádio no carro, das primeiras castanhas no Outono, duma manta azul no braço do sofá, agora eu sei.
//sent by Sofia
//sent by Sofia
Antologia de O Mal: Cesare Pavese
Virá a morte e terá os teus olhos -
esta morte que nos acompanha
de manhã à noite, insone,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra inútil,
um grito calado, um silêncio.
Assim os vês em cada manhã
quando sobre ti só te inclinas
ao espelho. Ó querida esperança,
nesse dia saberemos também nós,
que és a vida e és o nada.
Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como largar um vício,
como ver ressurgir
no espelho um rosto morto,
como escutar lábios fechados.
Desceremos o remoinho mudos.
Cesare Pavese
In Trabalhar Cansa; tradução de Carlos Leite, Livros Cotovia, 1998
esta morte que nos acompanha
de manhã à noite, insone,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra inútil,
um grito calado, um silêncio.
Assim os vês em cada manhã
quando sobre ti só te inclinas
ao espelho. Ó querida esperança,
nesse dia saberemos também nós,
que és a vida e és o nada.
Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como largar um vício,
como ver ressurgir
no espelho um rosto morto,
como escutar lábios fechados.
Desceremos o remoinho mudos.
Cesare Pavese
In Trabalhar Cansa; tradução de Carlos Leite, Livros Cotovia, 1998
Grande Capital
O comentador (e era um dos mais brilhantes intelectuais da direita, o ex- líder do partido do sistema) falou mal do governo e o dono da cadeia privada despediu-o. Se é assim que a Media Capital trata as pessoas, imaginem como será com o Grande Capital.
Bilhete Postal
Caro Amigo
Escrevo só para lhe dizer como vão as coisas aqui. Dentro de momentos saber-se-á o novo Nobel da Literatura. Coetzee não pode voltar a ganhar e estou um pouco desinteressado. Não, este ano não vou adivinhar e mesmo que o fizesse, essa coincidência não me iria alegrar. Parece-me que todos os meus escritores morreram ou não atingiram a notoriedade de um galardão assim. Ontem, na Figueira da Foz, vi o activista actualmente destacado para o Ministério do Mar. O criminoso volta sempre ao local do crime. A visita foi discreta. Estavam só os fotógrafos e os jornalistas desta boa imprensa regional. O André foi para férias e não sei se volta. O André, como sabes, está sempre com ar de partir.Loreta inclina-se para o Mamute, já que pergunta.
Escreva sempre
Escrevo só para lhe dizer como vão as coisas aqui. Dentro de momentos saber-se-á o novo Nobel da Literatura. Coetzee não pode voltar a ganhar e estou um pouco desinteressado. Não, este ano não vou adivinhar e mesmo que o fizesse, essa coincidência não me iria alegrar. Parece-me que todos os meus escritores morreram ou não atingiram a notoriedade de um galardão assim. Ontem, na Figueira da Foz, vi o activista actualmente destacado para o Ministério do Mar. O criminoso volta sempre ao local do crime. A visita foi discreta. Estavam só os fotógrafos e os jornalistas desta boa imprensa regional. O André foi para férias e não sei se volta. O André, como sabes, está sempre com ar de partir.Loreta inclina-se para o Mamute, já que pergunta.
Escreva sempre
Que faz Lourenço ali
Eduardo Lourenço subiu ao palco da gala da SIC para receber um prémio. Tentou assinalar a sua diferença com uma frase sobre a sociedade do espectáculo. A música de fundo, qualquer coisa entre Vangelis e a banda sonora do Novo Gladiador, interrompeu-o. A sociedade do espectáculo vence os seus menores actores.
Requiem pela Alta Autoridade não sei de quê
Quando se esperava que a Alta Autoridade classificasse a atitude do Ministro santanista como uma ameaça à liberdade de expressão e já quando era conhecido o despedimento de Marcelo, aquela instituição sampaiana resolveu abrir um inquérito... à isenção do comentador da TVI. Já nos ríamos de cada vez que ouvíamos esse título honorífico aplicado a instituições sampaianas (Alta Autoridade para a Saúde p.ex.) As instituições sampaianas costumam divulgar medidas profilácticas contra as epidemias um ano depois do último morto ser sepultado, dar conselhos relativamente à febre da carraça quando começam as chuvas do Outono, pedir ao chefe dos bandidos para roubar com elegância e sem causar outros danos às vítimas. Desta vez falou na hora. Todos nos sentimos melhor, com os nossos direitos mais protegidos, quando uma Comissão enfrenta assim, corajosamente, os mais fortes poderes.
Quem calou Marcelo
O primeiro ministro foi ao Parlamento e a televisão (excepto a TVI, ou engano-me?) recolheu imagens que não devem ser esquecidas. Era a cara de um culpado. Não articulava uma frase coerente. Balbuciava inocência a um polígrafo com todos os alarmes ligados. Os portugueses e as portuguesas conhecem-me, repetia. Eu nunca, mas nunca, silenciei ninguém. Talvez não tenha sido ele a falar com o patrão da TVI. Talvez tenha mandado o valete da Tulha. Ou o boxeur. Ou o activista colocado no Ministério do Mar, quem sabe. Esse tem muita experiência a tramar o Marcelo.
06 outubro 2004
Do Contraditório na SIC Notícias
Ontem na SIC Notícias os comentadores foram Luís Delgado (eufórico)e o seu vice director e ex patrão, B. Resendes. Delgado é o mais acérrimo defensor do Governo. Perdeu os lobos frontais e esquecendo-se de que está ali a título de comentador diz nós, referindo-se talvez ao governo e seus apoiantes. Resendes faz de moderado, de polícia bom. O pivot ri-se. O seu riso é o nosso último reduto de inteligência e eles talvez ignorem de que se ri.
Denunciem este blog à Alta Autoridade
Marcelo e Carvalhas despedidos no mesmo dia. A coisa promete.
Nunca se saberá exactamente o que sucedeu. Eles têm as suas fidelidades e elas vão gerir as suas versões. Mas um dia depois de um obscuro porta voz de Santana ter feito queixas à Alta Autoridade (alguém que me explique que organismo sampaiano é este?) Marcelo foi despedido. Podem lembrar que era uma homilia, que o jornalista estava sentado de cócoras como dizia Fernando Alves, que não existia contraditório. Marcelo foi despedido por delito de opinião, porque o livre exercício crítico que praticava era intolerável para Santana. Os democratas do PSD que se envergonhem do que estão a fazer a este país. Quando as empresas privadas da comunicação social forem só delgados e resendes, quando não restar senão teatenteinment, quando o telejornal for a menina morta e o porto de novo em forma então virão apagar os blogs, todos os blogs.
A propósito: apesar do que diz Galvão reafirmo que esta estratégia foi concertada com um autarca de peso nA Tulha, em Ponte do Lima.
Nunca se saberá exactamente o que sucedeu. Eles têm as suas fidelidades e elas vão gerir as suas versões. Mas um dia depois de um obscuro porta voz de Santana ter feito queixas à Alta Autoridade (alguém que me explique que organismo sampaiano é este?) Marcelo foi despedido. Podem lembrar que era uma homilia, que o jornalista estava sentado de cócoras como dizia Fernando Alves, que não existia contraditório. Marcelo foi despedido por delito de opinião, porque o livre exercício crítico que praticava era intolerável para Santana. Os democratas do PSD que se envergonhem do que estão a fazer a este país. Quando as empresas privadas da comunicação social forem só delgados e resendes, quando não restar senão teatenteinment, quando o telejornal for a menina morta e o porto de novo em forma então virão apagar os blogs, todos os blogs.
A propósito: apesar do que diz Galvão reafirmo que esta estratégia foi concertada com um autarca de peso nA Tulha, em Ponte do Lima.
Talvez o Mamute
Depois de Coetzee toda a escrita, toda a leitura parecem irrisórias. Este blog precisava de um Félix Manápulas que lhe desse sentido. Mas desta vez até tu, André Bonirre, estás longe. Chegarás a tempo?
05 outubro 2004
Elizabeth Costello
Elizabeth Costello, de Coetzee, está construído como um combate de boxe em nove rounds. Elizabeth Costello é Coetzee, numa idade em que o desejo o abandona e o aproxima da matriz, permitindo ver tudo mais claro, mas apenas a espaços, como iluminações num corredor escuro. Somos uma coisa insignificante. Uma espécie entre as outras. Estamos permanentemente a julgar e a ser julgados. Às portas do Inferno. Transportamos as nossas fracassadas crenças juvenis. Em Deus, no Socialismo. No último reduto das nossas crenças: a arte, Dostoievsky, Rilke ou o van Gohg entrapado, digno da maior piedade. Transportamos uma culpa insuportável. A culpa da grande matança. De um holocausto actualizado e que se estende aos matadouros onde cegamente abatemos os nossos prisioneiros, os outros animais. Somos levados às cordas, capítulo a capítulo, até ao juízo final numa cidade de fronteira, algures entre a Itália e a Áustria. Habitamos um stalag que é o cenário de todos os campos de detenção, do gulag ao tarrafal. Nessa cidade, os habitantes falam as diversas línguas do mundo, mas podemos ouvir tudo na língua comum da espécie, o inglês. Não sabemos porquê, mas queremos passar a porta, ver a luz. Preenchemos um formulário que é sempre o mesmo, sendo certo que já não nos será dado ver a deslumbrante claridade que viu Dante.
O íntimo desconhecido
Ah maldita hesitação! pois não foste tu que me perdeste, e bem longe, ó estações, das vossas salas de espera!Max Jacob, O Copo de Dados
Dia Um
É o dia em que deixaste de perder proteínas. Não se devia contar o tempo, mas agora o tempo conta-se de outra maneira e essa contagem, sabes, é-te altamente favorável. Acho que já podes dançar, bailarina.
Questão de Cachet
Espanta-me o silêncio da Associação Protectora dos Animais relativamente ao programa da TVI Quinta dos Animais (ver o que escreve J. nas Terras do Nunca). A imagem do porco, com o focinho luzidio bem junto da câmara é inquietante. O burro a quem a apresentadora, num registo de boçalidade inultrapassável, alimenta cenoura após cenoura é a tua vergonha Jammes, e a vergonha de todos os burros, sejam quais forem as suas crenças quanto à salvação final. E que dizer de Cinha Jardim, expondo o choro da filha na despedida, mais preocupada com o blush e a queda das comissuras labiais? E do activista actualmente colocado no Ministério do Mar, que prometeu à senhora que a levaria para o Palácio Presidencial para funções representativas, quando soasse a hora?
Salva-se José Castelo Branco: quando a apresentadora, eufórica sabe-se lá porquê, desatou aos gritos de ai-ui, certamente acreditando ser aquilo um must do erotismo rural, ele disse-lhe, com um tom de voz que a gelou, que também dava os uis-ais que fossem precisos, mas que para isso era muito baixo o seu cachet.
Salva-se José Castelo Branco: quando a apresentadora, eufórica sabe-se lá porquê, desatou aos gritos de ai-ui, certamente acreditando ser aquilo um must do erotismo rural, ele disse-lhe, com um tom de voz que a gelou, que também dava os uis-ais que fossem precisos, mas que para isso era muito baixo o seu cachet.
Uma boa razão
A monarquia constitucional portuguesa era provavelmente um bom regime (melhor do que a segunda República, seguramente) e as élites cultas da classe política estiveram entre o melhor da Europa do século XIX. Mas há sempre uma boa razão para comemorar o Cinco de Outubro.
O Ministro Espantoso
Este homem, cujo curriculo político se resume a essa estranheza de "ter sido sempre santanista", teve ontem o seu momento de glória ao pedir a cabeça do Professor Marcello. É espantoso. A criatura digeriu mal o curso intensivo de relações com os media e julga-se já em 2005 com a classe média arruinada, os jornalistas convenientemente domesticados, as televisões a mastigar reality shows para milhões de desempregados satisfeitos. Tudo isto já foi escrito no Barnabé, na Grande Loja e pelo FNV. Ora o que não sabem, mas este blog está em condições de revelar é que esta estratégia foi preparada em Ponte do Lima, mais exactamente no Tulhas de Ponte de Lima, num jantar com autarcas nortenhos.
04 outubro 2004
Pula Pula Pulga
Atenção ao novo link desta pulga. Onde vale a pena ir. Um blog com o prestígio do g de O'Neill a pular pela mão do Manuel Resende. Um blog de memória e atenção. Que, por exemplo, deu o relevo devido ao artigo de Vasco Pulido Valente sobre a estratégia da direita e as eleições no PS. Pula pulga, não te canses. E pica também essa esquerda moribunda.
Adições
Rititi., uma mulher em luta contra o Machão Paneleiro. Mas não só.
Alerta Amarelo, talvez o grau adequado de alerta.
The Serendipitous Cacophonies, o blog que sobreviveu ao seu prazo de validade.
Alerta Amarelo, talvez o grau adequado de alerta.
The Serendipitous Cacophonies, o blog que sobreviveu ao seu prazo de validade.
03 outubro 2004
A agenda de Santana
Santana, na praça do Obradoiro, mostrou-se surpreendido com a popularidade de Zapatero. Na foto de grupo estava absorto. O pormenor da mão é esclarecedor. Contava pelos dedos: retirar do Iraque, apagar a face de Portugal da cimeira dos Açores, aprovar o casamento gay e a adopção pelos casais homossexuais,...
Agualusa
Suponho que a verdadeira maldade é desinteressada, isto é, suponho que os homens realmente cruéis não precisam de nenhum bom motivo para exercer a crueldade.
José Eduardo Agualusa, na Pública, a propósito de uma exposição do Centro de Cultura Contemporânea em Barcelona.
Hellmut Wohl
O Mal esteve muito activo este fim-de-semana. Na Pública, Hellmut Wohl, um professor que vai comissariar a retrospectiva de Júlio Pomar no CCB, disse a Maria João Seixas que o diabo só aparece de frente no Juízo Final. Mas a frase que vale toda a entrevista é a frase final. Essa frase, e o pedido que a inspirou, derrotam o Mal.
MJS: Dá-me uma palavra de eleição.
HW: Almoço. Acho que aquilo de que vou sentir mais falta é do almoço.
O pequeno-almoço de Loreta
Quando me estava a vestir, naquele quarto de Hotel da cidade de L., via o Mamute adormecido sem distinguir os traços da sua cara. Psique, pensei. Saí do quarto com ele adormecido, sem me lavar. Por nenhum motivo romântico. Quando leio essas mulheres que ainda o sentem dentro delas, inundadas de prazer, sei que escrevem um guião masculino. Eu simplesmente prefiro lavar-me em casa. Ou no meu quarto, naquele caso. Não olhei a face do Mamute adormecido. Apesar de ser quase dia, de haver alguma luz no quarto, de o poder surpreender no sono. Estava contente comigo. Tinha-me saído bem daquela noite americana. Não me via como Esquilo nem como Castor, afinal uma virago essa Castor. Tinha dormido, toda a noite, com um homem amável, que não se apressara, se esforçara por me dar, porque não hei-de escrever esta palavra antiga?, volúpia.
Atravessava-me um pensamento. Intermitente. Como uma música discreta, hesitante. Que ganhava coragem. Tocava na minha cabeça quando entrei no meu quarto, no chuveiro, ao vestir-me e no pequeno almoço em que escrevi parte destas notas. Talvez o Mamute seja o homem que me vai carregar. Não o ter olhado, não me ter logo lavado dele, vai permitir que a volúpia permaneça.Afinal aproveitava-se alguma coisa do guião. A cara dele será para sempre as caras dos rapazes com quem dormi, ou não dormi mas desejei. E um dia as caras fundir-se-ão na cara real do Mamute e poderei fitá-lo sem medo de me afastar desta calma.
A avó Aurora dizia : Antes um burro que me carregue que um cavalo que me derrube. E apesar do desmentido risonho da minha mãe eu imaginava que ela tivera, em nova, um grande desgosto de amor e se tinha afeiçoado ao meu avô, plácido, complacente para com a ditadura, gerindo a empresa da família com solidez desprovida de brilho. Agora era a minha vez. Ainda tinha na memória dos sms a resposta do meu namorado. A resposta certa. Pode-se perder mesmo tendo dado a resposta certa. Ele tinha respondido à mulher que eu era muito tempo antes. A madeleine desfazia-se-me na língua e sabia que a segunda metade da vida estava a acabar.
sent by//Loreta Granada
01 outubro 2004
Gismonti e Olivinha Byington no TAGV
Ter-se-ão encontrado no fim dos anos setenta. Ele compôs umas músicas para os versos de um amigo. Ela andava por perto e cantou-as. Devia ser então uma criança adorável. Agora revisitam esses anos. O fim dos anos setenta estava cheio de coisas desinteressantes. Não melhoram por irem buscá-las. Dona Maria da Conceição e os artistas convidados emocionam-se. É próprio da sua condição emocionarem-se. Os netos de Dona Maria da Conceição, esses, merecem mais.
Antologia de O Mal: Gerrit Kouwenaar
É um dia claro
É um dia claro é um mundo escuro
entre a verde erva a carne é vermelha
homens deixam-se vergar por um naco de pão
é um dia escuro é um mundo claro
riem os homens e tudo é possível
percorri o caminho para colher uma maçã
mas no caminho havia uma cobra
a vida é boa mas a vida podia ser melhor
todas essas guerras entre tréguas eternas
todo esse morrer para viver ainda mais
a vida é boa mas a vida podia ser melhor
a carne é dura de roer mas mais tenra que os ossos
percorri o caminho para escapar à morte
mas no caminho havia um homem de ferro
enquanto a boca mastiga o ar rarefaz-se
enquanto o pão se digere a mão invalida-se
enquanto falamos na casa ela incendeia-se algures
é um dia escuro é um mundo escuro
os jornais noticiam como aconteceu e como não acontecerá
percorri o caminho para construir uma cidade
mas projectei torres em subterrâneos
no quadro o mestre-escola escrevia futuro amor e deus
salve a nossa pátria, e eu todo lábios e olhos
imitava-o na lousa
mas lá fora dançava a rapariga tangível
flutuando como se não houvesse leis da gravidade
percorri o caminho para encontrar o caminho
mas atrás do pudim havia um prato vazio
Gerrit Kouwenaar, Holanda, 1923-
de, A Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro, Assírio & Alvim, 2001
É um dia claro é um mundo escuro
entre a verde erva a carne é vermelha
homens deixam-se vergar por um naco de pão
é um dia escuro é um mundo claro
riem os homens e tudo é possível
percorri o caminho para colher uma maçã
mas no caminho havia uma cobra
a vida é boa mas a vida podia ser melhor
todas essas guerras entre tréguas eternas
todo esse morrer para viver ainda mais
a vida é boa mas a vida podia ser melhor
a carne é dura de roer mas mais tenra que os ossos
percorri o caminho para escapar à morte
mas no caminho havia um homem de ferro
enquanto a boca mastiga o ar rarefaz-se
enquanto o pão se digere a mão invalida-se
enquanto falamos na casa ela incendeia-se algures
é um dia escuro é um mundo escuro
os jornais noticiam como aconteceu e como não acontecerá
percorri o caminho para construir uma cidade
mas projectei torres em subterrâneos
no quadro o mestre-escola escrevia futuro amor e deus
salve a nossa pátria, e eu todo lábios e olhos
imitava-o na lousa
mas lá fora dançava a rapariga tangível
flutuando como se não houvesse leis da gravidade
percorri o caminho para encontrar o caminho
mas atrás do pudim havia um prato vazio
Gerrit Kouwenaar, Holanda, 1923-
de, A Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro, Assírio & Alvim, 2001