31 dezembro 2005
Uma noite assim
Saíram do vale do Rossim na direcção da Lagoa. Caminharam todo o dia, com pequenas paragens para comer e se certificarem do percurso. De vez em quando nevava. Os charcos estavam gelados e um manto de neve cobria o cervunal e os blocos erráticos despejados no desfiladeiro. Ao fim da tarde caiu um nevoeiro na altura precisa em que procuravam orientar-se para o Cântaro Gordo. Continuaram a subir mas o coração batia-lhes mais depressa do que o cansaço e nunca atingiram o que julgavam ser o lugar chamado Charcos. Um deles caiu e perderam-lhe o contacto. Gritaram, mas só ouviam os seus gritos. Quando se reagruparam era noite. Nevava e como tinham perdido todas as referências, atolavam-se na neve. Recolheram-se debaixo de uma laje, esgotaram a carga dos telemóveis e os insultos às operadoras nacionais. Não tinham fome nem sede. O frio era maior do que a roupa térmica e eles sentaram-se abraçados, e depois em círculo, esfregando as costas. De madrugada comeram e cantaram, primeiro baixinho e depois despropositadamente alto, como se tivessem bebido. Quando se calaram, sentiram que não estavam sozinhos, que outras coisas vivas se recolhiam em covas como as suas. E tiveram, por contágio, a sensação grandiosa de existir plenamente. Depois dormiram, à vez, como tinham aprendido que se fazia, mas de facto adormeceram todos. Quando acordaram, a rapariga chorou baixinho, e eles desistiram de a consolar porque era manhã, continuavam perdidos, só se via neve uns metros em redor e depois era tudo sombras. Foi também ela quem primeiro saiu para campo aberto e lhes mostrou que era possível caminhar contra o vento. E assim andaram até lhes parecer que tinham começado a descer, e que deviam estar perto do lugar assinalado como Malhada do Cabo da Estercada. Depois um deles conseguiu rede e umas horas depois foram resgatados. Não haverá nunca nas suas vidas uma noite como esta.
30 dezembro 2005
Confissão
O Presidente da Câmara de Coimbra disse que sou amigo da Escola da Noite, do TAGV e do Centro de Artes Visuais (CAV). É verdade.
Finalmente ao domingo
O novo plano de vacinação anunciado pelo Ministério da Saúde entra em vigor no domingo (dos jornais).
O início deste plano fora já anunciado para início de 2005 e depois para meados do ano que finda. Agora é no domingo. Será que não podem esperar por segunda-feira?
O início deste plano fora já anunciado para início de 2005 e depois para meados do ano que finda. Agora é no domingo. Será que não podem esperar por segunda-feira?
O padre Tony e a sexualidade
No dia em que Pacheco Pereira enfiou o camauro o jornal oficial do Vaticano publicou um interessante artigo sobre a homossexualidade, um dos temas que obsidia a ICAR. Com a autoridade que lhe reconhecemos nesta área, L’Osservatore Romano, pela pena de um padre jesuíta que assina Tony Anatrella, veio dizer que “a homossexualidade não representa um valor social e de forma alguma pode ser uma virtude moral susceptível de contribuir para a elevação da sexualidade. Pode mesmo ser visto como uma realidade destabilizadora das pessoas e da sociedade.” “A homossexualidade é uma parte incompleta e imatura da sexualidade humana”. O artigo “dá exemplos de como os directores dos seminários podem perceber se um candidato a padre tem tendências homossexuais ou corre o risco de não ser capaz de respeitar o princípio do celibato dos sacerdotes.” (Público de 29 de Dezembro, não disponível on line).
Claro que vão dizer que isto é só para os associados da ICAR e que não tenho nada que me imiscuir nestes assuntos. Sucede que o padre Tony escreve livros e dá conferências que não se destinam apenas ao rebanho de fiéis da ICAR pelo que não compreendo como posso deixar de registar a minha perplexidade sobre o artigo em questão.
Que um celibatário possa considerar que a sua sexualidade é completa, madura, social e moralmente superior, é para mim tão difícil de compreender como a questão da unidade do espírito santo, da virgindade da mãe de Cristo, da infalibilidade do Papa, ou do destino do limbo. Mas devo ao padre Tony mais esta razão para simpatizar com os homossexuais. Sempre vivi a sexualidade como incompleta e secretamente agradeci os momentos em que me completo, mesmo incompletamente.
Claro que vão dizer que isto é só para os associados da ICAR e que não tenho nada que me imiscuir nestes assuntos. Sucede que o padre Tony escreve livros e dá conferências que não se destinam apenas ao rebanho de fiéis da ICAR pelo que não compreendo como posso deixar de registar a minha perplexidade sobre o artigo em questão.
Que um celibatário possa considerar que a sua sexualidade é completa, madura, social e moralmente superior, é para mim tão difícil de compreender como a questão da unidade do espírito santo, da virgindade da mãe de Cristo, da infalibilidade do Papa, ou do destino do limbo. Mas devo ao padre Tony mais esta razão para simpatizar com os homossexuais. Sempre vivi a sexualidade como incompleta e secretamente agradeci os momentos em que me completo, mesmo incompletamente.
29 dezembro 2005
Balancete: o melhor de 2005 (provisório)
Lúcia na velha prisão de Strasbourg
Pão e Rosas, as crónicas de Ana Sá Lopes, o orgulho do desalinhamento
A brenha
O tartaranhão azulado
Birds in flight
O canyonning do Cruzamento dos rios (Gerês)
Caminhar nas margens do mundo
A Paixão Nociva (Amália Bautista)
Alexandra Lucas Coelho no Próximo Oriente
2046 de Kar Wai Wong
Maggie Cheung
RAP, o rapaz do gato Fedorento
Os sublinhados de Os Emigrantes de W G Sebald
A Ilha Grande em Angra dos Reis
Pão e Rosas, as crónicas de Ana Sá Lopes, o orgulho do desalinhamento
A brenha
O tartaranhão azulado
Birds in flight
O canyonning do Cruzamento dos rios (Gerês)
Caminhar nas margens do mundo
A Paixão Nociva (Amália Bautista)
Alexandra Lucas Coelho no Próximo Oriente
2046 de Kar Wai Wong
Maggie Cheung
RAP, o rapaz do gato Fedorento
Os sublinhados de Os Emigrantes de W G Sebald
A Ilha Grande em Angra dos Reis
Balancete: O pior de 2005 (provisório)
Adriana Partiprim a enganar as criancinhas
O eflúvio telogénico
O cavacoback
O soaresback
O escândalo do Centralão : Sócrates substitui Durão depois da breve animação de Lopes/Sampaio
Campos
Os mesquitinhas dos jornais
O Jorge e o Manel
Todos os fogos do Verão
Os broxes de EPC
28 dezembro 2005
IL LA REGARDE. ELLE LE REGARDE.
Bruce Nauman
L'amour est une passion naturelle qui naît de la vue de la beauté de l'autre sexe et de la pensée obsédante de cette beauté. (...) En effet, quand un homme voit qu'une femme est aimable et qu'elle convient à son goût, aussitôt il commence à la désirer dans son coeur; ensuite, plus il pense à elle, plus il brûle d'amour pour elle, et enfin sa pensée est tout envahie par cet amour.
André Le Chapelain, De Amore, c. 1190.
Voici donc, enfin, la définition de l'image, de toute image: l'image, c'est ce dont je suis exclu.
Roland Barthes, Fragments d'un discours amoureux, 1977
Stand and Live
Bruce Nauman
Nos dias derradeiros do ano acontece-me amolecer. Percorro os links da blogosfera e vem-me à cabeça uma frase em que o Dr. Johnson dizia que, à excepção de alguns idiotas, todos escrevemos por dinheiro. E enterneço-me com esta comunidade de idiotas, recomeçando, sem cessar, uma coisa que imita a vida.
27 dezembro 2005
Os blogs do Brasil
Os blogs brasileiros são uma alegria. Têm tudo o que os portugueses têm mas mais vivo, mais colorido, mais alegre, mais musical, mais irónico, mais sentimental, mais verdadeiro. O blog da Santa é um exemplo. Agora parece que a Santa viaja. Não venha para aqui, não. Você entristece. Aqui, de bom, você só tem melancolia.
(Foto: A Santa a despedir-se. Temporariamente).
Laura Dern, uma mulher do Mal
Laura Dern, Los Angeles, 1967. Vimo-la a primeira vez em Alice já não mora aqui. A miúda de 7 anos que come um gelado. Em 1986, já com 11 participações, é Sandy Williams em Blue Velvet. Aqui recordamo-la como a mulher de Wild at Heart, 1990, outro Lynch, e a inesquecível Rosa, de Rambling Rose (Rosa uma mulher de fogo, 1991, Martha Coolidge).
Confusão
Não distingo o empreiteiro do ministro
Nem a Margem Sul de um crime horrendo
E por mais que me esforce não entendo
O que Ratzinger tem a ver com Cristo
Vejo no pai-natal um sem-abrigo
Não distingo mesquitinha de um canalha
Nem Sarkhozy separo da escumalha
No Cavaconovo vejo sempre o antigo
Não distingo o candidato da direita
Nem Cavalli distingo de Chanel
Confundo o Coelho com o Manel
Não distingo um partido de uma seita
26 dezembro 2005
Natália
Uma criança está fechada no quarto com a avó cega. Outra ficou sozinha a dormir. Outra caiu de uma cadeira com dez metros de altura. Outra não vê, ou se vê não percebe. Mas ver, para algumas crianças e cães, talvez seja o pior dos sofrimentos. Criança é para ser enganada. Traída. Criança é a primeira a faltar no orçamento. Criança abusada, maltratada. Criança adoece na Páscoa o que é natural, mas adoece todo o ano, mesmo no natal, contra as nossas melhores crenças. Dentro de cada criança, como o verme na rosa, como o tumor no tecido indefeso, cresce uma pessoa grande, um abusador, um violento, um indiferente, um velho preocupado com as coronárias a próstata e o funcionamento do mercado. Melhor seria limitar os nascimentos. Apelo à castidade, e não podendo de todo ser, ao sexo não reprodutivo, à infertilidade. Querem um cartão de Natal: laqueação, vasectomia, espermicidas.
25 dezembro 2005
Adelina improvável
Baixinha, sempre vestida de preto e a fumar compulsivamente, a voz arrastada pelos neurolépticos, e no entanto uma mistura de força e doçura, conhecedora dos catálogos da EMI classics, da Deutsche Grammophon, da harmonia mundi.Tantos anos depois, a Adelina havia de gostar de saber como foi lembrada num dia de natal.
Je meurs sans mourir nuit et jour,
Et sans voir la main qui me tue:
Destins qui m'en donnez l'amour,
Pourquoy m'en ostez vous la vue?
Ce qui reste n'a point d'appas;
C'est peu que de voir tout quand je ne la voy pas.
Le Ciel de mon aise jaloux
Se plaist en mon inquiétude;
Je fuy les objets les plus doux;
La Cour m'est une solitude,
Je préfère à tous vos appas
Les ombres de la nuit & celles du trespas.
Air de cour, Antoine Boesset, 1587-1643
23 dezembro 2005
Contribuição científica para o mal da natureza
Rochas. Jurássico médio: 170 milhões de anos;
Plataforma arrasada no último interglacial: talvez 45 mil anos;
Falésias escavadas do Holocénico mais recente até hoje: centenas a milhares
de anos;
Construção militar do século XVIII;
Mulher: 42 anos.
// Fotógrafo: Anónimo mas vivo
No decía palabras
...aunque sólo sea una esperanza,
porque el deseo es una pergunta cuya respuesta nadie sabe.
// Gica
para Luis Cernuda, Los placeres prohibidos, Málaga 2003
22 dezembro 2005
Lembrando o solstício aos amigos
Perceber que os dias começaram a crescer, ouvir dizer que as árvores queimadas reverdejam, ganhar pele para Cavaco e Sócrates, para a dureza da economia nos que perderam os bens da terra. Dou-me a isto com serenidade. Pelo menos à tarde. Que povos ameríndios tinham escrita antes do mortífero achamento? Como reconhecer uma milonga? Mais importante ainda: até quando rescende o basilicum? Não deixem de cantar que eu volto.
// Foto de Gica
21 dezembro 2005
20 dezembro 2005
19 dezembro 2005
Um programa íntimo
Quem vai sair derrotada destas eleições é a direita ideológica. Quatro candidatos de esquerda e um de centro esquerda. É esmagador. Como é que se sentirá um eleitor de direita a ouvir Cavaco convenientemente amordaçado pela estratégia não declarativa de Pacheco Pereira? Se a campanha era um motivo para o debate ideológico então não há direita em Portugal. Ou será que a direita tem um programa escondido? Será que, como sucedia com o PC, a direita não declina em público o seu programa. Um programa íntimo. Uma coisa que se segreda nos conselhos de administração, nos almoços de negócio, nas montarias, nos voos intercontinentais.
Ardeu o Urso
No ano em que quase tudo ardeu coube agora a sorte ao grande Ursinho verde do parque, irmão do bicho em flores do Guggenheim de Bilbao. Ignoro se o incêndio do grande Ursinho verde é a versão local, mais covarde e branda, das noites dos arrabaldes parisienses. Os que o podiam defender ainda não têm força. Quando crescerem já arderam as abetardas e os lobos, e não apenas nos parques das cidades adormecidas.
18 dezembro 2005
Gente Humilde
Tem certos dias
Em que eu penso em minha gente
E sinto assim
Todo o meu peito se apertar
Porque parece
Que acontece de repente
Feito um desejo de eu viver
Sem me notar
Igual a como
Quando eu passo no subúrbio
Eu muito bem
Vindo de trem de algum lugar
E aí me dá
Como uma inveja dessa gente
Que vai em frente
Sem ninguém com quem contar
(...)
E aí me dá uma tristeza
No meu peito
Feito um despeito
De eu não ter como lutar
E eu que não creio
Peço a Deus por minha gente
É gente humilde
Que vontade de chorar
(Chico Buarque, Gente Humilde, incluído no triplo DVD apresentado hoje por José Nuno Martins na antena um)
Em que eu penso em minha gente
E sinto assim
Todo o meu peito se apertar
Porque parece
Que acontece de repente
Feito um desejo de eu viver
Sem me notar
Igual a como
Quando eu passo no subúrbio
Eu muito bem
Vindo de trem de algum lugar
E aí me dá
Como uma inveja dessa gente
Que vai em frente
Sem ninguém com quem contar
(...)
E aí me dá uma tristeza
No meu peito
Feito um despeito
De eu não ter como lutar
E eu que não creio
Peço a Deus por minha gente
É gente humilde
Que vontade de chorar
(Chico Buarque, Gente Humilde, incluído no triplo DVD apresentado hoje por José Nuno Martins na antena um)
16 dezembro 2005
15 dezembro 2005
Qual ideia?
A eleição de PR não tem nenhum interesse. O PR não tem poderes e não é só por causa da Constituição. O PR pode demitir o governo. Mas que importância tem o governo? Manda, quem financia o partido do governo. Manda, quem emprega os ministros e secretários de estado quando eles saem do governo. Os governos servem para permitir negócios rentáveis, e se for possível legais, aos empresários que financiam as campanhas eleitorais. Além disso servem para dar a segurança social, a saúde e o entretenimento necessários à baixa conflitualidade social. O PR serve para nos dar uma ideia do país. Qual ideia? Uma ideia, uma ideia.
Os moderadores
Imitando VPV percebe-se que Sousa Tavares é o melhor candidato a PR para Sousa Tavares. Fala de alto para os candidatos. Eles lêem as suas crónicas e declaram-se-lhe com frequência. Ontem Alegre agradeceu-lhe a informação da Ota e Soares a posição sobre a justiça. Já Constança não foi vista na segunda parte. Constança está tão farta como nós.
Soares
No debate, Soares declarou que o caso Casa Pia “se estava a esboroar”. Uma afirmação gravíssima num candidato à presidência. Uma apreciação directa a um julgamento em curso. Passou em claro: mas os mesquitinhas da Casa Pia devem ter acordado nesta altura do debate e telefonado uns aos outros com justificado júbilo.
Soares / Alegre
Não se deve falar de sexo em frente das crianças e em nenhum lugar com preocupações mínima de decência se deve falar das eleições nem do processo da Casa Pia. Mas não resisto a comentar o debate Soares/Alegre. Soares tem um enorme ascendente sobre Alegre e quis mostrá-lo. A táctica – Soares não sabe o que é estratégia - era: mostrar a impreparação de Alegre, a sua falta de qualidades. Valeu tudo: interromper, interrogar directamente, comentar em cima da intervenção do opositor. Alegre esteve sempre diminuído. Demasiado expressivo e impiedosamente focado pelas câmaras, buscava a cumplicidade dos moderadores, dava opiniões que não lhe eram solicitadas. Teve a elegância de não baixar o nível e de resistir à provocação. Com habilidade, quase imperceptivelmente, Soares sobe refazer, durante o debate, a relação de subserviência que no passado Alegre terá tido com ele. Quando demos conta Alegre estava a ser tratado como um poeta antifascista (sem lugar na Antologia do século de ouro). O padrinho aristocrata, o pai fundador da nossa democracia olhava para o lado e parecia perguntar: - O que faz você aqui?
14 dezembro 2005
13 dezembro 2005
12 dezembro 2005
Pode uma pessoa esconder?
Devias ter-lhe dito: “ -Não a amavas e não mereces resposta.”
E ainda: “-Se queres saber porque me perguntas a mim?”
Sublinhados
"Recordar parece-me muitas vezes uma coisa estúpida. Faz-nos a cabeça pesada, tonturas, como se não olhássemos para trás pelas vias do tempo passado, mas caíssemos ao chão de uma dessas torres que se perdem nas nuvens."
Os Emigrantes, W.G.Sebald, Teorema, 2005, sublinhado da p139
11 dezembro 2005
Razões para acreditar na crise
Márcia telefonava-me todos os dias e um dia houve que me telefonou três vezes. Hoje, no meio de uma conversa animada, disse de súbito:- "Ai desculpa que já estou a gastar muito dinheiro." E adeus, cháuzinho, desligou.
Ao Lutz
Em tempo de guerra não se limpam armas
Infelizmente
Hoje não temos tempo para subtilezas
Disse alguém
Que eu já há anos conhecia
Como um grosseirão.
Erich Fried (Entre Camaradas)
Infelizmente
Hoje não temos tempo para subtilezas
Disse alguém
Que eu já há anos conhecia
Como um grosseirão.
Erich Fried (Entre Camaradas)
999 Folhas
Mil Folhas desta semana está melhor. O pastel de EPC deu lugar à publicidade do triplo DVD Chico Buarque (Paris, Roma, Rio) que "celebram a vida e obra de um dos maiores génios da música brasileira, disponíveis separadamente e em caixa especial" (EMI).
Mourão- Ferreira: vendo
Se a poesia é “ritmo, prosódia, imagens, precisão”, uma informação visual, ou sonora, que bate e ilumina zonas corticais precisas, confesso que, para mim, David Mourão Ferreira muito raramente escreveu poesia e que os três volumes em que a revista da Gulbenkian agora editou as Vozes da Poesia Europeia , foram a pior compra deste Dezembro. Revendo aos admiradores, como novo. Preço a combinar.
Vozes da Poesia Europeia, Colóquio Letras,163-165, ilustrações de Nuno Viegas, nota de apresentação não assinada, 42 € preço de capa
Sven Lindqvist e o deserto paradoxal
No Mil|Folhas, um grande viajante (Pedro Rosa Mendes) revela outro. Entrevista, biografia e apresentação da primeira tradução portuguesa do sueco Sven Lindqvist. Entre outros livros, todos com títulos que incitam à leitura imediata, Sven Lindqvist escreveu Desert Divers. Da entrevista recolhemos:
“Vi muitos desertos e, na América Latina, vi o deserto extraordinário que se estende ao longo da costa peruana de Lima até ao Chile, uma faixa muito estreita entre o maior oceano do planeta e a maior cadeia de montanhas. Paradoxal, este deserto. Nuvens enormes são sopradas pelo vento constantemente, sem deixar uma única gota, guardando tudo para deixar cair atrás das montanhas. (…) ”
10 dezembro 2005
Marca
Nómada subindo os rios procurava
Entre o minério a sombra dos teus passos
E tu nem a minha busca pressentias
Nem a língua que eu falava te era querida
Cheguei tarde a todos os lugares.
Lavrada em cadeias brilhava a tua marca.
Cavaco quatro
Não importa muito a prestação de Cavaco nos debates. Logo em seguida, nas várias televisões, os comentadores se encarregam de nos explicar o que ele queria realmente dizer, de lhe apagarem os lapsos, iluminarem os silêncios. Ontem destaque para o estratega Nuno Rogeiro na SIC-Notícias, que a propósito contou a história de Oliver North e Santana Lopes no episódio dos Irão-contra. A RTP-N nem disfarçou: os dois comentadores eram cavaquistas, talvez com nuances mas não houve tempo para perceber.
Cavaco dois
Cavaco está velho. Debita uma cassete sem brilho. Não tem fluência nem flexibilidade. É alguém do passado. E isso percebe-se bem quando, interrogado sobre acontecimentos da história recente, faz um sorriso que está sempre entre as lágrimas e a ira e diz (pergunta enfática): "- Isso foi há quantos anos? Dez? Está a ver, tanto tempo! Temos é que olhar o futuro.".
Cavaco um
O debate Cavaco-Louçã de ontem foi, como Cavaco agora repete, "muito elucidativo". Cavaco submete-se a estes debates com sacrifício. Não se volta para o adversário, ignoro se o cumprimentou. Tratou-o de "deputado Louçã". Percebe-se pela contractura facial que está a fazer um grande esforço para não lhe dar voz de prisão, entregá-lo ao SIS, ao grupo parlamentar do PSD, vá lá. A democracia tem estas maçadas e nós somos uma democracia avançada. Temos que fazer estes debates, campanhas eleitorais, dar entrevistas. Quando Cavaco for o timoneiro estas coisas esquecem-se num instante. Tudo o que parece importante se esquece em seis meses, assegurou Veiga de Oliveira, ex-membro do Partido Comunista, que não apenas apoia Cavaco como o apoia em declaração escrita e pelo punho do próprio assinada, dando razão aos cépticos que asseveram que um comunista nunca o deixa de ser.
A Revolta dos pastéis de nata
A revolta dos pastéis de nata, que até agora vi apenas aos soluços, parece-me um bom programa. Opivot (Luís Filipe Borges) tem uma voz rara, uma cara expressiva e uma grande sensibilidade para conduzir os entrevistados. O tom é ligeiro. Os temas profundos. O de ontem era a religião. Um dos convidados, um padre simpático, mostrou as limitações da Igreja quando decide ser moderna e descer aos sítios da gente normal. Depois de uma cena teatralizada sobre a Virgem Maria, foi perguntado ao padre o que pensava daquilo. A resposta dele foi a mesma que os rapazes árabes dos bairros dos arredores de Amsterdam deram aos jornalistas que procuravam reacções à decapitação de Theo Van Gogh: "Sabe, há muitos católicos para quem estas coisas podem ser tomadas por blasfémia e terem reacções terríveis." E lembrou a fatah a Rushdie depois dos Versículos Satânicos. Toda a prestação seguinte foi igualmente decepcionante: a desvalorização da Inquisição, a eleição do "matrimónio" como o problema central das suas preocupações, a explicação do Céu e do Inferno. O padre era moderno: usou a palavra catrézada várias vezes. Sereno, aguentou sorridente a provocação evidente das cenas que o produtor ia teatralizando e o ateísmo descomplexado da outra convidada. Mas não se percebia de onde lhe vinha a fé , nem através dele me chegou a graça.
09 dezembro 2005
Ao Lutz
Um dos problemas que existe com a tortura é que necessita de um verdugo. E se é terrível ser torturado, a sociedade em que alguns se especializaram na tortura deixou de ser "aquela cujos valores defendemos".
Racista
Vi-o no super mercado. Estava de costas para mim, a receber uma chamada. Tinha os cotovelos levantados e apoiava o corpo alternadamente num e noutro pé. Era a imagem esplêndida do gosto de viver, do prazer sem medida de estar vivo e da vida ser maravilhosa. Quando me aproximei podia ouvi-lo mas não importa o que dizia ao telemóvel. Sorria, o corpo puxado para cima, a leveza e a inocência de quem acredita. Escondi-me atrás do expositor, para que não me visse. Fiquei ali,perturbado, fingindo procurar um dos inúteis produtos expostos. Imaginara-o a cruzar os olhos comigo e a ver a cara de um racista. O olhar, a boca, a desaprovação do racismo. E que então se quebrara nele a alegria, a excitação, a expectativa, a confiança dos seres jovens que são plenamente, tendo como única razão o espanto de existirem de forma tão perfeita. Assustei-me com o delírio do meu cérebro doente, entregue a devaneios que lhe desconhecia. Tentei um reflexo que me dissesse não ser aquela a cara que trazia, mas ninguém olhava para mim, nem mesmo o rapaz preto que continuava a chamada. Quando me restabeleci dirigi-me ao balcão, entreguei as compras, que couberam todas em dois sacos de plásticos, e paguei. Já na rua, um bando encostou-me uma faca ao peito, e depois ao pescoço, tirou-me os sacos, a carteira e o blusão. Quando eu despia o blusão mandaram-me descalçar as botas e ao debruçar-me, bateram-me. Chamaram-me racista. E porco racista. Espantei-me com a velocidade com que correm estas notícias. Eu sabia que era, no mais profundo de mim mesmo, e que merecia castigo, mas não tinha ainda tido tempo para aquela culpa tão recente.
A questão da Tortura em Quase em Português
Veja o diálogo criado por Lutz e o debate que suscitou, especialmente as intervenções de CBS e de Susana.
08 dezembro 2005
Graal
Os católicos com o crucifixo
e eu de Ti sem nada para adorar
nem o peixe uma buzina
um agasalho.
Nenhuma igreja
senão o mar
e uma prisão por onde o mar
circula.
Nem uma imagem um porto
uma oração
Nem a promessa
da ressurreição.
Antologia de O Mal: Portugal Futuro, de Ruy Belo
O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem -lhe elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro
Ruy Belo,
"Portugal Futuro", in Homem de Palavra[s], 1969
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem -lhe elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro
Ruy Belo,
"Portugal Futuro", in Homem de Palavra[s], 1969
As mulheres de O Mal: Louise Arbour
Anteriormente no Tribunal Penal Intenacional onde foi responsável pela acusação a Milosevic, Louise Arbour, canadiana, é desde há dois anos a Alta Comissária para os Direitos Humanos das Nações Unidas, onde substituiu Sérgio Vieira de Mello. Hoje denunciou a posição ambígua dos Estados Unidos relativamente à tortura dos prisioneiros, nomeadamente dos suspeitos de terrorismo.
07 dezembro 2005
Advertência
Andam a preparar o meu desaparecimento neste blog. Posso adivinhar o dia em que me vão retirar a password. Deixo uma advertência. Difícilmente encontrarão um personagem tão fraco como eu.
Que grande post!
Tenho crucifixos em casa. E um Buda. E a deusa Shiva e aquele outro deus hindu que tem cara de elefante. Também tenho talhas que os padres venderam, ou foram roubados das igrejas, numa época que não foi a minha. Tinha-me habituado a ver a cruz com tranquilidade. Confesso que entre os símbolos religiosos aprecio mais a estrela de David. Foi com ele que marcaram milhões de pessoas postas em vagões para um destino inominável e cresci a admirá-los e a revoltar-me com o silêncio cúmplice dos seus contemporâneos. Mas gosto de ver um crucifixo, desde que isso não me traga à memória guerras santas. Detestaria pensar que uma cruz escorregando no peito quisesse dizer o credo por extenso, os artigos do espada e as cartas dos leitores desembrulhadas do salazarismo. Grande post mesmo é o de f.
Strasbourg, o fim.
Ela não foi comigo à estação. Ficou sentada no sofá. Na rua, o saco de viagem desequilibrava-me e tive de pedir desculpa aos transeuntes que, por qualquer razão que me escapou, caminhavam todos em sentido contrário. Ela tinha-me dito: “- Vou ficar tranquila agora que partes.” Eu não disse nada. Concentrei-me no teto, nas linhas que confluíam para o canto da sala, que eram quatro, duas antes e duas mais abaixo do vértice, que dessa forma ficava oculto, embora, a prumo, dele se soltasse a linha de intersecção das paredes. Se ela se levantasse tê-la-ia abraçado e talvez ela se comovesse e estragasse aquele fim tão feliz. Se nos tivéssemos abraçado ia lembrar-me de Bresson. A figuração amorosa do par vertical fascinou-me desde que em Quatre nuits d’un rêveur um homem e uma mulher são assim filmados na cama, contra a convenção. Se me lembrasse de Bresson a separação poderia ser insuportável, já que a mão dela sempre pousara no meu pulso com leveza. Mas continuou sentada e percebi que devia sair sem mais palavras. Não me chamou. Se me chamou eu não ouvi. Que poderia dizer que eu não soubesse? Ia ao longo do Quai Finkwiller, ao balanço do saco de viagem, e não tinha ficado atrás nem era eu quem tropeçava.
(Robert Bresson, Quatre nuits d’un rêveur, 1971, reposto pela Cinemateca em 2001, baseado nas Noites Brancas de Dostoievski, 1848, Assírio e Alvim, 2002. Ver tb. António Rodrigues, Folhas da Cinemateca, 2001)
Este post assinala o fim do conjunto de posts sobre Lúcia.
06 dezembro 2005
05 dezembro 2005
04 dezembro 2005
A OMS junta-se à ICAR
Os cardeais da OMS não vão aceitar mais funcionários que fumem. Na impecável lógica da exclusão é um assunto interno da OMS. Quem contrata uma secretária tem direito a escolher-lhe as preferências sexuais e o modo como preenche os receptores nicotínicos.
O prólogo como convite
Nem todos os livro requerem um prólogo, mas há livros que sem ele são como uma grande casa iluminada onde há música e vozes, e onde não nos atrevemos a entrar porque não fomos convidados. Todo o leitor é, sob certas circunstâncias, um tímido.
(Alberto Manguel, Babelia, 3 de dezembro)
(Alberto Manguel, Babelia, 3 de dezembro)
Javier Marías, duas vezes
De Javier Marías foram editados, em simultâneo, dois livros. El oficio de oír llover (Alfaguara), que reúne os artigos de opinião publicados na imprensa e Donde todo ha sucedido, Al salir del cine, (Galaxia Gutemberg/ Circulo de Lectores), uma compilação de textos sobre cinema.
Depois do transplante.
A mulher francesa de 38 anos a quem transplantaram a face já pode falar, comer e beber. Desejo-lhe que em breve possa beijar e ser beijada.
Um Parlamento assim
Um jornal de fim-de-semana relata os trabalhos de um autodenominado Parlamento Europeu da Cultura ilustrado com uma foto de Emílio Rui Vilar e Katia Guerreiro. Se a cultura europeia depende de um parlamento destes devemos abandonar toda a esperança.
03 dezembro 2005
Às vezes sinto que não vou escrever mais. Que se fechou a porta onde Lúcia e o dr. L., André Bonirre e os outros vivem. Às vezes vejo-os mas só os entrevejo. Às vezes sinto que Lúcia é uma ficção, que tê-la abraçado em Nelas e Viseu foi um sonho, uma pausa lírica na dureza da vida. Às vezes queria morrer. E só não morro para não entristecer a vida da minha tia.
Preconceito
Há salas de embarque em que toda a gente parece regressar. Não há crianças e a vida está suspensa. O voo é de curta duração, como o primeiro-oficial não se cansará de dizer nas saudações de bordo. À entrada do voo estou cansado e não me parece que tenha comprimidos que alterem a minha visão, se não do mundo, pelo menos daquele aeroporto. De fosse mulher tinha pintado os lábios, apanhado o cabelo, abertos os botões da camisa. Mas os homens estão mais irremediavelmente ligados à carcaça. Penso isto enquanto passa um homem de cachecol cor-de-rosa. Por um preconceito estúpido para com o cor-de-rosa não tenho nenhum cachecol cor-de-rosa. Não tenho aliás nenhum cachecol, pelo que a falta de um cachecol cor de rosa só me assalta ao ver o homem na fila de embarque deste voo de curta duração, entre dois aeroportos da Europa central, de onde as crianças e a própria noção de viagem parecem ter sido banidas. Nunca vi um cachecol rosa no sector de roupa masculina. O preconceito reside exactamente nisto, em não se ver, em se considerar invisível o que não faz parte do horizonte das opções. O meu companheiro de viagem não considera provável apaixonar-se por uma mulher asiática. Isso não tem nada a ver com o facto de ser casado com uma mulher a quem de rajada fez três filhos e uma interminável licença de parto. Embora seja viajante e encontre mulheres asiáticas elegantes, nunca as viu, verdadeiramente. O meu preconceito relativamente aos cachecóis cor de rosas não se estende às camisas cor-de-rosa, nem às camisas de colarinho branco e corpo cor de rosa ou azul ou de pequenas riscas azuis. Relativamente a essas peças de vestuário declaro a minha repulsa baseada em experiência e razão. Os usuários são gente a evitar. As camisas compram-se com after shave da mesma marca, e gravatas, cinto, sapatos e relógio. São falsos sinais, como se diz na psicologia evolutiva. De desafogo económico, bem-estar e poder. Os destinatários são provavelmente mulheres jovens, mas não muito, desejosas de protecção e de estatuto social.
O meu companheiro de viagem duvida que a probabilidade de alguma vez se apaixonar por uma mulher asiática, mesmo numa das suas campanhas na Birmânia, tenha a ver com a minha cegueira para as peças de roupa masculina. Mas estamos de acordo no desprezo pelas camisas de colarinho branco e corpo colorido, sobretudo quando usadas por pessoas cujo nome é Artur.
O meu companheiro de viagem duvida que a probabilidade de alguma vez se apaixonar por uma mulher asiática, mesmo numa das suas campanhas na Birmânia, tenha a ver com a minha cegueira para as peças de roupa masculina. Mas estamos de acordo no desprezo pelas camisas de colarinho branco e corpo colorido, sobretudo quando usadas por pessoas cujo nome é Artur.
02 dezembro 2005