31 maio 2006
A Zulmira e o Saúl. Nunca tinha visto a Zulmira sem o Saúl. Nem sabia que era possível. Ela ouvia por ele, alongava-lhe as frases, sublinhava, ela sabia as histórias que ele contava. Quando saíam, ele oscilava sem destino e era ela quem caminhava em frente. Ele ia ao volante, ela guiava. Ele indignava-se, vociferava. Ela reflectia. Diziam: a Zulmira do Saúl. E: o Saúl da Zulmira. Hoje de manhã vi a Zulmira, na rua, tão branca que nem no muro se via a sombra do Saúl.
30 maio 2006
O poder da mente
foto: andré bonirre
Estava a pensar nela, às vinte e duas e quinze, quando recebi um sms que dizia: “- Estás a tentar ligar-me? Não tenho bateria no móvel. Tenta o fixo.”
Não estava a tentar ligar-lhe. Nunca lhe ligo. Estava a tentar ler, com um livro numa mão e um lápis na outra, e talvez a pensar nela. Não sei se percebem a diferença. Não estava a pensar nela e a ler. Nem a ler para não pensar nela. Estava a ler, um romance de Claudio Magris sobre o Danúbio. E a pensar nela em Donaueschingen, em Ulm, em Passau, em Regensburg. Não tinha o telemóvel perto. Tenho sempre, obsessivamente, o bloqueio do teclado activado. “-Estás a tentar ligar?”-ela, a perguntar.
Não sei responder. Talvez estivesse. Fico sempre sem perceber se liguei ou não. Se se trata de actos falhado com sucesso, se do poder da mente. Se a minha mente deixou de ser privada, para poder ser lida, mesmo nas dobras, claramente e à distancia, nos visores dos telemóveis sem bateria.
Estava a pensar nela, às vinte e duas e quinze, quando recebi um sms que dizia: “- Estás a tentar ligar-me? Não tenho bateria no móvel. Tenta o fixo.”
Não estava a tentar ligar-lhe. Nunca lhe ligo. Estava a tentar ler, com um livro numa mão e um lápis na outra, e talvez a pensar nela. Não sei se percebem a diferença. Não estava a pensar nela e a ler. Nem a ler para não pensar nela. Estava a ler, um romance de Claudio Magris sobre o Danúbio. E a pensar nela em Donaueschingen, em Ulm, em Passau, em Regensburg. Não tinha o telemóvel perto. Tenho sempre, obsessivamente, o bloqueio do teclado activado. “-Estás a tentar ligar?”-ela, a perguntar.
Não sei responder. Talvez estivesse. Fico sempre sem perceber se liguei ou não. Se se trata de actos falhado com sucesso, se do poder da mente. Se a minha mente deixou de ser privada, para poder ser lida, mesmo nas dobras, claramente e à distancia, nos visores dos telemóveis sem bateria.
Amalia Bautista
Na feria del Libro de Madrid, uma Antologia de Amalia Bautista:
Tres deseos (Renacimiento)
Tres deseos (Renacimiento)
Feria del Libro
A Feira do Livro de Madrid abriu no Paseo do Retiro. A rainha Sofia parou em mais de trinta expositores, comprou Vargas Llosa, Saramago, o livro de Suso de Toro, um escritor galego que assinava na Mondadori, livros de crianças, biografias de músicos da autoria dos irmãos Massin, um livro sobre a Noruega. Trocou impressões com os acompanhantes sobre o Código Da Vinci, um livro que para ela es una tontería. A rainha Sofia é uma suave princesa da cristandade e este é o comentário benigno que se esperava dela. A Feira é uma feira temática, dedicada à ciência, à divulgação científica. Babelia dedica-lhe um número muito bem elaborado, com um excelente artigo de Javier Sampedro onde se defende que o território do livro de divulgação científica fica para lá da informação da web, e se disponibilizam direcções da Física, da Astronomia, da Evolução
e o endereço PLoS, Public Library of Science, onde se defende a gratuitidade dos textos da net.
Sampedro afirma no seu texto que
A mesma confiança nas nossas capacidades transpira das declarações de Eduard Punset, responsável do programa Redes da TVE:
Através de entrevistas a cientistas e de recensões em destaque, Babelia dá boas sugestões de leitura. Ficamos a saber, por exemplo, que Matt Ridley do excelente Nature via Nurture foi editado com o título de Qué nos hace humanos (Punto de Lectura, 8,25 €).
Understanding Evolution
The Talk.Origins Archive
e o endereço PLoS, Public Library of Science, onde se defende a gratuitidade dos textos da net.
Sampedro afirma no seu texto que
...a realidade é uma sobredose de informação permanente e confusa, que nunca tivemos problemas para filtrar, ignorando quase tudo e retendo apenas uma pequena porção que nada pesa e diz o que precisamos.
A mesma confiança nas nossas capacidades transpira das declarações de Eduard Punset, responsável do programa Redes da TVE:
Somos descendentes directos do Cromagnon, um hominídeo dado à fantasia e ao relato
Através de entrevistas a cientistas e de recensões em destaque, Babelia dá boas sugestões de leitura. Ficamos a saber, por exemplo, que Matt Ridley do excelente Nature via Nurture foi editado com o título de Qué nos hace humanos (Punto de Lectura, 8,25 €).
29 maio 2006
Tudo outra vez
Outra vez a febre outra vez as bandeiras nas casas do bairro operário como as espículas da camada externa de um vírus inocente outra vez as sirenes anunciando os fogos a pestilência adocicada do ar a exuberância dos insectos e dos vermes rastejantes outra vez as praias e a tristeza das crianças no regresso tudo outra vez embora qualquer coisa tenha mudado que não se vê ainda.
25 maio 2006
Prémio Luandino Vieira
Luandino Viera recusou o Prémio Camões(cem mil euros). Segundo José Rodrigues, citado no Público, o escritor angolano vive, desde a década de noventa, num convento-atelier do Minho, desinteressado do mundo e quase só falando com os animais. O jornal diz que a recusa é inédita. Herberto Helder fez o mesmo quando lhe foi atribuido um galardão assim. Não sei se foi exactamente o Prémio Camões. Se não foi, é injusto que lhe não tenha sido ainda atribuído. Louve-se Luandino, que não quis ser merdalhado em vida, mesmo que a distinção tenha vindo dos seus pares. E louve-se o júri, por ter escolhido um escritor que podia recusar a selecção.
À ASL, Margarete, Castor e aos queridos não-amigos
NINGUNA MUJER ES MEJOR QUE EL MAR
ninguna mujer
es mejor que el mar
y aun así
todos los peces caben en su vientre
toda la historia se resume en su caverna
todos nuestros delirios se aplacan en sus senos
ninguna mujer
es mejor que el mar
y en todas las ensenadas interiores
está escrito su nombre
en todas las galerías del recuerdo
hay una flor de fuego entre la niebla
unos besos que se irán a la tumba con nosotros
ninguna mujer
es mejor que el mar
y el furor de su oleaje
nos lleva a la cima
o nos hunde en el silencio de la muerte
ninguna mujer
es mejor que el mar
y aun así
mi faro no deja de buscarla
entre el nutricio mar de los sargazos
Osvaldo Saua - Costa Rica
ninguna mujer
es mejor que el mar
y aun así
todos los peces caben en su vientre
toda la historia se resume en su caverna
todos nuestros delirios se aplacan en sus senos
ninguna mujer
es mejor que el mar
y en todas las ensenadas interiores
está escrito su nombre
en todas las galerías del recuerdo
hay una flor de fuego entre la niebla
unos besos que se irán a la tumba con nosotros
ninguna mujer
es mejor que el mar
y el furor de su oleaje
nos lleva a la cima
o nos hunde en el silencio de la muerte
ninguna mujer
es mejor que el mar
y aun así
mi faro no deja de buscarla
entre el nutricio mar de los sargazos
Osvaldo Saua - Costa Rica
24 maio 2006
Meus caros não-amigos
Os nossos amigos têm sempre muito que fazer, ou não coincidimos na disponibilidade. A questão- Hofmmanstal envenena a terna amizade que dedicamos às mulheres. A blogosfera, aprendi hoje com o António, criou um novo tipo de afinidades: com os não amigos, não contactáveis, mas respondentes.
Guatemala
O último mail de Bonirre foi da reserva territorial dos índios bribri. Dizia do orgulho que eles sentiam pelo primeiro presidente índio em toda a América e que se ia encontrar com a candidata local a umas eleições, numa manifestação contra a exploração do petróleo. Foi há oito dias. Depois o silêncio. A partida de Bonirre assinalou o êxodo dos meus amigos mais chegados. Quando perguntei à Clara se estava bem, ela respondeu ao fim de algumas horas: “A jantar com o amigo escocês. Preparo a ida para Inverness.” O Jorge foi para o país das Coronárias. A Clarisse fechou-se a ler. O Vernon e o amigo músico rumaram a Amsterdão, à procura de um finale grandioso. Fenimore refugiou-se em Veneza. A Conceição assustou-se ao ultrapassar os cinquenta quilos e convenceu um cirurgião amigo a pôr-lhe uma banda gástrica. Durante o processo de convencimento, desapareceram ambos. O Matos exilou-se interiormente para escrever a tese da Dra. Filomena.
O que é mais espantoso nestas extinções é o facto dos desaparecidos serem contactáveis, de quando em quando responderem, não parecendo dar conta do tempo que passou. Ao ler-lhes os sms, os raros mails, tenho a sensação de ter sido eu a ausentar-me.
O que é mais espantoso nestas extinções é o facto dos desaparecidos serem contactáveis, de quando em quando responderem, não parecendo dar conta do tempo que passou. Ao ler-lhes os sms, os raros mails, tenho a sensação de ter sido eu a ausentar-me.
Uma mulher
Uma mulher, quando se sente observada
fica irritada e procura o homem que devia estar ao seu lado e se demora a folhear um livro. Queixa-se do calor, mais do que faz prever o calor que faz na livraria. Encosta-se a ele, este é o meu homem, diz ela ao outro homem que observa. De súbito tudo nela é excessivo. Mais terna a sua mão na nuca dele, mais apressada a urgência em sair, mais cansada que a tarde ainda a meio. Uma mulher longe de casa, que um olhar empurra para o braço de outro homem, a sua solidão.
fica irritada e procura o homem que devia estar ao seu lado e se demora a folhear um livro. Queixa-se do calor, mais do que faz prever o calor que faz na livraria. Encosta-se a ele, este é o meu homem, diz ela ao outro homem que observa. De súbito tudo nela é excessivo. Mais terna a sua mão na nuca dele, mais apressada a urgência em sair, mais cansada que a tarde ainda a meio. Uma mulher longe de casa, que um olhar empurra para o braço de outro homem, a sua solidão.
Um livro e a sua capa
O melhor momento da noite foi quando Pacheco Pereira confrontou Carrilho com a capa do seu livro.
Eu não leio o livro de Carrilho porque não compro um livro com uma capa que tem o homem em foto promocional. Acontece-me isto. Não leio a ideia de Europa do Steiner porque não leio um livro que tem na capa, indelével, o nome gravado do Durão Barroso.
Eu não leio o livro de Carrilho porque não compro um livro com uma capa que tem o homem em foto promocional. Acontece-me isto. Não leio a ideia de Europa do Steiner porque não leio um livro que tem na capa, indelével, o nome gravado do Durão Barroso.
Prós e quase
No frente a frente Carrilho esqueceu-se dos interesses que estavam por detrás dos jornalistas e das agências, conubiados para o derrubar. Rangel preocupava-se em exibir a virgindade refeita. Ricardo Costa, como Rangel, fala dos maus jornalistas sem os citar. Pacheco Pereira manteve-se num reduto de inteligência e salvou o debate.
Danças de roda
Na semana passada um jornal noticiava que o Professor Canotilho, um dos três videntes da Constituição de Abril, dera um parecer ao presidente da Câmara de Gondomar, arguido no “Apito Dourado” segundo o qual a Lei 49/91, de 3 de Agosto é inconstitucional. Quinze anos depois ficámos a saber que a lei que qualifica como crime os comportamentos que afectem a verdade e a lealdade da competição desportiva é, para o Professor Canotilho, e para o uso dos presuntos batoteiros, inconstitucional. Hoje aprendemos que o magistrado responsável entendeu "não ter condições para continuar" o processo. Pode-se falar disto num registo sarcástico, como faz o Filipe. Pode-se calar, olhar para o lado. Mas quando puserem as bandeiras e os cachecóis, lembrem-se das mãos que seguram nessa roda.
23 maio 2006
Quem outra vez dera
É de manhã e vou para os Correios. Não quero que a melancolia do cd se cole no meu dia. A antena dois está tomada pelas efemérides. Na um, à terça –feira, apanho a correcção impecável da Dra. Maria de Belém, tão impecável que adivinha a minha discordância e a envolve na sua suave compreensão. Não há nada pior do que ser compreendido por uma mulher como a dra Maria de Belém, às oito e meia de uma manhã da alta Primavera. Os passeios estão quase desertos. Reparo que a probabilidade de passar uma mulher como a talvez-florista, de a reconhecer e de cruzarmos os olhares, é hoje quase nula. Paro nas passadeiras. E na rua do poeta Fernando Assis Pacheco, o tempo que o trânsito permite, uma curva para a esquerda, ao Espírito Santo. De um lado, entre silvas, uma barraca de farturas. Do outro o viaduto. Um novo dia, ó Assis, quem dera e outra vez viera e dera. Seremos ainda dignos do cu de Maruxa?
22 maio 2006
Augusto M. Seabra na Relação do Porto
Augusto M. Seabra escreveu no Mil Folhas uma excelente crónica sobre o episódio da interdição da peça de Handke pelo homem de princípios que o estado francês colocou à frente da Comédie Française. Seabra refere a reacção de Handke à visão monocolor do drama dos Balcãs, distancia-se da comparência do escritor austríaco no funeral de Milosevic, mas reproduz o breve discurso que ele aí proferiu. E acaba por chamar censura à retirada da peça. Um texto pensado e que deixa pensar. A crónica foi escrita ao mesmo tempo que um juiz do Porto, de nome Carlos Coutinho, o condenava a pagar 240 dias de multa à razão de nove euros diários e ao pagamento de uma indemnização cível de 4.000 euros, por ter chamado energúmeno a Rui Rio, num momento em que este parecia espiritado pela obsessão de afastar Pedro Burmester da Casa da Música. Soube disto hoje. Estive numa zona do país governada por um possesso afável, onde, para ler qualquer jornal nacional, tinha de andar cerca de dezassete quilómetros. Ao saber hoje da notícia, o meu espírito não parou de redemoinhar em torno do significado desta condenação. Ignoro o quadro legal invocado pelo juiz para a proferir. Mas os comentários proferidos em torno da liberdade de expressão, e os cuidados recomendados à critica, elucidam-me sobre as competências linguísticas de Carlos Coutinho. Este fantástico corropio da minha consciência tornou-me, espero que temporariamente, num energúmeno. Devo agradecer ao possesso afável por manter os jornais que publicitam notícias destas afastados das vilegiaturas de recato. Gozei assim alguns dias de ignorância, naquele estado de beatitude em que todos ficaremos quando, no meio de um envergonhado silêncio, os energúmenos calarem os espíritos livres.
De Casamansa a Praga
A história tem vindo a ser contada por Juan Manuel Pardellas no El País. O rapaz era senegalês, de Casamansa, e tinha 22 anos. Trabalhava nos correios, em Dakar, e a família amealhara 1.500 euros, uma fortuna. Comprou bilhete de avião para a Cidade da Praia. Trezentos euros. E aí viveu três meses, numa casa que partilhava com 50 pessoas. Um homem, chamado Amadeu, conseguiu-lhe lugar no barco de um espanhol, que gere uma rede de imigração africana. O espanhol, um homem forte, de baixa estatura, meia-idade, moreno, faz-se passar por um mecânico das Canárias. Através de Amadeu e de outros cabo-verdianos recruta africanos para as Canárias. Na véspera do passado Natal, o barco, velho e que pretensamente sofrera umas reparações na Praia, estava pronto a largar, sobrelotado com 53 africanos, quase todos do Senegal, três nascidos na Guiné-Bissau. Cada um deles pagara 1.200 euros pela viagem. Alegando que o capitão viria em breve, o espanhol abandonou a embarcação. Cinco passageiros, desconfiados, voltaram para terra. Os restantes, iludindo a vigilância do porto, zarparam nessa mesma noite. No terceiro dia de navegação a lancha avariou-se e eles pediram socorro ao espanhol, com o qual mantinham contacto. Um barco de maiores dimensões aproximou-se e rebocou-os. Mas em lugar de rumar às Canárias, ou de voltar a Cabo Verde, internou-se no Atlântico e, ao apanhar as correntes do equador, cortou as amarras e afastou-se. Os homens ficaram à mercê da corrente, que os deslocou à velocidade de 500 metros por hora na direcção do litoral americano. Quatro meses depois o barco, “sem nome, mastros nem bandeira”, foi encontrado ao largo dos Barbados. No interior havia latas vazias de sumos de laranja e ananaz e de conservas de sardinha e tomate, documentos de 37 homens do Senegal, jovens, alguns deles com apenas 18 anos, roupa suja, notas de euros e dólares e 11 cadáveres, mumificados, que não puderam ser identificados.
O jornal tem uma foto do irmão de Malang, encontrado pelo jornalista. Está encostado a uma pedra, que podia ser a base de um padrão. Tem vestida uma T-shirt com a sombra de Kafka afastando-se numa Praga amarela, onde as ruas e os céus se confundem. Há quatrocentos anos, podia ser contada uma história como esta, com homens assim, um moreno espanhol, um Amadeu da cidade da Praia e homens do golfo da Guiné, falando mandinga, wolof e outras línguas locais.
16 maio 2006
Uma vaginalista no debate
No debate das maternidades cheguei de madrugada, já a dona Fátima se espreguiçava no banco de bar. Deu para ver as claques. Detesto as claques, as T-shirts com crianças a falar pelos adultos. Vi a dra. Blendina declarar-se uma vaginalista convicta e o Campos, político matreiro, lembrar que a taxa de cesarianas em Barcelos é de 37%, três pontos acima da taxa nacional. Reposta a verdade, ficamos mais sossegados. Sempre me pareceu que não somos o que pensamos ser, o que dizemos ser. Na intimidade das decisões, as nossas opções racionais adaptam-se às circunstancias. A dra Blendina escusa de se declarar vaginalista. Ela queria ser vaginalista, mas na hora da verdade é vaginalista, abdominalista e tudo o resto que deus quiser.
Já nem da Póvoa somos, meu senhor.
Na Pública do passado fim de semana, Alexandra Lucas Coelho entrevista António Hespanha, sobre o pessimismo nacional e as suas raízes históricas. As respostas de Hespanha estão à altura das perguntas e são o reflexo de um pensamento honesto, de quem interroga a história à procura de ideias condutoras e encontra a fragmentação. A fragmentação geográfica, a fragmentação social, quebrando toda a ilusão de unidade, directriz, espírito do tempo. As respostas de Hespanha são contraditórias, como Alexandra lhe faz notar. De vez em quando, o historiador, habituado às sínteses, à identificação com as elites culturais, acredita. Mas logo a seguir o pesadelo volta. E o pesadelo não é a fragmentação, mas a unificação operada por uma televisão controlada por um poder sem rosto e sem noção do passado, hábil no emprego dos meios técnicos, espalhando o pó das coisas fúteis, falando a todos como se todos fossemos as crianças sábias e ignorantes dos morangos.
La Comédie Française
O escritor austríaco, de mãe eslovena, Peter Handke, esteve presente no funeral de Milosevic e explicou porquê. Em retaliação, o administrador da Comédie Française, Marcel Bozonnet, resolveu retirar da programação a peça Voyage au pays sonore ou l'art de la question, prevista para 2007 e entretanto em fase de produção, da autoria de Handke. As opiniões políticas de Peter Handke são discutíveis. Ele discute-as. A censura a uma peça de teatro é um acto administrativo, não é um acto de cultura. Que um liberal francês a tome, em nome da indignação, é um sinal inquietante dos tempos.
15 maio 2006
Alguém atirou um cão...
ó tépida tequilla,
existe ainda
o amor
e o vulnerável cão
do espírito
que lavra
cada palavra
oculta
por pudor
e a ladra
inutilmente
dentro
da garganta
vazia,
Carlos de Oliveira, Debaixo do Vulcão, in Micropaisagem
(Para o André Bonirre)
14 maio 2006
Love Unexpressed: Constance Fenimore Woolson
The sweetest notes among the human heart-strings
Are dull with rust;
The sweetest chords, adjusted by the angels,
Are clogged with dust;
We pipe and pipe again our dreary music
Upon the self-same strains,
While sounds of crime, and fear, and desolation,
Come back in sad refrains.
On through the world we go, an army marching
With listening ears,
Each longing, sighing, for the heavenly music
He never hears;
Each longing, sighing, for a word of comfort,
A word of tender praise,
A word of love, to cheer the endless journey
Of earth's hard, busy days.
They love us, and we know it; this suffices
For reason's share.
Why should they pause to give that love expression
With gentle care?
Why should they pause? But still our hearts are aching
With all the gnawing pain
Of hungry love that longs to hear the music,
And longs and longs in vain.
We love them, and they know it; if we falter,
With fingers numb,
Among the unused strings of love's expression,
The notes are dumb.
We shrink within ourselves in voiceless sorrow,
Leaving the words unsaid,
And, side by side with those we love the dearest,
In silence on we tread.
Thus on we tread, and thus each heart in silence
Its fate fulfils,
Waiting and hoping for the heavenly music
Beyond the distant hills.
The only difference of the love in heaven
From love on earth below Is:
Here we love and know not how to tell it,
And there we all shall know.
Fenimore (Constance Fenimore Woolson)
As mais doces notas nas fibras do coração humano
Emperram com ferrugem;
Os mais doces acordes, enaltecidos pelos anjos,
Sufocam com o pó;
Tocamos e voltamos a tocar a nossa triste música
Sempre sobre tensões pessoais,
Enquanto sons de crime e medo e desespero
Voltam num doloroso refrão.
Atravessamos o mundo como um exército em marcha
Com ouvidos à escuta,
Cada um desejando, suspirando pela música celestial
Que nunca ouvirá;
Cada um desejando, suspirando por uma palavra de consolo
Uma palavra sensível de alento,
Uma palavra de amor para animar a viagem interminável
Pelos dias difíceis e atarefados na terra.
Somos amados e sabemo-lo; no que respeita à razão
Isso é suficiente.
Por que haveria alguém de parar e oferecer um gesto de amor
Terno e delicado?
Por que haveria alguém de parar? Mas os nossos corações sofrem
Com a dor rutilante
Do amor faminto que anseia por ouvir a música
E espera e espera em vão.
Nós amamos e os outros sabem; se vacilamos
Com os dedos entorpecidos,
Entre as cordas não utilizadas dos instrumentos do amor,
As notas ficam mudas.
Encolhemo-nos para dentro numa aflição calada,
Deixamos as palavras por dizer,
E, lado a lado com aqueles a quem mais amamos,
Em silêncio caminhamos.
Assim caminhamos, e em silêncio cada coração
Segue o seu destino
Esperando e ansiando pela música celestial
Além dos montes longínquos.
É apenas uma a diferença entre o amor no céu
E o amor cá em baixo na terra:
Aqui amamos e não sabemos como dizê-lo
Lá todos vamos saber.
(tradução enviada por at.)
M.M.Carrilho
Nem tudo é negativo no lançamento do livro de M.M.Carrilho.
Parte do politburo socialista estava presente (mais do que ele juntou na campanha eleitoral, notaram os relatos). Mas nenhum, nem Campos, fez mais do que declarações formais. Não tinham lido o livro. Nem o lerão.
Saraiva acha que os jornalistas, ou os que entrevistaram M.M.Carrilho, são "atrasados mentais". O antigo director do DN exultou com a coragem na denúncia do "arrastão". E Rangel retratou os jornalistas como uma "canalha" sem escrúpulos. Ora os três foram, até há pouco, pilares incontornáveis da opinião pública. Não apenas tiveram acesso ilimitado aos rádios, televisões e jornais, como contrataram e despediram jornalistas, chefiaram redacções, com tudo o que isso implica. As suas acusações deviam ser menos genéricas, mais factuais. Os restos mortais da Alta Autoridade deviam ouvir esta trindade indignada.
Finalmente: M.M.Carrilho também atacou Ana Sá Lopes. Mas isso só fez melhorar, e por duas vezes, se vi bem, a imagem de Ana Sá Lopes.
Parte do politburo socialista estava presente (mais do que ele juntou na campanha eleitoral, notaram os relatos). Mas nenhum, nem Campos, fez mais do que declarações formais. Não tinham lido o livro. Nem o lerão.
Saraiva acha que os jornalistas, ou os que entrevistaram M.M.Carrilho, são "atrasados mentais". O antigo director do DN exultou com a coragem na denúncia do "arrastão". E Rangel retratou os jornalistas como uma "canalha" sem escrúpulos. Ora os três foram, até há pouco, pilares incontornáveis da opinião pública. Não apenas tiveram acesso ilimitado aos rádios, televisões e jornais, como contrataram e despediram jornalistas, chefiaram redacções, com tudo o que isso implica. As suas acusações deviam ser menos genéricas, mais factuais. Os restos mortais da Alta Autoridade deviam ouvir esta trindade indignada.
Finalmente: M.M.Carrilho também atacou Ana Sá Lopes. Mas isso só fez melhorar, e por duas vezes, se vi bem, a imagem de Ana Sá Lopes.
Um amor forte de Ratzinger
Políticos e legisladores” salvaguardem “os direitos da família”:disse o Papa no que foi considerada uma nova e total condenação das “soluções jurídicas para as chamadas uniões de facto” que, “recusando as obrigações do matrimónio, pretendem obter direitos equivalentes”. Ratzinger discursava para uma organização católica internacional, num momento em que em Itália se discutem leis sobre as uniões de facto, no âmbito de revisão da concordata. Lançando o peso da Igreja no debate, o Papa avisou ainda os incautos: “No fim de contas o objectivo desta nova definição do matrimónio é a legalização das uniões homossexuais”.
Para Ratzinger o matrimónio poderia ainda ser defendido se “os cônjuges recorressem ao apoio de Deus com a oração e a participação assídua aos sacramentos particularmente à eucaristia”. (Reppublica, aqui).
Para o DN o Papa terá defendido o matrimónio, para “evitar a confusão com outro tipo de uniões, fundadas num amor fraco.” E a notícia termina com uma frase sibilina: O Papa apelou para que seja ultrapassada “uma concepção privada do amor, actualmente muito difundida”.
Na verdade, a defesa do matrimónio é, para Ratzinger, acessória. Um tique da tradição de luta política do Vaticano contra as sociedades laicas. O matrimónio é para a Igreja uma espécie de célula combatente, uma questão de enquadramento do povo cristão, um aspecto de organização. Tem pouco a ver com o amor,o Amor, e a visão de Ratzinger do Amor.
Desde a encíclica Deus Caritas est que Ratzinger persegue uma formulação do amor. Nem Eros (“o amor mundano”), nem Agapé (“o amor fundado na fé”), nem a fusão dialéctica dos dois, através do amor ao sangue do deus trespassado. Caritas, o amor comunista.
O amor é « divino » porque provém de Deus e a Deus nos une e, mediante este processo unificador, transforma - nos num Nós, que supera as nossas divisões e nos converte em uma só coisa, até que no final Deus seja « tudo para todos » (cf. 1 Co 15, 28)- escreveu ele na encíclica. E para que não houvesse dúvidas, nesse mesmo contexto, citou as escrituras:
Os crentes viviam todos unidos e tinham tudo em comum; vendiam as suas possessões e bens e repartiam entre todos, segundo a necessidade de cada um » (Hch 2, 44-45).
O final da primeira encíclica de Ratzinger é, aliás, a apologia delirante do amor à Virgem Maria, consagração dessa forma pública de amor e uma sugestão de fantasia para a praxis do povo cristão.
É um pouco nesse sentido que Fátima deve ser encarada. Uma celebração desse amor colectivo, onde o corpo e a alma da multidão sobem (Eros) e descem (Agapé), com Maria, através de Maria.Fátima é um campo de treinos para este novo Amor ratzingeriano, forte e colectivo, que não desmerece do amor privado das sociedades individualistas. Se estivermos atentos a Fátima e à evolução da eucaristia em Fátima, poderemos ter boas surpresas.
12 maio 2006
S. José (dia um)
meseta central bordejada de vulcoes e tudo muito pobre e feio, pior do que as piores descricoes que lera, falo de s. josé, daqui a pouco rumo para monteverde onde florestas de nuvens e explosoes de lava vao salvar a viagem.
de resto tudo normal excepto nao ter telemovel com mensagens. é como se andasse cego.
11 maio 2006
O papel da religião
Terrível é a correspondência entre o professor do Irão e o negociante de petróleo do Texas. A religião, como ideologia e referente comum, legitimando a acção política e ameaçando o outro como pecador.
10 maio 2006
Três anos
Há três anos, André Bonirre rumou aos Açores para procurar Ana Paula Inácio, que ameaçara deixar de escrever. Encontrou Margarida Clarck Dulmo, ou alguém por ela. Uma escrevente emocionada que lhe fez esquecer os ruídos subterrâneos do Pico, a rede densa de túneis por onde circulava um espírito literário. Ana Paula Inácio não queria escrever nem ser encontrada. Há em alguns versos um rasto dela, tão espectral como o personagem dos seus contos breves (1). Bonirre esteve à porta da casa dos poetas e em boa hora a sua mão tremeu. Passaram três anos. O Iraque de ontem é hoje o Irão, mas isto não dá luta, com o Império a negociar, e todos, todos, vergados à ditadura do bom-senso, tão formatados como as Anabelas e as Íris Salomés pelos pronto-a-vestir dos shoppings. Bonirre partiu para a Guatemala e desta vez não procura ninguém, entre mortos e vivas, nem leva ninguém, apesar dos custos adicionais da solidão no alojamento. Deixou duas fotos de fingir, para compor o desamparo deste blog. E se houver net em Antigua, talvez mande imagens de cães esquálido, de boca fechada.
1. Ver Carlos Bessa, Assírio Alvim, 2005.
1. Ver Carlos Bessa, Assírio Alvim, 2005.
09 maio 2006
O cio dos plátanos
Um vento de cotão sopra dos plátanos. Nas copas, é onde o verde é mais escuro que se abrem as inflorescências que inundam a cidade. Entram nas casas, nas gavetas, nas bocas, nas narinas. Levam a todo o lado uma semente estéril.
Responsabilidade Social
Segundo VPV, Cavaco terá confidenciado aos parceiros sociais que até 2010 não haverá retoma económica. Depois não se sabe. O DN titulava ontem, a toda a primeira página, que até 2050 estaremos na cauda da Europa. Neste ambiente deprimido, a preocupação maior dos dirigentes responsáveis é a coesão social. Os dirigentes responsáveis sabem que não podem mudar a conjuntura económica. Os dirigentes responsáveis têm uma ideia, menos vaga do que a minha, de quem manda de facto. De qualquer forma, sabem, nesse poço negro que é o íntimo de si mesmos, que a sua função se limita a criar o clima mais favorável aos investimentos. Os políticos responsáveis debitam a arenga social. Para que os excluídos não se revoltem é necessário que participem. Marchas contra a fome, S. Vicente de Paulas, muito commitment. É barato, faz a fusão entre a caridade cristã, a intervenção da sociedade civil e a redenção dos desiludidos post revolucionários. Uma perita nestes sermões modernos é a dra. Maria de Belém. Não conheço ninguém que, da boquinha para fora, debite tão bem, de forma tão depurada e canónica, este discurso entorpecedor e vazio.
08 maio 2006
Reassortment na blogosfera
(para não falar do Luís M Jorge)
A notícia da semana: Suzana BB, Lutz , Bívar e Luís Mendes Jorge, juntos num lugar comum. Ao Eduardo isto lembra Rohmer. A mim Truffaut.
07 maio 2006
06 maio 2006
A FNAC Coimbra
A verdade é que o Bruno me perguntou:
- É isto a FNAC, ou uma Worten com livros ao fundo?
E eu dei-lhe a resposta de Bartleby.
- É isto a FNAC, ou uma Worten com livros ao fundo?
E eu dei-lhe a resposta de Bartleby.
05 maio 2006
Da Amizade
- Acaht.
- Cortez.
- Chac, Gucumatz, Urucan.
- Pizarro, Orellana, Cabeza de Vaca.
- Mam.
- Mam?
- Ixtabe, Ixtabe, Ixtubtun, Ixtabe.Ixtabe!
- Balboa. Bernal Díaz del Castillo!
- Cortez.
- Chac, Gucumatz, Urucan.
- Pizarro, Orellana, Cabeza de Vaca.
- Mam.
- Mam?
- Ixtabe, Ixtabe, Ixtubtun, Ixtabe.Ixtabe!
- Balboa. Bernal Díaz del Castillo!
04 maio 2006
03 maio 2006
Da Amizade
Isto passou-se há uns anos e como talvez não se tenha passado apenas comigo atrevo-me a contar. S. era minha amiga desde a faculdade. Telefonei-lhe hoje a pedir para escrever isto e ela autorizou, desde que não revelasse o lugar, o ano, o verdadeiro nome dela. Nem S. nem o marido perdem tempo com blogs, ela mediu rapidamente o risco e assentiu. Naquele ano, eu tinha recebido inesperadamente algum dinheiro, não muito, e podia fazer, com alguns cuidados, uma viagem. Num estágio na Bélgica conhecera C. Palácios, uma refugiada da América Central. Tinham-lhe assassinado a família e ela fora recolhida por uma associação de livres-pensadores belgas que pagava bolsas a pessoas como ela. Se alguma vez sentira raiva ou qualquer animosidade para com os assassinos, esses sentimentos tinham-se desfeito, e C. Palácios era uma mulher calma que me contou histórias fabulosas do seu país e me ofereceu um livro escrito por homens que celebravam a natureza e uma esperança ingénua. Comprei um bilhete para esse país, não porque me movesse qualquer desejo de encontrar C. Palácios, cujo rasto aliás perdera, mas porque era o único país da América Central de que desconhecia praticamente tudo. O agente de viagens perguntou-me se viajava sozinho e insinuou o que já sabia: os custos de hotel seriam mais aceitáveis em quarto duplo. Os dois ou três amigos que desafiei não tinham dinheiro, férias, nem vontade. Nessa tarde, no acaso de um café da Baixa, encontrei S. Fomos à agência de viagens e marcámos avião e algumas dormidas. Dez dias depois partíamos.
S. era minha amiga. Tínhamos estudado juntos duas ou três tardes, conversado algumas vezes, trocado alguns livros. Dessa viagem recordo o seu estojo de toilette, o facto de ter tido uma conjuntivite e ter usado todo o tempo uns óculos graduados, de massa colorida, as saias curtas de ganga clara, as botas, e as meias sem costura, com a palavra Patagónia escrita na vertical, o apetite surpreendente e as acertadas escolhas gastronómicas, a facilidade com que ganhou o sotaque local e o modo como falava um castelhano, de tal forma que os locais fingiam uma confusão que era pretexto para intermináveis conversas. E, claro, a noite extraordinária que motivou este relato.
Já estávamos no nosso destino há mais de uma semana. Esse dia tinha sido particularmente extenuante. Chegámos quase de noite à povoação de N., arranjámos quarto num hotel. Lavámo-nos aos pedaços num lavatório e, sem comer, adormeci de puro cansaço. Quando acordei, de noite, ouvi, vindo da rua, o que parecia ser um relato de futebol pontuado por risos masculinos. Ela estava de costas para mim, virada para a janela, talvez dormisse. Cheirava bem, uma mistura de creme gordo, alfazema e suor. Pensei, sem rigor, no mundo e na história do mundo, na gente rude que edificara aquela povoação, tão contígua à densa vegetação que percorrêramos, à lama e à poeira, aos insectos e aos pássaros, aos cães famintos que corriam atrás das crianças. Pensei que éramos parte daquilo, uma parte sem nome de uma coisa sem nome, que embora quietos nos movíamos numa nave que balouçava entre dois grandes oceanos, entre planetas gelados ou incandescentes, numa noite cósmica sem manhã. E pensei que era também parte dela e ela parte de mim e a nossa respiração se juntava à respiração silenciosa das multidões da América Central, ao rumor da noite, ao zumbido intermitente de um gerador. Agradeci-lhe baixinho por estar ali comigo, num castelhano horroroso que a fez rir e voltar-se na cama. E senti por ela uma coisa a que chamarei ternura, porque ternura é aquilo que chamamos ao calor do peito quando o tempo pára e a vida e a morte, o sono e a vigília, o sonho e a inteligência das coisas se misturam. E entrámos um no outro e na noite central americana, com calma e fúria, fúria e calma, dizendo as coisas que vinham à cabeça e que no meu caso eram os nomes dos conquistadores espanhóis e no dela das divindades maias.
02 maio 2006
01 maio 2006
Os homens do Mal: Joaquin Phoenix
Joaquin Phoenix, San Juan de Puerto Rico, 1974. Trinta e três filmes. Foi Johnny Cash em Walk the Line e é inesquecível a interpretar Ring of Fire, Walk the Line ou a Balada da Prisão de Jackson.
Romance
Houve uma época em que decidimos dormir entre amigos e amigas. Aquilo não correu bem. Nós felizes, por poder falar do Hofmannstal e do Edgar Lee Masters. Elas queriam romance.
Os factos
No "como se passaram as coisas realmente" esconde-se um "não podia ter sido de outro modo". Essa verdade que se funda em factos construídos por testemunhos é débil, porque os testemunhos parecem ser muito menos fiáveis que a faculdade de discernir a sua falibilidade.
Não temos que situar-nos incondicionalmente no terreno dos factos.
Hannah Arendt, no Diario Filosófico (1950-1973) Barcelona 2006
O Consultório Sexual vem aí
A Quetzal anuncia o lançamento do Consultório Sexual da Dra. Tatiana Para Toda a Criação, o livro que Olivia Judson escreveu e a Vintage publicou em 2003. Olivia Judson, um esplêndido espécime da criação, estudou en Stanford e doutorou-se em ciências biológicas em Oxford. Escreve regularmente na Nature, que se referiu ao livro como um festim de práticas sexuais extraordinárias, na Science, no Guardian e no Economist textos bem humorados sobre biologia evolucionista. O Consultório foi um êxito, teve um site, inspirou muitos posts, uma série dirigida por Martin Durkin para Discovery (Canada), Channel 4 (UK) and Discovery Health (US). E vá-se lá saber que mais.
Leia as excelentes entrevistas a Miss Philodina, cujos ancestrais abandonaram o sexo há 85 milhões de anos, antes da extinção dos dinossauros, a carta do leão à procura de estimulantes depois de, em 55 horas, ter copulado 157 vezes com duas leoas que continuavam insaciáveis, a evidência de que, em muitas espécies, as fêmeas são body fascists, desprezando os dotes intelectuais, a sensibilidade e a ternura dos machos e obrigando-os ao uso de caudas estapafúrdias, ornamentos coloridos e olhos exorbitados.
Seja bem vinda a Portugal, Dra. Tatiana.
A Cinemateca
João Bénard da Costa é um senhor muito chato, que escreve sobre cinema e dirige a Cinemateca Nacional, ao que dizem bem, isto é como se entendia que os museus deviam ser geridos. A Cinemateca está fechada aos domingos e feriados e é um sítio bafiento, onde se fala baixinho com medo de acordar os mortos e importunar os habituados da casa. Ontem li que as salas tinham habitualmente metade da lotação preenchida (260 lugares). A ser assim o êxito da Cinemateca não tem par e o que estou a escrever é injusto. Mas nos dias em que lá fui, parecia uma homenagem silenciosa a si própria, aos seus fundadores e directores. Acontece que João Bénard da Costa atingiu o limite da idade em que o estado reforma os seus funcionários. E levantou-se um coro de protestos, com o qual ele parece ter colaborado, asseverando que se preparava o seu saneamento. EPC aproveitou a colunazinha do jornal de que JMF pensa ser director para escrever um texto terrorista a intimidar a ministra da cultura. E os intelectuais mobilizaram-se em abaixo-assinado. A ministra já sabe com quem não se deve meter. Para a excepção não parecer escandalosa sugere-se que os intelectuais abaixo-assinados se constituam em comissão permanente de avaliação dos septuagenários, ajudando o governo a decidir quais os funcionários que se devem manter no exercício das suas funções.
(ler também Welcome to Elsinore, Da Literatura, French Kissin', Portugal dos Pequeninos e Fuga para a Vitória, Kontratempos e o artigo de Seabra no jornal não linkável de que JMF julga ser director )
(ler também Welcome to Elsinore, Da Literatura, French Kissin', Portugal dos Pequeninos e Fuga para a Vitória, Kontratempos e o artigo de Seabra no jornal não linkável de que JMF julga ser director )