30 setembro 2010

FMI (II)




Ao contrário do que o defuminado Vital Moreira acreditava, a crise não era uma invenção dos jornalistas desatentos à retoma e o FMI entrou em Portugal pela mão doridas do partido socialista. Fui ver as reacções dos socialistas de esquerda: era inevitável disse um, e os outros em seguida, em uníssono e depois do chefe. Vivam os direitos dos transexuais, disseram os coleguinhas do Jugular. Como se não fosse o dia em que os direitos dos transsexuais ao trabalho, à saúde, à educação, à reforma e à esperança na vida tivesse recebido grave ofensa na terra ( e algum consolo no céu).
Aí temos então as medidas terapêuticas. Sem que se tivesse feito o diagnóstico. Pelas mãos dos presumíveis patogénicos ou dos seus vectores ( inevitáveis). Sem prognóstico. Como se dissessem a um doente: - Não sabemos bem o que te provocou este mal-estar. Vais tomar os nossos medicamentos e adoecer ainda mais. Se cumprires as receitas, ao fim de um tempo indeterminado, talvez fiques como estás agora.
Sinto, no meu corpo, vestígios de uma substância proibida. Rui, se a cozinha dos teus pais ainda estiver preparada, eu arranjo a gasolina, tu as garrafas e a tua mãe que comece a preparar os pavios.

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27 setembro 2010





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23 setembro 2010



...não sabemos a nossa posição. Nem na vertical, nem na horizontal.



O presidente do Sindicato da Polícia ao ser entrevistado sobre as razões da greve. Sic, hoje

22 setembro 2010





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20 setembro 2010





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19 setembro 2010

Que acha ele disso?



Vou buscar a minha mãe para almoçar. Faço as perguntas do costume. Como correu a semana, o que pensa da abertura das aulas, em que escola está este ano o António, que livro anda a ler. Caminhamos na rua e a minha mãe cansa-se. Para a minha irmã, a minha mãe não se cansa. Não se cansa nem tem doença nenhuma. Se respira mais depressa é por ansiedade. Se tem hipertensão é óptimo, porque lhe chega mais sangue ao cérebro. Se não quer comer é excelente porque os gordos enchem as enfermarias dos hospitais. (Os gordos, os obesos estão na última linha do ranking de consideração social da minha irmã ). Com esta receita a minha mãe é praticamente imortal. A minha mãe conta coisas que se passaram em 1942 com a mesma certeza e abundância de pormenores com que relata as novas competências das crianças que a visitaram durante a semana. A ocupação actual da minha mãe é receber visitas: antigos alunos, familiares, colegas, electricistas . Tem saudade do senhor do Circulo de Leitores, das senhoras das missões, dos evangélicos do sétimo dia, do vizinho comunista. Houve um tempo em que a minha mãe descontava para as Enciclopédias, para os meninos angolanos, o Grémio, a Universidade popular, a Coimbra Activa, a Alta Não Pode Morrer, os Antigos Estudantes e a Festa do Avante. Agora está tudo decadente, diz a minha mãe. Para lhe provar que não é bem assim levo-a aos bairros novos. Ela emite opiniões. Tem opiniões sobre tudo. Se alguma doença a atingiu foi a saturação de informação. Lê jornais e revistas, assiste a debates. Está geralmente de acordo com o Miguel. Primeiro o Sousa Tavares, agora o Esteves Cardoso. Embora os distinga perfeitamente ela faz gala de não citar pessoas com três nomes. Diz : - Como escreveu o Miguel...Pausa. E nós sabemos que é o MST. Pausa maior se se trata do MEC. Houve tempos em que ela tinha um terceiro Miguel, o outro. Agora esqueceu-se dele, absolutamente desinteressada da vida parlamentar. Nos últimos anos eu tendo a discordar das opiniões da minha mãe. Ou dos maitres a penser da minha mãe. Ofereci-lhe um iMac de ecrã gigante para ela ler blogs, conhecer outros Migueis e, confesso, as minhas próprias opiniões. Ela encontrou o Facebook, entusiasmou-se uma semana até perceber que nenhuma menina do Liceu Nacional Infanta Dona Maria, da Quinta da Rainha ao Colégio de S. Bento, queria ser sua amiga .

Hoje, como sempre, a minha mãe dava opiniões sobre tudo e eu ia discordando dela, suavemente, para manter a conversa acesa, enquanto víamos a nova Brotero e o gourmet do Corte Inglês. E então apeteceu-me perguntar-lhe o que achava o meu pai daquilo. Sim, qual é a opinião do meu pai sobre aquele assunto. Há momentos assim. Rolamos devagar na cidade, não há frio nem calor, nem vento ou chuva, nem fome, angústia ou revolta e eu não a incomodo com os impostos a pagar. Há muito tempo que não há polícia que nos siga, ameace, prenda. Os meninos estão algures, a salvo. Não vai ser a Palestina a dividir-nos, hoje. Que diferença faz um tempo verbal. Que diferença faz um ano, uma década, um século. Debaixo do asfalto está a terra vermelha de Montarroio e a minha mãe sabe a resposta.

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17 setembro 2010

Fedorentos


Um verdadeiro comunista este colaborador do blog 5 noites. Primeiro desqualifica o indivíduo (um novo-velho, um riquinho. da família dos Amorins Belmiros, etc). Depois o seu humor. Por acaso a realidade é muito forte. Francisco Lopes está muito bem caracterizado como o candidato do PCUS. O que devia agradar ao tal Vidal mas, surpreendentemente o irrita.

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16 setembro 2010

Born again




Sempre esperei tudo da literatura. Um nome para as coisas, o espanto, o consolo, a ordem e a desordem, o prazer. E ela nunca me enganou.
Esta semana o Bonirre parecia diferente, de uma maneira que não sabia descrever. Até encontrar esta passagem, logo no início de The Finkler Question (Howard Jacobson, um dos livros da short list do Booker Prize):
A preternaturally youthful look- this unconsummated expectation of tragic event. The look which people born again into their faith sometimes acquire.
Era isso. Tinha mergulhado de novo na sua fé.


foto de Dr Gica em pescada nº5

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Pop Dell'Arte


Dr. Gica em pescada nº5

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15 setembro 2010

Os velhos do baby-boom


Jeff Wall

Há uns anos mudei-me do bairro operário para uma rua construída numa expansão que a cidade sofreu no pós-guerra, em terrenos ainda próximos do centro.
No bairro operário reinava o silêncio. Reformados, mulheres-a-dias, desempregados de longo curso. Agora, a minha rua, é o querido mês de Setembro filmado no S. João do Porto. Quase não devem restar sobreviventes das esperançadas famílias do baby boom português. Mudaram-se para Celas, para a Solum, para os bairros novos da periferia. Saíram da cidade. Morreram, quase sempre sozinhos, em casas que tinham ficado demasiado grandes para eles, partilhadas por outros animais doentes. Quando morrem, aparecem familiares apressados que abrem as janelas, dão uma limpeza à casa, pintam as paredes, mudam as persianas e põem os quartos a alugar a estudantes, preferem-se meninas. Quem aluga são quase sempre rapazes. Vêm de Lamego/ Tarouca, Macau, Bremerhaven e de Angola. Abastecem-se no Pingo Doce. Os pais vêm trazer os de Lamego/Tarouca. Eu vou à Estação Velha buscar a menina de Macau, procedente de Londres-Gatwick. Trazem arcas frigoríficas carregadas de comida, caixotes com batatas, cebolas, enchidos e uma lata de azeite.
Não sei o que fazem durante o dia, à excepção da menina de Macau que faz pesquisa num Arquivo da Universidade. Ao anoitecer encostam-se aos portões. Têm um ar estival, de calções e cabelo em desalinho. As janelas das casas estão abertas e deixam ver a extraordinária desarrumação que por lá vai: computadores, um ecrã de televisão, roupa amontoada. Depois de jantar, enquanto a menina de Macau tenta estudar, começam a beber cerveja. Falam alto, nas varandas e o tom de voz sobe com a lua e o calor da noite. As mulheres têm a voz estridente com que as pastoras juntavam as ovelhas tresmalhadas. Os homens dizem palavras fortes. A menina de Macau há muito que fechou a luz do quarto. Os velhos entricheiraram-se nos apartamentos residuais. Os velhos não protestam. Os velhos do baby boom, ironia da história, já não protestam. Aceitam o comportamento da juventude como o calor de Setembro, os fogos ou a enurese. Morrem devagar, como os peixes nos aquários, os periquitos nas gaiolas, os gatos cegos dos apartamentos dos velhos do baby-boom.

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Não te cales, Manuel



Sempre soubeste: a morte
Sempre sentiste: a morte.
As tabernas, fechadas, eram
apenas uma espécie de refrão.


Mas isso, terás de convir,
não desculpa o facto
de andares há vinte anos
a escrever o mesmo.

Faz como as tabernas: cala-te.


Tema sem variações
in A Nova Poesia Portuguesa, Manuel de Freitas

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13 setembro 2010

Tony Judt



por Timothy Garton Ash, no New Yoork Revue of Books

Lady Gaga, marxista em Monsaraz



Lady Gaga recebeu um prémio vestida com carne de outros animais. Um bando de energúmenos matou um touro em Monsaraz. Um marxista descobriu o Mequenold. Como dizia um poeta esquecido: dia, dias.

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Capítulo I


Foi finalmente tornado público o Acórdão do tribunal que condenou os réus do processo Casa Pia. Mil e oitocentas páginas, ao que parece. Fico atento ao resumo que António Marinho e Daniel Oliveira irão certamente fazer. Pode ser em capítulos, não importa. Quem esperou 6 anos...

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Vivam os Mineiros Palentinos

12 setembro 2010

Claude Chabrol (1930-2010)




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10 setembro 2010









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O senhor Ferraz era um columbófilo convicto



Salazar era um democrata-cristão convicto- primeira página do i.
O Dantas não cheirava mal da boca. O senhor Ferraz era um columbófilo convicto. O Marinho Pinto um ministro da Justiça . Os povos do Mundo , à excepção dos brasileiros, queriam todos ser portugueses. D. Sebastião também era convicto de qualquer coisa que de momento não me vem à memoria. Os republicanos de Saló eram estetas convictos.O Mengele um cientista. O coronel Horácio, da Censura Prévia, era convictamente pela liberdade de expressão. Os amigos de Álvaro de Campos eram campeões de tudo.
Faltou-lhes a conjuntura histórica, um historiador académico e uma jornalista que lhe aparasse a baba.

(PS: E ao senhor Ferraz os pombos).

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09 setembro 2010





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Os Mistérios de deus

Dizem que o cérebro dos humanos foi formatado para , atrás de cada acontecimento, procurar a sua causa. E haverá decerto explicação para o fascínio de Portas pelas feiras agrícolas, as razões que unem um campeão do novo paradigma da justiça social aos predadores das crianças asiladas, o Bastonário dos advogados ao Pato Bravo, as exibições da selecção de futebol gaulesa e a inexorável decadência da França, a subida das saias e o decaimento do desejo no Ocidente. Mas o que leva um rapaz a espetar uma faca no pescoço da mulher a quem chamou mãe.

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08 setembro 2010




Round-UP by Torry Mendoza

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07 setembro 2010

Horácio Gatão shared uma ligação com Jeanne Balibar



Ouvi dizer que o Pedro Mexia se desarriscou do Facebook. Eu não leio o PM desde que ele se obrigou a colunas semanais, sempre na pegada de João Bénard da Costa. PM é demasiado inteligente para mim. Gostei dele quando era um jovem poeta desconhecido e continuei a gostar dele quando era um talentoso reaccionário do início do século. Nunca gostei do centrão. E a pior coisa que há são os chatos do centrão. Mas se o que me dizem é verdade, o PM declarou ao povo leitor o seu apagamento no facebook.
O facebook é a Caras dos pobrezinhos. Mas os pobrezinhos têm direito a acreditar que a sua vida é importante. Faz da tua vida uma obra de arte, disseram várias pessoas, dos surrealistas ao papa Ratzinger. As pessoas vulgares aspiram a fazer da sua vida uma obra de arte e agora, com a democratização dos meios de edição, têm oportunidade de o fazer. É bom acreditar que as minhas férias, em Peniche, A-ver-o-Mar, Cartagena das Índias, Formentera ou Engadine foram no Paraíso. A disseminação da fotografia digital e dos meios de difusão fazem o resto. 23 pessoas gostam disto. A Pipas Athayde gosta disto, uau. Estás magnífica lol. Sempre a mesma, diz o velho amigo. Olha para nós na Cabanita, nas noites mais quentes deste Verão. Olha para a minha maquilhagem, como brilha. E as nossas mamas ao alto. E os rapazes, tão bêbedos. E as crianças, como gostamos delas. Olha para mim, pose de praia, casamento, baptizado. O que é que me falta para ser a Débora Lyra. Há cinco anos era o hi 5 para as miúdas do Liceu brincarem a gente crescida e os rapazes escreverem enormidades nos comentários. Agora o grande Parque Jurássico comeu tudo e as redes sociais misturam as gerações, todas ao molhe, grandes teóricos a construir a nova economia anti-capitalista, casais de swing envergonhado, desiludidos da vida à espreita de novas oportunidades.
É a vida verdadeira misturada com a outra, a Gata Borralheira sem hora de regresso. É bom, deve fazer bem à saúde, é barato, económico e não se apanham doenças contagiosas.
Claro que o PM não gosta. O PM não se mistura com qualquer pessoa. Professores e alunos, administradores e recibos verde, precários e V. Exa., poetas e poetastros, gajas mesmo boas e a menina Amélia, a Pipas Athayde e a babá. O PM quer, merece e vai ter amigas a sério, abraços a sério, risos e boquinhas de espanto ao natural.
Eu sou uma pessoa vulgar, com uma vida vulgar que até parece um sonho com a lente Zeiss da máquina Leica de 199 euros. Viva o facebook. Queres ser meu amigo?

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Não se fala


Jane e Louise Wilson


Não se fala da Casa Pia. É falta de educação falar da Casa Pia. Aprendemos isso rapidamente. Há coisas de que se não fala. Não se fala de sexo em frente das tias, não se fala à mesa, não se fala de mortos, não se fala da menina Abigail a queimar cartas no terraço depois do senhor da Siemens a ter deixado, não se fala das capas das revistas de coração, não se fala das telenovelas que aliás nunca vemos, não se fala da Diana Chaves, não se come dobrada, nem se fala das vísceras em geral e do recto em particular, não se fala dos pobres, nem da pobreza, nem do que dizem os pobres, nem dos remediados, nem se fala de dinheiro, não se fala da Casa Pia. Não se fala do Saramago, nem do Lobo Antunes, não se fala, não se fala. Não se fala da Casa Pia. Não se vem para aqui falar das crianças maltratadas. Isto é um blogue civilizado. Não se fala. Criança maltratada é coisa de motorista. Coisa entre motoristas e crianças sem família. Devia ficar entre eles. Ou com os excitados sem causa, sempre à procura de tema para a excitação. Nós não somos responsáveis pelo mal do mundo. O mal está na natureza humana. Nós sabemos que o mal existe mas não é por falarmos dele que mudamos o que quer que seja. Não se fala da Casa Pia. É tema para entreter a populaça. Não se fala.

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06 setembro 2010





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05 setembro 2010

Descida de Marguns para Celerina



Desço para Celerina. Abandono o caminho que me parece demasiado parecido com um estradão e com tráfego em excesso - na primeira hora cruzei-me com quatro mountain bikers e um vigilante de mobiliário de montanha . A encosta é tão inclinada que me dificulta cada passo, dobro as tíbio - társicas, sinto pressão exagerada nos joelhos. Tropeço também nos meus pensamentos. Quando caio em cima das primaveras vejo alcachofras, gencianas malhadas, azáleas, e os ramos secos dos salgueiros rastejantes restolham debaixo das minhas pernas. É agradável sentir o corpo sobre aquele colchão húmido, ouvir a água que corre perto, olhar longamente o céu privado do vale de Engadine e, depois disso tudo, saber que me vou poder levantar. Antes disso abro a mochila e fotografo. O nosso mundo é o do plano restrito dos nossos olhos. Não olhamos para cima- em que idade é que se começa a olhar para cima? Como quem pergunta :- Em que idade é que nascem os dentes, se gatinha, se enrolam os pelos do púbis. Se não tivesse caído não teria tido a visão deste primeiro andar e dos seus minúsculos habitantes. Cair é fundamental. Sobretudo quando se caminha sozinho. Gerindo o tempo à nossa medida. Ou simplesmente deixando que as coisas aconteçam. Continuo a descida até avistar um caminho que intersecta a colina, perpendicular ao trajecto que criei e a partir do qual, em rampa abrupta, é possível descer. Em frente, ao longe, os cumes de Muottas Muragl e em baixo o extremo leste do lago de St. Moritz. Quando apanho o carreiro tenho de decidir sobre a direcção a tomar para prosseguir a descida. Nenhuma indicação me permite perceber a solução. Para ambos os lados o trilho parece subir. Viro-me para a direita e percorro alguns metros na esperança do caminho tomar uma direcção ou uma inclinação que me ajude. Mas alguns minutos depois a sensação de que estou perdido começa a desenhar-se, como uma discreta ameaça, uma nuvem que escurece, o pródromo de uma doença benigna. Em torno do trilho a vegetação adensou-se e perco as referencias do vale. Não vejo as linhas do teleférico de Marguns, onde iniciei a descida. Quando o trilho curva e eu esperava que descesse, a subida continua como se seguisse a linha de cota e entrasse pela colina adjacente. Não tenho mapas nem conheço a região. Volto para trás. Penso em Charlotte Perriand e nos amigos, que acampavam na alta montanha. Para eles a natureza era amiga. Esse engano vinha do conhecimento. Como posso caminhar num trilho desconhecido? Em vales onde viveram homens e mulheres isolados, criando uma língua que os habitantes dos vales vizinhos não percebiam, subindo as encostas depois das neves e encolhendo-se no inverno. Só há uma Terra. E uma espécie humana, só. O isolamento dos vales alpinos não permitiu o aparecimento do homem alpino. Tenho de pensar como um montanhês. Caminhar mais. Vejo os narcisos e umas flores roxas a que chamam os reis dos Alpes. Na delicada língua em que escrevo seriam certamente rainhas ou princesas. Poucas flores têm, em português, o género masculino. O sol ainda brilha. Se o sol desaparecesse o meu erro e a evidencia de estar perdido seriam maiores e insuportáveis embora nada de decisivo tivesse acontecido. Estar perdido na montanha é um pouco como afogarmo-nos no mar. Num momento sentimo-nos a dominar a natureza e cheios de força, no momento seguinte parecemos perdidos, exaustos, a água entra-nos nos pulmões e a tosse sufoca-nos. O afogamento é um enfraquecimento do espírito. Tal como a minha hesitação na montanha. Vou encontrar o ponto em que o trilho curva e cruza a colina em sentido contrario. Penso em Rousseau, perseguido como um cão, insultado pelos camponeses quando o reconheciam e no cabrão do Voltaire, denunciante anónimo aos bons-costumes. Há por vezes um espaço muito pequeno a separar um iluminista dum esbirro do Antigo Regime. Caminho agora sem ver. Entro naquela fase eufórica da caminhada em que o cansaço desaparece, o suor que escorre é o das águas cristalinas procurando um percurso para os vales, a mente se liberta e as ideias parecem simples, naturais, certas e ao mesmo tempo luminosas e belas, o corpo é finalmente parte dessa paisagem que se estende sem fim, e os nossos pensamentos fazem sentido, embora fosse preciso um leve fio condutor, uma fina película inteligente como o programa do iPhoto, que os registasse, alinhasse pela ordem certa, reconhecesse as faces e preenchesse os hiatos. Agora , lá em baixo, como numa gravura , os telhados das casas e da igreja de Celerina e numa curva, colorido, o comboio de brincar.

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03 setembro 2010







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02 setembro 2010

Canções (1)



(...) Un garçon qui ressemble à celui pour lequel
Madame, vous aviez embelli


Votre fille a vingt ans
Serge Reggiani

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Não estou aqui para escrever...



...no sé por qué me vino a la memoria la frase más desdichamente bella que conosco, la que Walser le dijo paseando por las afueras del manicomio a su amigo Carl Seelig cuando este se interesó por saber si seguía escribiendo. "No estoy aqui para escribir, sino para enloquecer", le dijo.


Enrique Vila-Matas
Doctor Pasavento, p193

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01 setembro 2010

Appenzell




Fui depois compreendendo lentamente que tudo está ligado para lá do espaço e do tempo, a vida do escritor prussiano Kleist e a de um prosador suíço que afirma ter sido empregado de uma sociedade anónima de cervejas em Thun, o eco de um tiro de pistola sobre o Wannsee e a vista de uma janela do asilo de Herisau, as datas de nascimento e as de óbito, os passeios de Walser e as minhas excursões, a felicidade e a infelicidade, a história da natureza e a da nossa indústria, a da pátria e a do exílio.


Le promeneur solitaire
Em memória de Robert Walser
W.G. Sebald em O Caminhante Solitário (Logis in einem Landhaus)
ed Teorema, Setembro 2009

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