No início deste texto devo agradecer a Friedrich Sertürner , nascido em Setembro de 1783 em Neuhaus, o farmacêutico alemão que viria a ser o proprietário da
Rathaus Apotheke , em Hamelin, e em 1803 descobriu a morfina.
E também a Fryer e Walser, que em 1976 sintetisaram o Midazolam.
E ainda aos belgas que criaram o opióide conhecido por Fentanyl , um medicamento cujos efeitos são tão apreciados que o tornaram numa das drogas de rua mais procuradas nos Estados Unidos, a chinesa branca, com preços que, no que se refere aos selos transdérmicos, oscilam entre 10 e 100 dólares a unidade.
O Midazolan permitiu-me perder a consciência quando ela não me fazia absolutamente nenhuma falta. Perder a consciência durante horas que não existiram, as únicas horas da minha vida em que fui inteiramente senciente, vivo e senciente como uma bactéria, um fungo, ou o ramo de antúrios que a dona C., a senhora da rouparia, me enviou no dia seguinte. O Midazolam amnesiou-me para os acontecimentos posteriores à sua piedosa administração, durante todo o tempo em que inconsciente, amnésico, analgesiado, relaxado, e perfundido em todos os orifícios naturais e três artificiais, anestesiado mas vivo, retiraram a bola de sangue da metade mais gasta do meu corpo.
Quando acordei, todos à minha volta eram gentis, tocavam-me com pele sedosa e refrescante, os homens só queriam o meu bem, as mulheres tinham tranças coloridas e os lábios escarlates. Embora não tivesse recuperado a memória, registei, à minha volta, a maior concentração de meios humanos e materiais. Vistos de baixo, quase todos desconhecidos, não desmereciam da visão que Bertrand Morane não pôde ter. A diferença era que eu não descia. Não me mexia. Tinha dores se respirava, parecia pregado à cama por quatro pregos gigantes que desciam da grelha costal até à fossa ilíaca. Sempre que queria voltava àquela simpática condição senciente. Periodicamente, uma onda nos vasos fazia-me subir ou flutuar. Estava consideravelmente desligado de preocupações sobre a minha existência e a dos que se afadigavam em conservá-la. Sabia que a realidade existia, embora ainda não estivesse informado sobre a nomeação de Vital Moreira para o Conselho Supervisor da EDP. Mas a realidade parecia-me festiva.
Mais tarde disseram-me que estava sob o efeito de uma dose de Morfina que não precisarei. Agora, que o opióide usado é o Fentanyl transdérmico, devo confidenciar-vos que, no meu caso individual, a grande diferença entre ambos não reside na qualidade da analgesia, nem nos efeitos colaterais, que aliás têm todos uma tonalidade ambígua, sempre mais próxima do prazer que do mal-estar. Nenhum das drogas altera a percepção da realidade. Sempre soube que o mundo era violento e injusto, o lugar onde as desigualdades triunfam, os proprietários ditam a lei aos servos da gleba. Mas, sob a morfina, parecia-me que se organizava uma resistência inteligente e fraterna, educada e de bom gosto, cujos representantes eram aquelas mulheres e homens altos, silenciosos, eficazes, organizados, cumprindo uma coreografia com sentido. Visto através das pupilas punctiformes do Fentanyl transdérmico, este mundo continua a existir. Como obra de um deus ignorante e mal humorado. Uma coisa má sem remissão. Uma noite de mil anos, como dizem que foi a Idade Média e vai ser o fim da história, a vitória do mercado sem regulação. E isto sem revolta nem denuncia, um tempo baço e intermédio, onde os poderosos fingem discordâncias e os de baixo cabeceiam na sala de estar, frente ao écran gigante de plasma .