Caiu a falésia, ruiu a arriba. E esmagou os pobres incautos que tinham procurado a sua sombra. Nas horas seguintes todas as fases do luto: 1. Não acreditamos 2. Não nos podemos habituar à ideia 3. O acontecimento revolta-nos. 4. Queremos culpados. Identificar e punir os culpados 5. Acalmamos e entristecemos.
Este trabalho de luto é alimentado pelas televisões, hoje. Amanhã serão os jornais e depois outra vez as televisões. Como as carpideiras, o clamor acende-se a cada ligação em directo. E de cada vez cresce o coro securitário.
Imagine o leitor que vivia na aldeia de G., na Beira. Saía de casa de manhã para a Escola, na vila de P., a 5 kms. De inverno os caminhos estavam gelados. Não havia camioneta escolar, nem seguro escolar, nem bolsas. Os meninos de G. juntavam-se para o percurso, davam as mãos nos trechos mais escarpados. No mês mais rude, os pais de G. alugavam um quarto em P. onde os miúdos ficavam a fazer os têpêcês. Houve meses de intempérie em que tiveram de lá dormir.
Imagine que tem 15 anos e vai acampar com amigos junto a um rio. Tem de escolher o terreno, limpar o mato, alisar o chão retirando as pedras, montar as tendas. De madrugada fazem uma escalada. O percurso está marcado, foi revisto umas semanas antes.
A nossa relação natural com a natureza é assim. Respeitamo-la. Tememo-la. Sabemos que ela varia com as estações, com as horas do dia, com as condições meteorológicas. Que um lameiro empapado é perigoso, mas uns meses depois se atravessa facilmente.
A cidade alterou esta relação natural, transformou as crianças em playsituacionistas obesos e os adultos em turistas de disneylândia. O mundo é hoje, para os nossos contemporâneos das cidades, um parque temático. Anulámos todos os sensores. Alguém, a quem pagámos num contrato social paradoxalmente sem propinas, estudou e anulou os perigos. Alguém vigia. Deitamo-nos debaixo das arribas. Penduramos as toalhas na sinalética de aviso.
Ruiu a falésia. Vem o Pai, o Tutor e os prefeitos. E o responsável do Parque de Diversões. E essa gente do Estado menos Estado. Quarenta carros, quatrocentos homens. Amanhã instalaremos sinalética adequada, de maiores dimensões. Depois, em acção punitiva, derrubaremos a arriba assassina. E em breve todas as arribas e todas as falésias.
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