Ontem , no Câmara Clara, o tema eram os livros e o cânone que eles definem . António Feijó , um dos convidados, explicou que o romance do século XIX vivia de personagens com uma
inflação de si próprios que, além do mais, transportam
uma fantasia para a qual não possuem os meios. Foi essa a doença que vitimou Ema Bovary e da qual sofro desde que me conheço. De facto, passei as primeiras décadas vivendo a minha vida como um romance do qual era simultaneamente o narrador e a atormentada personagem. Como os miúdos a um canto da sala, em conversa interior. Ou na praia atlântica da infância, contra as ondas, num concurso interno em que os concorrentes, sempre eu, se desdobravam em cometimentos e perfomances cada vez mais perfeitas , para o aplauso das dunas .
Felizmente encontrei Enrique Vila-Matas que vinha escrevendo sobre o meu drama pessoal a uma luz de promessa bruxuleante.
Ele explicou-me que era possível viver compatibilizando a necessidade de aparecer e de me anular.
No El País, este fim-de-semana,
Vila-Matas recorda Marcel Duchamp, a propósito de um
livro que comprou em 1972, cuja capa lhe despertou a atenção.
Nesse livro Vila-Matas encontrou a seguinte frase, numa resposta de Duchamp: (…)
Tive sorte, pude passar entre as gotas. E em outra passagem da conversa declara que viveu
uma vida absolutamente maravilhosa. Vila-Matas discorre sobre os motivos que terão transformado no mais importante artista do século XX, um autor discreto, um
anartista que teve com a arte uma posição “
agnóstica e não se integrou em nenhum dos movimentos dos seus contemporâneos célebres. Nesta postura de Duchamp encontra Vila-Matas a grande inspiração da sua obra. Estar e não estar.
Desaparecer numa viagem das linhas de alta velocidade de Andaluzia, em Nápoles, nas montanhas onde Walser fez a sua última caminhada, numa rua assombrada de Paris, ou continuar sendo, no mesmo escritório de há trinta e cinco anos.
Viver, no Inferno, uma vida absolutamente maravilhosa.
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