31 agosto 2003
Somos matéria. Somos uma forma de organização de matéria que encontra no funcionamento do sistema nervoso central a sua forma superior de realização. A pequena a diferença que temos relativamente a sistemas físicos mais estáveis: um conjunto de reacções que permanentemente asseguram o desequilíbrio a que chamamos vida- a produção, transformação e conservação de energia necessária ao funcionamento dos genes e à produção de proteínas. A nossa diferença é esse desequilíbrio. Mas estranhamente, alguma coisa em nós aspira não apenas à compreensão do mundo mas à contiguidade absoluta com ele. Esse instante de máxima compreensão, em que se apaga a angústia, é a morte. O extase amoroso, a experiência mística, o cansaço físico extremo são algumas das aproximações que conhecemos desse estado de plenitude que é simultaneamente um momento de aniquilação. Os grandes filósofos foram suicidas embora lhes possa ter sucedido falhar o momento adequado e acharem-se como Borges aos 85 anos: agora resta-me esperar o meu suicídio natural.
A fama
Dois anos depois da edição de "Fervor de Buenos Aires", o primeiro livro de Borges tinha apenas vendido vinte e sete exemplares. Quando Borges se lamentou à mãe, ela respondeu-lhe: "Vinte e sete! Filho, estás a ficar famoso."
Sugestão ao vereador da cultura
Os Stones vêm à cidade de Coimbra inaugurar o Estádio. Fico contente. Mas porque é que não trazem mesmo os gladiadores? Os leões, os cristãos...
É tudo impossível de satisfazer
A nossa necessidade de consolo
é impossível de satisfazer
E também a nossa sede de água
e de ar, de espaço,
são impossíveis de satisfazer
E de música (que não é bem esta)
e de straciattela
e de paz, e de guerra
tudo impossível de satisfazer
E de árvores, de baloiços,
de histórias,
dos bonecos da infância,
de cocaína,
de fluoxetina (ò estúpido)
tudo impossível de satisfazer.
Em louvor de Stig Dagerman, com um abraço à Antígona e ao Silêncio
é impossível de satisfazer
E também a nossa sede de água
e de ar, de espaço,
são impossíveis de satisfazer
E de música (que não é bem esta)
e de straciattela
e de paz, e de guerra
tudo impossível de satisfazer
E de árvores, de baloiços,
de histórias,
dos bonecos da infância,
de cocaína,
de fluoxetina (ò estúpido)
tudo impossível de satisfazer.
Em louvor de Stig Dagerman, com um abraço à Antígona e ao Silêncio
A crueldade
Apesar de só ter havido um comentário no post da fotografia da Libertação (H Cartier Bresson) houve quem não tivesse gostado e mo dissesse. A Cristina não gostou que se pudesse pôr ao mesmo nível o torturador e a vítima, o delator e o denunciado. E considera que esse relativismo, que faz desaparecer o mal, é revoltante. Eu sei sempre de que lado me devo colocar, disse ela.
Stevenson que escreveu antes da grande eclosão do mal contemporâneo, considerava a crueldade como o pecado capital. A crueldade faz com que os mártires se confundam com os que acendem as fogueiras e os réprobos com os seus demónios. O cárcere da crueldade é infinito.
Um sábio disse que devemos combater a crueldade para não nos tornarmos cruéis. Mas como não usamos as armas dos cruéis seremos vencidos.
Stevenson que escreveu antes da grande eclosão do mal contemporâneo, considerava a crueldade como o pecado capital. A crueldade faz com que os mártires se confundam com os que acendem as fogueiras e os réprobos com os seus demónios. O cárcere da crueldade é infinito.
Um sábio disse que devemos combater a crueldade para não nos tornarmos cruéis. Mas como não usamos as armas dos cruéis seremos vencidos.
O autor de Harry Potter
Já vi isto três vezes. De cada vez que sai um livro do Harry Potter entrevistam uma senhora que é directora de um colégio inglês no Porto. Ela confirma que a J.K. Rowling viveu no Porto, foi professora do seu colégio e que até conviveram um pouco. Almoçaram juntas, ela era uma pessoa deprimida, sem grandes interesses, professora...faz uma pausa enfática e diz uma palavra assassina do género sem rasgos. Depois a entrevistadora pergunta-lhe se, naqueles dias, alguma vez imaginou ter à sua frente a que viria a ser a escritora mais célebre da actualidade. A senhora está claramente à espera daquele momento e dispara: De modo nenhum. Nunca lhe reconheci nenhum dote especial de criatividade. Aliás nunca a vi escrever.
Há anos um jornalista encontrou em Buenos Aires uma mulher que trabalhara na casa de Jorge Luis Borges durante vinte anos. Falou no senhor e na sua existência, no quarto dele, na ausência de mulheres depois da morte da mãe, no aparecimento da japonesa. E quase no fim da entrevista, largou: Ficava muito surpreendida quando via as homenagens e o que se dizia dele. Sabe, tantos anos naquela casa e nunca o vi escrever!
Todos sabemos que uma mulher chamada Pilar escreve há anos os livros do nobel português. E, ex-religiosa, todos os textos políticos de recorte radical. Maria Kodama, Maria Esther Vasquez, Alice Jurado, Margarita Jurado, o casal Bioy, qual deles foi Borges? Ninguém entrevista a mulher silenciosa que realmente escreveu Equador. Quemé o autor das aventuras de Harry Potter?
Há anos um jornalista encontrou em Buenos Aires uma mulher que trabalhara na casa de Jorge Luis Borges durante vinte anos. Falou no senhor e na sua existência, no quarto dele, na ausência de mulheres depois da morte da mãe, no aparecimento da japonesa. E quase no fim da entrevista, largou: Ficava muito surpreendida quando via as homenagens e o que se dizia dele. Sabe, tantos anos naquela casa e nunca o vi escrever!
Todos sabemos que uma mulher chamada Pilar escreve há anos os livros do nobel português. E, ex-religiosa, todos os textos políticos de recorte radical. Maria Kodama, Maria Esther Vasquez, Alice Jurado, Margarita Jurado, o casal Bioy, qual deles foi Borges? Ninguém entrevista a mulher silenciosa que realmente escreveu Equador. Quemé o autor das aventuras de Harry Potter?
Uma volta a menos
"Tenho um pesadelo recorrente em que vejo o mundo a dar voltas e voltas que eu, que sou um bocado lento, só acompanho com dificuldade. Às vezes paro mesmo e só retorno ao mundo quando ele já rodou mais um quadrante. O pesadelo acontece quando penso que o mundo pode já ter dado uma volta completa, eu volto satisfeito, parece-me que afinal dormi pouco, não noto a falta da volta e acho apenas intrigante que todos me olhem por cima do ombro.
Espero que seja só isso, um pesadelo recorrente. Na dúvida, assim que acordo, perscruto nos olhos dos outros o contador de voltas."
Enviado por PC
Espero que seja só isso, um pesadelo recorrente. Na dúvida, assim que acordo, perscruto nos olhos dos outros o contador de voltas."
Enviado por PC
30 agosto 2003
O grupo de iguais
É nesse livro, que Hannah não cansa de elogiar, que surge a "maior descoberta de Nettl", o grupo de iguais, judeus polacos, de cultura alemã, cujos padrões morais, na vida pública e privada, eram exclusivamente seus. "Esses judeus, uma minoria extremamente reduzida, não pertenciam a qualquer categoria social, judaica ou não judaica, e assim escapavam a preconceitos convencionais, tendo criado nesse isolamento magnífico, o seu código de honra próprio." "O denominador comum oculto desses que sempre se trataram como iguais- sem estender o tratamento a mais ninguém- foi a experiência basicamente simples de um mundo infantil em que se tomavam como pontos assentes o respeito mútuo e a confiança incondicional, uma humanidade universal e um desprezo quase ingénuo pelas convenções sociais e étnicas.O que os membros do grupo de iguais tinham em comum "era aquilo a que podemos chamar gosto moral, algo muito diferente dos "princípios morais"- conclui Hannah Arendt.
Um gosto moral comum que nos permite tratar por iguais- que programa!
Inventemos agora uma infância comum.
Um gosto moral comum que nos permite tratar por iguais- que programa!
Inventemos agora uma infância comum.
Rosa Luxemburgo
Jaspers, o seu mestre bom. João XXIII. Brecht. Isak Dinesen, a baronesa Karen Blixen. Walter Benjamim e outros. Homens e mulheres apanhados em anos difíceis. Os anos de entre as duas guerras. Hanna Arendt escreve curtas biografias iluminando fragmentos das suas vidas. A morte terrível, na fronteira espanhola, em fuga dos nazis, de Walter Benjamim, por exemplo. A morte de Rosa Luxemburgo nesse dia fatídico de Janeiro de 1919, assassinada em Berlim.
O texto sobre Rosa Luxemburgo é inspirado em uma biografia de J.P. Nettl (Rosa Louxembourg, Oxford University Press, 1962).
O texto sobre Rosa Luxemburgo é inspirado em uma biografia de J.P. Nettl (Rosa Louxembourg, Oxford University Press, 1962).
Hanna Arendt
O livro chama-se Homens em tempos sombrios. A edição portuguesa, da colecção Antropos da Relógio D' Água vende-se por 3 euros, há já alguns anos, nos saldos que as editoras organizam em novembro nas caves de algumas cidades. Como a edição é de 1991 os leitores devem ter sido, infelizmente, escassos. Na capa uma fotografia da autora, Hannah Arendt, numa reprodução de má qualidade. Não devia ter mais de 35 anos, nessa altura. Ainda o Mestre não a tinha seduzido. Gosto dos olhos dela. Da metade sombria da sua face. Do contraste entre os lábios, que talvez se vão abrir para um sorriso e a tristeza infinita dos olhos. As mulheres de quem gosto e que não conheço têm muitas vezes este rosto.
Sopa sem sal, não, por favor
Abençoada interrupção, fruto de mais um vil roubo.
"Há pessoas que não são doces. Também, os bolos têm tendência para ficar moles com o tempo. Não doce não é sinónimo de azedo. Qual o sabor que te define afinal? Há pessoas que são salgadas, eu por acaso só de nome. Na água destilada não há vida, sem sal não há vida. Uma pepita de sal confunde-se com doce nas papilas dos sentidos."
Enviado por PC
"Há pessoas que não são doces. Também, os bolos têm tendência para ficar moles com o tempo. Não doce não é sinónimo de azedo. Qual o sabor que te define afinal? Há pessoas que são salgadas, eu por acaso só de nome. Na água destilada não há vida, sem sal não há vida. Uma pepita de sal confunde-se com doce nas papilas dos sentidos."
Enviado por PC
29 agosto 2003
28 agosto 2003
De quoi s'agit il?
Esta primavera a Biblioteca Nacional de France dedicou uma exposição a Henri Cartier Bresson, comissariada por Robert Delpire. De qui s'agit il?, título da exposição, foi agora publicado na Gallimard. Trata-se dos personagens do século 20. Podemos ficar horas em frente daquelas fotografias e ser percorridos pelo século onde tanta vez se questionou a natureza do mal. Paro em frente da Libertação num campo de deportados. Vejo a mulher que reconhece a informadora da Gestapo que a tinha denunciado, o homem sentado à secretária tomando notas num caderno (é o David Bowie), as pessoas em volta na expectativa, ou soltando gritos. Um deles veste ainda o fato infamante do campo. Meu deus. Não consigo ter nenhum ódio à informadora, nem simpatia pela indignação da que agora a expõe á multidão.
Agradecimento
Descobri seres interessantíssimos. São como o Saltador do Muro ou aquele personagem de fronteira do Tarkovsky mas em versão a cores e muito divertida. Vivem nos interstícios dos blogs, na improbabilidade de um mail, no vento que parou de agitar as copas das árvores, na secura de uma notícia. De vez em quando entram para pequenas manobras de salvação. Eu fui bafejado por esses sopros e estou de novo pronto a recomeçar os castelos.
Um só critério de exclusão: serão excluídos os que não compreenderem que em Bagdad (um dos sítios mais quentes do mundo habitado, onde não há informação e as famílias e amigos se perderam) haja quem considere essencial o ar condicionado, o telemóvel e a parabólica.
A Sociedade dos Iguais
Hoje é um dia memorável! Hoje o Aba escreveu aquilo que esperávamos da blogosfera: um encontro de nós todos para nada. Então vamos. Já cá estamos. Sabemos reconhecer-nos. Proponho que reconstruamos A Sociedade dos Iguais. Existiu na Alemanha nos primeiros anos do século 20. Reunia pessoas com a característica comum de aceitarem a sua diferença e de apenas quererem ser iguais numa coisa: o direito a receber ajuda na desgraça (estou a resumir muito e a omitir alguns pormenores que não me parecem fundamentais e podem afastar alguns candidatos). Hannah Arendt num livro delicioso que se encontra a 1 euro nessas vendas ao desbarato fala da Sociedade (Homens em tempos difíceis, Relógio D'Agua). Se não a tivesse abandonado Rosa Luxemburgo não teria sido cobardemente assassinada. Nós inscrevemo-nos :A Natureza e o Mal. Esperamos adesões. Não haverá estatutos, órgãos de direcção, Mesa nem quotas. Corações ao alto.
Metades Incertas
Lembrámo-nos de roubar uns textos perdidos ao PC, sujeitá-lo aqui às nossas maldades.
"Fui a uma festa onde só conhecia a anfitriã e apresentaram-me a uma S.. Depois ouvi-a falar, relembrei as tuas palavras escritas e sorri. Antes assim, estou contente com a metade que conheço, e, com a outra (metade) posso sempre sonhar quando ando na rua.
Ao L. acho que o vi uma ou duas vezes, espiei-o em segredo admirando-lhe as garras e segui-lhe o voo de águia num céu cinzento de tempestade. Ele caíu a um tiro de caçador furtivo, dei um passo à frente e menti-lhe. Disse-lhe que íamos vencer a toda a caça. Então ele voltou a voar e nunca mais o vi. Dei por mim a procurá-lo, preso num quadrado de jornal, para me relembrar da cara e não a reconheci. Antes assim, estou contente com a metade que conheço, e, com a outra (metade) posso sempre sonhar quando ando na rua."
Enviado por PC
"Fui a uma festa onde só conhecia a anfitriã e apresentaram-me a uma S.. Depois ouvi-a falar, relembrei as tuas palavras escritas e sorri. Antes assim, estou contente com a metade que conheço, e, com a outra (metade) posso sempre sonhar quando ando na rua.
Ao L. acho que o vi uma ou duas vezes, espiei-o em segredo admirando-lhe as garras e segui-lhe o voo de águia num céu cinzento de tempestade. Ele caíu a um tiro de caçador furtivo, dei um passo à frente e menti-lhe. Disse-lhe que íamos vencer a toda a caça. Então ele voltou a voar e nunca mais o vi. Dei por mim a procurá-lo, preso num quadrado de jornal, para me relembrar da cara e não a reconheci. Antes assim, estou contente com a metade que conheço, e, com a outra (metade) posso sempre sonhar quando ando na rua."
Enviado por PC
Intima Fracção
O Francisco é um daqueles personagens como o Robert Walser ele-próprio. Há vinte anos que a caminhada dele se faz de madrugada, com uma música que por vezes é apenas um sussurro, as histórias que merecíamos que nos contassem ao adormecer. O Francisco desaparece atrás da sua música, como afavelmente fazia com os seus entrevistados. Agora ele decidiu falar-nos:
"A todos os ouvintes da Intima Fracção, quero dizer que preciso de vocês. (...)É verdade que nem "boa noite" digo. (...) A distância nunca existiu. É esta a causa do meu sofrimento."
A Intima Fracção é aos sábados/domingos às 01/03h. Boa noite Francisco.
"A todos os ouvintes da Intima Fracção, quero dizer que preciso de vocês. (...)É verdade que nem "boa noite" digo. (...) A distância nunca existiu. É esta a causa do meu sofrimento."
A Intima Fracção é aos sábados/domingos às 01/03h. Boa noite Francisco.
27 agosto 2003
Elogio de O meu pipi
Quando disto tudo
nada restar
quando deste post
nem memória
quando já nem te lembrares de mim
sobrará
enorme
disforme
o meu pipi
nada restar
quando deste post
nem memória
quando já nem te lembrares de mim
sobrará
enorme
disforme
o meu pipi
A frase do dia
"Tenho de tomar cuidado para que a detonação não ressoe alto demais no coração de um ser sensível."
Henri Roorda, O Meu Suicídio, & etc., 1993
Citado por Bicho Escala Estantes
Henri Roorda, O Meu Suicídio, & etc., 1993
Citado por Bicho Escala Estantes
O carro preto parou
O carro do meu pai parou irremediavelmente. Era o que restava dele em circulação visível. E parou. Quando julgava que tinha saldadas todas as contas com o monstro da memória percebo que tenho de me despedir de novo dele. E que, como sempre acontece, não estou preparado por dentro.
26 agosto 2003
Viva a Fundação Esplendorosa
A circularidade dos grandes media é asfixiante. No DNA Anabela Mota Ribeiro (que recentemente se notabilizou por humanizar o Presidente da Câmara de Lisboa numa entrevista formatada para os serviços da próxima candidatura distribuírem a um sector-alvo-ainda-não-conquistado) entrevista José Gameiro. O entrevistado é seguramente uma pessoa estimável, mas a entrevista é um enorme bocejo que vem confirmar o que já se suspeitava: a terapia familiar só dá asas ao terapeuta. A frase mais chocante que ela conseguiu extrair para destaque foi: "No futuro teremos dois casamentos". Admirável Mundo Novo!
No Público de ontem lá está EPC a citar a entrevista para, no estilo Dupont/Dupond, asseverar que teremos três ou mais casamentos. Esta circularidade, onde eles se citam todos uns aos outros, onde são os ecos uns dos outros, atinge a blogosfera. A blogosfera lusa é dominada por uma Fundação esplendorosa, com um saber intimidatório e prepotente, um estatuto de intocável, uma legião de admiradores sequiosos de citação. A Fundação tem monarca e petrarca, impunidade para ser A Crítica da democracia representativa europeia e sua puta em Bruxelas. A esquerda que temos dá-lhe palmadinhas nas costas(com a secreta esperança de conseguir um lugarzito de admistrador cultural da Fundação) e ele, que se farta de dar porrada, há anos que nem sequer é beliscado. A primeira divisão da blogosfera saudou entusiástica a chegada do Cristóvão de Moura. O homem entrou bem, com a escolha do nome do blog e a invocação provocatória do nosso Rei de Hespanha. Ninguém disse nada (é pacífico que devíamos ser província de Castela, ter um estatuto de autonomia como o da Galiza com as elites acastelhanadas como grandes eleitores e a arraia miúda organizada em comissões de bairro a treinar democracia directa). Depois enredou-se na necrofilia do Portas sem que se tivesse percebido bem a sua posição. Também ninguém quis saber. Agora convida o Presidente da Fundação para o alpendre da casa de campo que vai inaugurar. Não podemos deixar de aplaudir o convívio. Mas que saudades de uma boa polémica...
No Público de ontem lá está EPC a citar a entrevista para, no estilo Dupont/Dupond, asseverar que teremos três ou mais casamentos. Esta circularidade, onde eles se citam todos uns aos outros, onde são os ecos uns dos outros, atinge a blogosfera. A blogosfera lusa é dominada por uma Fundação esplendorosa, com um saber intimidatório e prepotente, um estatuto de intocável, uma legião de admiradores sequiosos de citação. A Fundação tem monarca e petrarca, impunidade para ser A Crítica da democracia representativa europeia e sua puta em Bruxelas. A esquerda que temos dá-lhe palmadinhas nas costas(com a secreta esperança de conseguir um lugarzito de admistrador cultural da Fundação) e ele, que se farta de dar porrada, há anos que nem sequer é beliscado. A primeira divisão da blogosfera saudou entusiástica a chegada do Cristóvão de Moura. O homem entrou bem, com a escolha do nome do blog e a invocação provocatória do nosso Rei de Hespanha. Ninguém disse nada (é pacífico que devíamos ser província de Castela, ter um estatuto de autonomia como o da Galiza com as elites acastelhanadas como grandes eleitores e a arraia miúda organizada em comissões de bairro a treinar democracia directa). Depois enredou-se na necrofilia do Portas sem que se tivesse percebido bem a sua posição. Também ninguém quis saber. Agora convida o Presidente da Fundação para o alpendre da casa de campo que vai inaugurar. Não podemos deixar de aplaudir o convívio. Mas que saudades de uma boa polémica...
25 agosto 2003
Um mês de mentira
Agosto é um mês de mentira. Mesmo os mortos de calor são mortos de fingir. Morreram porque eram velhos e pobres. O mapa do país ardido é o mapa de um país de pobres e de velhos. Os jovens, os que mandam e os que escrevem foram, como se diz, para centros de vigiliatura. Nos restaurantes serve-se comida congelada. Os jornais são entretidos com pronto-a-vestir cultural, sem data. De manhã as ruas estão desertas de crianças. Os sobreviventes da blogosfera hibernam ou anunciam partidas .
No fim do Verão outros hão-de vir e varrer sem piedade os espectros que somos.
No fim do Verão outros hão-de vir e varrer sem piedade os espectros que somos.
24 agosto 2003
Disparate
Hoje à tarde o Filipe escreveu um texto que estava mesmo a ser preciso. Não apenas pelo fim anunciado do Guerra e Pas, mas por um desalento que percorre a blogosfera e que os recém-chegados não sentiram ainda (bendita euforia da ASL). A euforia comunicacional da blogosfera não vai salvar o mundo. Estamos formatados para viver em pequenos grupos (25 a 50 humanos) uma vida de luta, vigilância,negociação, procura de comida. O ímpeto reprodutor e os cuidados parentais deram ( a alguns) uma mente prodigiosa. Não sabemos bem o que fazer com ela. Procuremos os 25 e cuidado com as ilusões transcendentais.
Orientalismo
Ainda no Público, mas na edição de hoje, um texto de Edward Said, a propósito dos 25 anos de Orientalismo(haverá edição em português?). Deixo o acesso e copio uma mensagem de esperança :"Os terríveis conflitos que agregam as pessoas em nome de falsos conceitos de unidade como "América", "Ocidente" ou "Islão"e inventam identidades colectivas para grande número de indivíduos que são na realidade muito diversos, não podem permanecer tão poderosos como são e devem ser destruídos. Ainda temos ao nosso dispor as capacidades racionais interpretativas que são o legado da educação humanística, não como uma piedade sentimentalista que nos leva de volta aos valores tradicionais ou aos clássicos, mas como uma prática activa do discurso racional secular mundial. "
http://jornal.publico.pt/publico/2003/08/24/Mundo/I05.html
http://jornal.publico.pt/publico/2003/08/24/Mundo/I05.html
Helena Matos
Uma das coisas que mais me desagrada no modo como ela escreve é a forma intimidatória como o faz. Os argumentos dos que combate são simplificados e os autores- não nomeados, desqualificados. Exemplos de hoje: este grupo- que nunca se interessou pelos direitos das vítimas; certos arautos; os autodenominados pacifistas; dizem-se solidários com os indios, berberes, aborígenes. Flores e baleias em vias de extinção. Sofrem com os cães abandonados e as batatas transgénicas...mas quando um autocarro cheio de israelitas explode, não se impressionam com o sangue". Chega. Já tenho a minha dose semanal. Vou voltar ao Enrique.
Helena Matos
No Público a Helena Matos. Várias coisas nela me perturbam. A confiança na sua crença, a demonizaçãoo dos que não pensam como ela, a simplificação dos argumentos dos outros.
O tema era o terrorismo, depois dos assassinatos de Bagdad.
Eu apreciei o silêncio dos que nada disseram quando se soube da morte de Sérgio Vieira de Mello e espanto-me sempre com a frieza profissional dos que são logo, com os corpos insepultos, capazes de retirar ilações políticas. Fora da mediatização muita gente fez, da maneira anónima que está ao seu alcance, aquilo que pôde para recuperar a dimensão de humanidade que sempre nos escapa nestas ocasiões. Procurar os que amamos, dizer-lhes quanto apreciamos as coisas simples que fazem, a forma como vivem. Um amigo enviou um mail a uma secretária da missão da ONU no Kosovo:...a única maneira que tenho é exprimir estes sentimentos a ti, ao C e ao J. que nessa missão da ONU trabalham para um mundo menos cruel."
Mas depois há que reflectir de novo sobre as causas do terrorismo. E é inquietante como, aberta ou veladamente, pessoas como HM fazem passar a mensagem, que nalgumas paragens é já uma insinuação policial, de que os que procuram discutir as causas do terrorismo, são aliados, ou terroristas encapotados.
Se não procurarmos compreender como é que explicamos aos nossos filhos? Que resta senão a demonização do adversário. Quando o adversário é louco e criminoso, a resposta dá-se no plano da repressão psiquiátrica e penitenciária. E o discurso de HM remete sempre para essa área.
O tema era o terrorismo, depois dos assassinatos de Bagdad.
Eu apreciei o silêncio dos que nada disseram quando se soube da morte de Sérgio Vieira de Mello e espanto-me sempre com a frieza profissional dos que são logo, com os corpos insepultos, capazes de retirar ilações políticas. Fora da mediatização muita gente fez, da maneira anónima que está ao seu alcance, aquilo que pôde para recuperar a dimensão de humanidade que sempre nos escapa nestas ocasiões. Procurar os que amamos, dizer-lhes quanto apreciamos as coisas simples que fazem, a forma como vivem. Um amigo enviou um mail a uma secretária da missão da ONU no Kosovo:...a única maneira que tenho é exprimir estes sentimentos a ti, ao C e ao J. que nessa missão da ONU trabalham para um mundo menos cruel."
Mas depois há que reflectir de novo sobre as causas do terrorismo. E é inquietante como, aberta ou veladamente, pessoas como HM fazem passar a mensagem, que nalgumas paragens é já uma insinuação policial, de que os que procuram discutir as causas do terrorismo, são aliados, ou terroristas encapotados.
Se não procurarmos compreender como é que explicamos aos nossos filhos? Que resta senão a demonização do adversário. Quando o adversário é louco e criminoso, a resposta dá-se no plano da repressão psiquiátrica e penitenciária. E o discurso de HM remete sempre para essa área.
Desobriguem-no
Ao mesmo DNA voltou o médico do Amadora-Sintra. "Embora sendo este um compromisso voluntário, não deixa de ser uma obrigatoriedade semanal que me soube muito bem não ter de cumprir nas últimas semanas." Porque é que não o desobrigam?
Claudia Clemente
O DNA entrevista Cláudia Clemente, a propósito da sua estreia literária. A introdução da entrevista é fascinante do ponto de vista da psicologia evolutiva. Cláudia parece ser um exemplar perfeito do seu género. A mente masculina do entrevistador, cujos antepassados nos últimos 4,2 milhões de anos se dedicaram a re-desenhar o corpo da mulher com a arma bruta da selecção sexual, fica perplexa, manifestamente incapaz de se dedicar à tarefa profissional para que se escalara. Em lugar de desistir, ou de pedir a uma colega da redacção para o render, ele insiste. Refugia-se então nas mãos da Cláudia, obcessivamente nas mãos de Cláudia. Para esquecer os olhos, os lábios, a boca, as mamas e as ancas de Cláudia. Atónito o fotógrafo recebe ordens para grandes planos de mãos mãos mãos enquanto ele diz coisas deste género: são as mãos que os agentes publicitários usam para os anúncios dos detergentes, as mãos que conseguem transformar a tampa da garrafa de água num amontoado de destroços,... Com a mating mind desligada foi todo o cérebro que se lhe apagou. Para a próxima mandem a Anabela Mota Ribeiro que a Claudia Clemente merece.
Imprensa do fim de semana
Li a imprensa do fim do semana e fiquei com aquele síndrome de embotamento do espírito que acontece quando, por exemplo, se fica entregue à televisão numa tarde de domingo. Quando já me considerava perdido li uma página do Vila Mata e recuperei.
23 agosto 2003
lavou-a
a chuva torrencial
da acidez
vertida pela noite
por isso
brilha incorrupto
o corpo
ela não teme
a natureza forte
do anjo
abarcar o mundo
(não se sabe porquê)
parece agora fácil
a chuva torrencial
da acidez
vertida pela noite
por isso
brilha incorrupto
o corpo
ela não teme
a natureza forte
do anjo
abarcar o mundo
(não se sabe porquê)
parece agora fácil
Tempestade
De noite a tempestade. Visto-me e sento-me na escuridão. Que sentimento é este contíguo ao medo mas anterior ao medo? Tenho os meus genes de recolector(a) à flor da pele, abertos ao espanto dos céus exibicionistas da savana.
Ruído de fundo
Acordo na cela a meio da noite para mijar
E ao voltar para a cama aos apalpões
Vejo a lua dos namorados, medalhão de arte!
Lembro-me da força e da dor
De ser jovem; não voltará jamais
Mas está algures intocável para outros.
Acendo a luz e escrevo
A minha irmã partiu para as ilhas do grupo ocidental.
Já nem ela acredita na missão insensata
De procurar a que escreveu palavras tão escassas
Num tempo tão breve
E se calou.
Estou à vontade- ela não me vai ler
E quando voltar
Terá acabado o tempo dos blogs.
Peço desculpa a todos que enganei
Com palavras palavras
Palavras que pareciam arder
E que eram afinal as ratazanas
Que incendiávamos no pátio
E procuravam a água das sentinas
Peço-te desculpa
h. A mulher que levavas no mustang
Não era tão espectacular assim.
E a ti pontinho de luz
Também tu em silêncio esta noite.
E a ti L. que tiveste o bom senso
De nunca ler
E enviar pontualmente para a reciclagem
As folhas mentirosas que preenchia.
(Com as tuas mãos misericordiosas
Querias repor a ordem
Na minha pobre cabeça perturbada).
E a ti, Incerteza, que fingiste acreditar
Que eu tremia.
Quando eu tremia por pura emoção literária
Ou tão só por falta de alcoól
E excesso de tabaco.
Peço desculpa a todos e a ti também
Que me mandaste as moradas
Da que o vento empurrava na direcção errada.
(Alguma culpa hei-de ter
Para estar para aqui –há tanto tempo
Sem culpa formada)
Fui este verão perseguido
Por uma frase que não percebia.
A frase que solta Tongoy
Ao aproximar-se do Pico:
- Não haverá no Paraíso outra morte?
E lembro-me agora de outras frases
Que acompanham a minha vida.
P.:- Então é aqui que se vive?
Quando entrava no pátio da taberna
Onde naquele outro verão
Nos espreguiçávamos
Como lizardos.
O . com voz trágica:- O ser humano
Não suporta demasiada realidade.
F, o bufão:- Comeu-se demais na terra.
O meu pai:- Estou lúcido.
( E nós sabíamos que era a Tabacaria
E tremíamos pelo palavrão
Que podia estar eminente).
- Vai ser tudo tão lindo, vai correr tudo tão bem!
O JMPS.
Agora, na Cadeia Penitenciária, esta noite
Há homens que são palavras, palavras que são homens.
A malta do teatro
Doida porque a Capital da Cultura
O encenador, as verbas prometidas,
A jornalista dos olhos tristes
Foram a banhos e ficou suspensa
Aquela experiência de liberdade.
Os Oscarianos:-Pobre Sibyl! Que romance
Vivera.
E ouço: Tantas vezes vivera a sua morte no palco.
E depois fora tocada pela verdadeira morte
Que levou consigo.
Os Rilkeanos: - Quem se eu gritasse
Me ouviria.
E digo baixinho: Mesmo que me apertasse
Contra o seu coração eu morreria
Da sua existência mais forte.
Outro:- Todo o anjo é terrível.
Continuo, mesmo sem querer:- Oh árvore da vida.
O cigano a quem chamam o oitavo fragmento:
- Esta é a taciturna ascensão dos falos.
Os vagantes: - Quem é que nos virou?
Há quem ria. Mas sei que eles continuam:
- Em tudo o que façamos, estamos sempre na atitude
De alguém que parte.
Alguns partiram.
O moldador, Hugh Olaff de Wet, por exemplo
Que prometera a máscara do director.
Os que no recreio, com vénia exagerada
E dedo no ar, repetiam:
- Este é o cheiro da cidade no Verão.
O grupo do húmus. O testa de ferro:
- Desde que não há Deus que tudo são palavras.
E o resto do bando:em coro:- Todos os heróis
São mártires e todos os santos
Foram iludidos até à morte.
E o líder:- Estive anos a rezar a uma cómoda
A falar a uma cómoda, a sofrer diante de uma cómoda.
Fui grotesco e tu não vias. Fui grotesco
E tu não existias.
Quando tudo se calava, quando a lua – losango do amor,
Desaparecera da janela de grades
Quando enfim parecia que se ia poder dormir
Começa um ruído que é de início um silvo
Na distância, um sopro, a máquina do mundo
Ligada por de baixo
Aproximando-se devagar, até
Ser uma frase murmurada
Que se vai articulando
Sílabas só adivinhadas
Uma frase da esperança pobre das prisões:
Eis-nos de novo a sós, ó poesia.
(créditos: A mija começou por ser de Larkin, as ratazanas foram incendiadas por David Gonzalez- antologiado por J.M. Magalhães, Eliot –tão actual, Luíza Neto Jorge e Àlvaro de Campos- citações antigas, Rilke dos Cadernos de Malte e das Elegias de Duíno, Oscar Wilde, Sei-lá, Raul Brandão, René Char- o tête a tête final)
E ao voltar para a cama aos apalpões
Vejo a lua dos namorados, medalhão de arte!
Lembro-me da força e da dor
De ser jovem; não voltará jamais
Mas está algures intocável para outros.
Acendo a luz e escrevo
A minha irmã partiu para as ilhas do grupo ocidental.
Já nem ela acredita na missão insensata
De procurar a que escreveu palavras tão escassas
Num tempo tão breve
E se calou.
Estou à vontade- ela não me vai ler
E quando voltar
Terá acabado o tempo dos blogs.
Peço desculpa a todos que enganei
Com palavras palavras
Palavras que pareciam arder
E que eram afinal as ratazanas
Que incendiávamos no pátio
E procuravam a água das sentinas
Peço-te desculpa
h. A mulher que levavas no mustang
Não era tão espectacular assim.
E a ti pontinho de luz
Também tu em silêncio esta noite.
E a ti L. que tiveste o bom senso
De nunca ler
E enviar pontualmente para a reciclagem
As folhas mentirosas que preenchia.
(Com as tuas mãos misericordiosas
Querias repor a ordem
Na minha pobre cabeça perturbada).
E a ti, Incerteza, que fingiste acreditar
Que eu tremia.
Quando eu tremia por pura emoção literária
Ou tão só por falta de alcoól
E excesso de tabaco.
Peço desculpa a todos e a ti também
Que me mandaste as moradas
Da que o vento empurrava na direcção errada.
(Alguma culpa hei-de ter
Para estar para aqui –há tanto tempo
Sem culpa formada)
Fui este verão perseguido
Por uma frase que não percebia.
A frase que solta Tongoy
Ao aproximar-se do Pico:
- Não haverá no Paraíso outra morte?
E lembro-me agora de outras frases
Que acompanham a minha vida.
P.:- Então é aqui que se vive?
Quando entrava no pátio da taberna
Onde naquele outro verão
Nos espreguiçávamos
Como lizardos.
O . com voz trágica:- O ser humano
Não suporta demasiada realidade.
F, o bufão:- Comeu-se demais na terra.
O meu pai:- Estou lúcido.
( E nós sabíamos que era a Tabacaria
E tremíamos pelo palavrão
Que podia estar eminente).
- Vai ser tudo tão lindo, vai correr tudo tão bem!
O JMPS.
Agora, na Cadeia Penitenciária, esta noite
Há homens que são palavras, palavras que são homens.
A malta do teatro
Doida porque a Capital da Cultura
O encenador, as verbas prometidas,
A jornalista dos olhos tristes
Foram a banhos e ficou suspensa
Aquela experiência de liberdade.
Os Oscarianos:-Pobre Sibyl! Que romance
Vivera.
E ouço: Tantas vezes vivera a sua morte no palco.
E depois fora tocada pela verdadeira morte
Que levou consigo.
Os Rilkeanos: - Quem se eu gritasse
Me ouviria.
E digo baixinho: Mesmo que me apertasse
Contra o seu coração eu morreria
Da sua existência mais forte.
Outro:- Todo o anjo é terrível.
Continuo, mesmo sem querer:- Oh árvore da vida.
O cigano a quem chamam o oitavo fragmento:
- Esta é a taciturna ascensão dos falos.
Os vagantes: - Quem é que nos virou?
Há quem ria. Mas sei que eles continuam:
- Em tudo o que façamos, estamos sempre na atitude
De alguém que parte.
Alguns partiram.
O moldador, Hugh Olaff de Wet, por exemplo
Que prometera a máscara do director.
Os que no recreio, com vénia exagerada
E dedo no ar, repetiam:
- Este é o cheiro da cidade no Verão.
O grupo do húmus. O testa de ferro:
- Desde que não há Deus que tudo são palavras.
E o resto do bando:em coro:- Todos os heróis
São mártires e todos os santos
Foram iludidos até à morte.
E o líder:- Estive anos a rezar a uma cómoda
A falar a uma cómoda, a sofrer diante de uma cómoda.
Fui grotesco e tu não vias. Fui grotesco
E tu não existias.
Quando tudo se calava, quando a lua – losango do amor,
Desaparecera da janela de grades
Quando enfim parecia que se ia poder dormir
Começa um ruído que é de início um silvo
Na distância, um sopro, a máquina do mundo
Ligada por de baixo
Aproximando-se devagar, até
Ser uma frase murmurada
Que se vai articulando
Sílabas só adivinhadas
Uma frase da esperança pobre das prisões:
Eis-nos de novo a sós, ó poesia.
(créditos: A mija começou por ser de Larkin, as ratazanas foram incendiadas por David Gonzalez- antologiado por J.M. Magalhães, Eliot –tão actual, Luíza Neto Jorge e Àlvaro de Campos- citações antigas, Rilke dos Cadernos de Malte e das Elegias de Duíno, Oscar Wilde, Sei-lá, Raul Brandão, René Char- o tête a tête final)
22 agosto 2003
No Público
O general Ricardo Durão responde a um inquérito insano. Herói ou traidor?- quem faz tais perguntas colhe tempestades. Pergunta o general: "haverá na nossa praça algum herói que se pronuncie pelo anátema de traidor?" E fuzila:"Tal expressão revela a cultura vigente, eivada de notória ausência de valores, medíocre, repugnante e mesmo apátrida."
Oh meu general, meu herói, meu patriota. Sem valores, medíocre, repugnante e mesmo apátrida só mesmo eu. E sossegue. Não estou na praça, estou preso. Libertasse-me e seria seu bucelário.
Oh meu general, meu herói, meu patriota. Sem valores, medíocre, repugnante e mesmo apátrida só mesmo eu. E sossegue. Não estou na praça, estou preso. Libertasse-me e seria seu bucelário.
21 agosto 2003
Por detrás de tudo a Grande Razão de tudo
Há por detrás de todas as razões uma Grande Razão. Por detrás do Protocolo de Quioto e da sua recusa. Há por detrás do Código de Hamurabi outro Código. A verdadeira razão do massacre dos Arménios. De todos os massacres. Do Processo Civil. Da educação de Emile. Do teu canto, do meu poema, da pintura do teu rosto- antiquíssima. Do Talmude e dos vários nomes de deus. Da procura inútil da autora de Vago Pressentimento Azul por Cima e do modo como ela se esconde ou anuncia.
Declaração e alegria de não estar só
I. Declaração
1. Sergio Viera de Mello foi um amigo que perdi. Não foi apenas a comoção noticiosa, o escândalo cívico.
2. O terrorismo é abominável: abominável o rosto oculto, abominável a mão que manda, abominável o comité que traça a estratégia, abominável a moeda com que o financiam.
3. O terrorista suicida de Jerusalém é detestável. A linguagem e a prática de retaliação do actual governo de Israel é a garantia de que novos suicidas serão recrutados.
4. O Iraque antes da invasão era um país como outros: uma plutocracia governada com bárbara repressão e apoio popular. Mas com uma diferença: tinha muito petróleo.
5. O Iraque depois da guerra é um pesadelo ficcional. A nova plutocracia ainda não se estruturou, não existe aparelho repressivo senão o dos ocupantes, é possível fazer explodir a sede da ONU.
II. Alegria de não estar só
Quando já quase desesperava, alguém já tinha serenamente escrito algumas coisas que era importante dizer para não sermos colonizados- gentilmente ou à bruta. Os presos como eu exultam com a chegada desta genteboa.
1. Sergio Viera de Mello foi um amigo que perdi. Não foi apenas a comoção noticiosa, o escândalo cívico.
2. O terrorismo é abominável: abominável o rosto oculto, abominável a mão que manda, abominável o comité que traça a estratégia, abominável a moeda com que o financiam.
3. O terrorista suicida de Jerusalém é detestável. A linguagem e a prática de retaliação do actual governo de Israel é a garantia de que novos suicidas serão recrutados.
4. O Iraque antes da invasão era um país como outros: uma plutocracia governada com bárbara repressão e apoio popular. Mas com uma diferença: tinha muito petróleo.
5. O Iraque depois da guerra é um pesadelo ficcional. A nova plutocracia ainda não se estruturou, não existe aparelho repressivo senão o dos ocupantes, é possível fazer explodir a sede da ONU.
II. Alegria de não estar só
Quando já quase desesperava, alguém já tinha serenamente escrito algumas coisas que era importante dizer para não sermos colonizados- gentilmente ou à bruta. Os presos como eu exultam com a chegada desta genteboa.
20 agosto 2003
Oração da Noite
Modelo
ou imitação nossa
que ainda significas algo para nós
ajuda-nos
para que não recitemos ou ecoemos
as doutrinas
dos cérebros electrónicos
e dos seus senhores e servos
Onde a injustiça for maior do que nós
onde a injustiça for mais rápida do que nós
onde a injustiça for maior do que nós
ajuda-nos a não ficar cansados
Onde a injustiça nos ultrapassar
em conhecimentos e recursos
onde a injustiça nos ultrapassar
em duração e sucessos
onde a injustiça se tornar tão grande
que nós nos tornamos pequenos
ao vê-la
ajuda-nos a não desanimar
Quando a injustiça se introduzir em nós
nos nossos dias e noites
nos nossos sobressalto e nos nossos sonhos
nas nossas esperanças e nas nossas pragas
ajuda-nos a não nos esquecer de nós
Quando a injustiça falar
com as vozes da justiça e do poder
Quando a injustiça falar com as vozes
da benevolência e da razão
Quando a injustiça falar com as vozes
da moderação e da experiência
ajuda-nos a não nos tornar amargos
E se no fim desanimarmos
ajuda-nos a reconhecer que desanimamos
e se nos tornarmos amargos
ajuda-nos a reconhecermos que nos tornamos amargos
e se nos torcermos de medo
ajuda-nos a saber que é o medo
o desânimo a amargura e o medo.
(...)
(Erich Fried, tradução de Yvette K Centeno, 1979, parcial)
ou imitação nossa
que ainda significas algo para nós
ajuda-nos
para que não recitemos ou ecoemos
as doutrinas
dos cérebros electrónicos
e dos seus senhores e servos
Onde a injustiça for maior do que nós
onde a injustiça for mais rápida do que nós
onde a injustiça for maior do que nós
ajuda-nos a não ficar cansados
Onde a injustiça nos ultrapassar
em conhecimentos e recursos
onde a injustiça nos ultrapassar
em duração e sucessos
onde a injustiça se tornar tão grande
que nós nos tornamos pequenos
ao vê-la
ajuda-nos a não desanimar
Quando a injustiça se introduzir em nós
nos nossos dias e noites
nos nossos sobressalto e nos nossos sonhos
nas nossas esperanças e nas nossas pragas
ajuda-nos a não nos esquecer de nós
Quando a injustiça falar
com as vozes da justiça e do poder
Quando a injustiça falar com as vozes
da benevolência e da razão
Quando a injustiça falar com as vozes
da moderação e da experiência
ajuda-nos a não nos tornar amargos
E se no fim desanimarmos
ajuda-nos a reconhecer que desanimamos
e se nos tornarmos amargos
ajuda-nos a reconhecermos que nos tornamos amargos
e se nos torcermos de medo
ajuda-nos a saber que é o medo
o desânimo a amargura e o medo.
(...)
(Erich Fried, tradução de Yvette K Centeno, 1979, parcial)
Razão para amar o inimigo
Há blogs cheios de ódio. Às vezes preciso de os ler. Segunda citação de Erich Fried:
Razão para amar o inimigo
Quando a obstinação
dos amigos
me deixa cansado
é a infâmia
dos inimigos
que por vezes ainda
me dá força nova
Razão para amar o inimigo
Quando a obstinação
dos amigos
me deixa cansado
é a infâmia
dos inimigos
que por vezes ainda
me dá força nova
(Falta de ) Inteligência Emocional
Pacientemente, André Bonirre procurou-a, de acordo com uma intuição minha, nas ilhas do Grupo Central. Agora peço à minha irmã que faça o mesmo nas Flores.
- E o que disse o José Mário? Sorrio, porque passa, por um instante, uma mulher-papagaio segura por um fio de palavras.
- O que te escreveu, a ti ou à Sofia? insiste ela.
Lembro-me então das palavras certas dele: "...e se ela não quer ser encontrada?" Assim se fala aos doentes ( e aos presos).
Cheios como balões, os corações demoram sempre mais tempo a perceber.
- E o que disse o José Mário? Sorrio, porque passa, por um instante, uma mulher-papagaio segura por um fio de palavras.
- O que te escreveu, a ti ou à Sofia? insiste ela.
Lembro-me então das palavras certas dele: "...e se ela não quer ser encontrada?" Assim se fala aos doentes ( e aos presos).
Cheios como balões, os corações demoram sempre mais tempo a perceber.
Dano colateral (a Sérgio V de Mello)
Tinhas chegado
como costumava acontecer contigo
do lado da paz
e dos interesses não comerciais
eras a única cara em que confiava
em bagdad
quando vi o teu sangue
vi também os farrapos das minhas bandeiras
dos meus gritos de paz
gritei a única coisa estúpida
que me vinha à cabeça
Quero casar
Vieram os feddaiin
e torturaram-me sem piedade
logrei escapar
e fui abatido na primeira rua
por um marine com cara assustada
Eu merecia
"estava mesmo a pedi-las"
mistura de sucata ideológica
e lirismo digital
como costumava acontecer contigo
do lado da paz
e dos interesses não comerciais
eras a única cara em que confiava
em bagdad
quando vi o teu sangue
vi também os farrapos das minhas bandeiras
dos meus gritos de paz
gritei a única coisa estúpida
que me vinha à cabeça
Quero casar
Vieram os feddaiin
e torturaram-me sem piedade
logrei escapar
e fui abatido na primeira rua
por um marine com cara assustada
Eu merecia
"estava mesmo a pedi-las"
mistura de sucata ideológica
e lirismo digital
Silêncio
Apercebo-me de que à hora em que exultava com este verão já
Havia sangue a mais no mundo. E palavras. E explicações (já todos" tinhamos previsto", mas nada fará diminuir "a nossa inquebrantável disposição" para isto e para aquilo). Restava o silêncio. Talvez dormir. Fico contente que tenha sido também a tua opção.
Havia sangue a mais no mundo. E palavras. E explicações (já todos" tinhamos previsto", mas nada fará diminuir "a nossa inquebrantável disposição" para isto e para aquilo). Restava o silêncio. Talvez dormir. Fico contente que tenha sido também a tua opção.
19 agosto 2003
Era O verão dos blogs no ar
Pode não ser ainda este o verão em que ela encomenda para si tanta alegria. Mas é o verão do BdE e do Aviz, da insensatez e do mustang, da incerteza, do PC e do tempo dual, do cam e da sarahA, do late night post. É o verão dos blogs no ar.
O gene egoísta
Entre o vitelo e o abutre
o vitelo
Entre o abutre e o iguana
o abutre
Entre o iguana e a barata
o iguana
Entre a barata e a klebsiella
a barata
Entre ele e os outros
o mais saudável
Entre ela e as outras
todas
o vitelo
Entre o abutre e o iguana
o abutre
Entre o iguana e a barata
o iguana
Entre a barata e a klebsiella
a barata
Entre ele e os outros
o mais saudável
Entre ela e as outras
todas
Objecto literário
Quando tentamos
produzir um objecto literário
devemos persegui-lo na realidade
na nossa mente
ou na literatura?
produzir um objecto literário
devemos persegui-lo na realidade
na nossa mente
ou na literatura?
La vraie vie ou uma forma parcial de fuga dissociativa
Ontem tive visita. A minha irmã. Estava bonita, escondendo mal a impaciência por eu ainda não ter saído do isolamento. Como se esta situação dependesse de mim. Lembrei-me da psicóloga quando disse “alguns auto-excluem-se”. Não gosto que me vejam como vítima ou culpado. Apenas como a pessoa que sou.
Mas que pessoa sou? Acho que perseguimos esta questão. Estava escrita num quadro do Gauguin que havia numa casa da minha infância. E a pergunta parecia-me então vir de outro continente, de tal forma me sentia naturalmente inteiro nesses dias. Hoje, sou tanto esse miúdo- espantado frente à reprodução do quadro- como qualquer personagem dos filmes, dos livros, das recordações de então.
A minha irmã vinha com André Bonirre que, desde que partilhou comigo a busca de Ana Paula Inácio, se tornou mais próximo. Esforçam-se para, de uma forma ligeira, falarem da vida de todos os dias. Admiro o modo como o fazem e decoro as palavras deles sem as compreender. Mais tarde, quando tiver todo o tempo do mundo, no silêncio da cela, pensarei sobre elas. Agora não consigo sequer compreender o sentido do que me dizem, de tal forma os olhos me fogem para o que se passa no parlatório.
Vejo as famílias dos outros presos, fascinado. Fico a saber algo mais sobre cada um deles. Mas hoje na visita, não havia preso que invejasse só por não ser eu.
Talvez seja a altura de falar sobre a fuga dissociativa. A fuga é aqui, como calculam, o tema principal dos nossos sonhos. Mas não é a essa que me refiro. Um belo dia, um homem ou uma mulher, encontram-se perdidos de si próprios, sem saber ler os documentos de identidade, sem passado. Como se o presente fosse uma terra estrangeira da qual desconhecem os costumes, a língua, a literatura, a bandeira, o hino.
Essa é a fuga que provavelmente é descrita nos livros de psiquiatria. Nunca a senti nem ao seu sopro.
Falo da fuga como a imagem alucinatória de um presente outro. Não de uma utopia que vagamente perdemos. Mas de imagens vivíssimas do que poderia ter sido a nossa vida.
Como náusea: a visão do Ford Fiesta com o casal à frente e os meninos -são a carinha da mãe- atrás. Ela tem a cara feliz e um pouco tonta das mulheres simples, que ambicionaram viver uma vida simples, e ainda não perceberam que o homem que lhes calhou, o seu homem, vai enlouquecer, e asfixiar com os seus abraços, e ficar de noite acordado com os olhos abertos, aterrado com uma transformação que não compreende. Olho essa gente real à minha volta e agradeço à minha irmã ser quem sou, claramente diferente, pois são eles, ela e o André Bonirre, as minhas visitas. E serem diferentes, elegantes, de um outro mundo, que me fazem chegar com palavras simples, e que facilmente se compreende não ser o mundo da necessidade, desta gente que eu poderia ter sido.
Como abismo: sou o par da mulher tão comovidamente apaixonada que um dia cruzou comigo os olhos numa rua da cidade e o meu amor não está à altura. Porque eu já vi no rosto liso dela, “la petite tâche”.
Como a assombração que visita a mulher que foi J. Moore em As Horas. Desviada da sua existência pacata pela leitura de Mrs. Dalloway. Ou os demónios que visitaram a minha tia Lena, provavelmente quando a via ler Elise ou la vraie vie. (Herdei esse livro, de capas amarelas, duma autora que julgo ser Claire Etcherelli, e desgraçadamente perdi-o). A tia Lena era pequenina, linda e tudo nela me parecia perfeito. Fora bailarina, e mostrara-me uma vez, quase em segredo, um álbum com as suas actuações, invariavelmente coroadas de êxito. Tinha um marido a quem, quando não estava, chamavam o nome de um actor que devia ter estado na moda quando eles se casaram. Percebia-se que a família tinha orgulho nela por ser bonita e ter uma vida, como diziam, tão equilibrada.
Então porque é que me assustava o modo como ela lia Èlise ou la vraie vie? E quando percebi o que era la vraie vie os meus temores se adensaram e vieram a ser tristemente confirmados pelos acontecimentos posteriores?
Mas que pessoa sou? Acho que perseguimos esta questão. Estava escrita num quadro do Gauguin que havia numa casa da minha infância. E a pergunta parecia-me então vir de outro continente, de tal forma me sentia naturalmente inteiro nesses dias. Hoje, sou tanto esse miúdo- espantado frente à reprodução do quadro- como qualquer personagem dos filmes, dos livros, das recordações de então.
A minha irmã vinha com André Bonirre que, desde que partilhou comigo a busca de Ana Paula Inácio, se tornou mais próximo. Esforçam-se para, de uma forma ligeira, falarem da vida de todos os dias. Admiro o modo como o fazem e decoro as palavras deles sem as compreender. Mais tarde, quando tiver todo o tempo do mundo, no silêncio da cela, pensarei sobre elas. Agora não consigo sequer compreender o sentido do que me dizem, de tal forma os olhos me fogem para o que se passa no parlatório.
Vejo as famílias dos outros presos, fascinado. Fico a saber algo mais sobre cada um deles. Mas hoje na visita, não havia preso que invejasse só por não ser eu.
Talvez seja a altura de falar sobre a fuga dissociativa. A fuga é aqui, como calculam, o tema principal dos nossos sonhos. Mas não é a essa que me refiro. Um belo dia, um homem ou uma mulher, encontram-se perdidos de si próprios, sem saber ler os documentos de identidade, sem passado. Como se o presente fosse uma terra estrangeira da qual desconhecem os costumes, a língua, a literatura, a bandeira, o hino.
Essa é a fuga que provavelmente é descrita nos livros de psiquiatria. Nunca a senti nem ao seu sopro.
Falo da fuga como a imagem alucinatória de um presente outro. Não de uma utopia que vagamente perdemos. Mas de imagens vivíssimas do que poderia ter sido a nossa vida.
Como náusea: a visão do Ford Fiesta com o casal à frente e os meninos -são a carinha da mãe- atrás. Ela tem a cara feliz e um pouco tonta das mulheres simples, que ambicionaram viver uma vida simples, e ainda não perceberam que o homem que lhes calhou, o seu homem, vai enlouquecer, e asfixiar com os seus abraços, e ficar de noite acordado com os olhos abertos, aterrado com uma transformação que não compreende. Olho essa gente real à minha volta e agradeço à minha irmã ser quem sou, claramente diferente, pois são eles, ela e o André Bonirre, as minhas visitas. E serem diferentes, elegantes, de um outro mundo, que me fazem chegar com palavras simples, e que facilmente se compreende não ser o mundo da necessidade, desta gente que eu poderia ter sido.
Como abismo: sou o par da mulher tão comovidamente apaixonada que um dia cruzou comigo os olhos numa rua da cidade e o meu amor não está à altura. Porque eu já vi no rosto liso dela, “la petite tâche”.
Como a assombração que visita a mulher que foi J. Moore em As Horas. Desviada da sua existência pacata pela leitura de Mrs. Dalloway. Ou os demónios que visitaram a minha tia Lena, provavelmente quando a via ler Elise ou la vraie vie. (Herdei esse livro, de capas amarelas, duma autora que julgo ser Claire Etcherelli, e desgraçadamente perdi-o). A tia Lena era pequenina, linda e tudo nela me parecia perfeito. Fora bailarina, e mostrara-me uma vez, quase em segredo, um álbum com as suas actuações, invariavelmente coroadas de êxito. Tinha um marido a quem, quando não estava, chamavam o nome de um actor que devia ter estado na moda quando eles se casaram. Percebia-se que a família tinha orgulho nela por ser bonita e ter uma vida, como diziam, tão equilibrada.
Então porque é que me assustava o modo como ela lia Èlise ou la vraie vie? E quando percebi o que era la vraie vie os meus temores se adensaram e vieram a ser tristemente confirmados pelos acontecimentos posteriores?
17 agosto 2003
Outro livro
Para o blog que publicou reproduções do Man Ray, um livro muito interessante, reproduzindo a Paris de entre guerras e o cruzamento de uma geração que ficou célebre.
El Montparnasse de Man Ray, de Herbert R. Lottman, ed Tusquets, Barcelona, 2003
El Montparnasse de Man Ray, de Herbert R. Lottman, ed Tusquets, Barcelona, 2003
Casem-se Todos, mas cuidado
Alguns blogs, com pressuroso esforço taxonómico, alinhavam os links de referência em: De Esquerda/ De Direita. Não sei bem onde é que, nessa formatação, entrava o Preciso Casar. Desde que, no código da Jihad Islâmica asiática, a frase designa um candidato ao verdadeiro suicídio que o nosso Preciso Casar passou a ser especialmente classificado. E a ter entradas especiais. Primeiro eram só o ofício federal, o pátio escocês e a massada sionista. Agora entupiram o site meter.
The end of the affair
Perguntam aos famosos o que lêem, qual o último livro que ofereceu ou que deixou a meio e eles respondem com alguma ligeireza, sem perceber que lhes estão a devassar a vida íntima. Ontem foi a vez da Clara Ferreira Alves, que já me deu tantas horas tão felizes, dizer, que estava a ler muitos livros ao mesmo tempo. “Uma orgia”- disse ela. Uma falta de respeito, penso eu. Imaginem que perguntam a um amigo onde esteve nas férias e ele vos responde Praga, Budapeste, Viena gostei imenso. Ou Kioto, Singapura, Pequim fascinante. Ou Buenos Aires, Valparaíso, Quito deslumbrante. Um livro é uma pessoa que está a falar connosco. Devemos ouvi-la nos olhos, com atenção. Ou pedir-lhe desculpa porque os nossos olhos se desviam irresistivelmente para a mesa do lado. Ela saberá compreender e calar-se, ou deixar-nos sozinhos como merecemos. Detesto a voracidade dos que não têm tempo. Lembro-me de um texto muito lindo sobre The end of the affair, do Graham Greene. Quantas pessoas o foram ler depois disso. E como ela o lia, o local que escolhia, o silêncio que havia em volta deles.
Que livro tem à cabeceira?
Na estação morta ou nos espaços mortos das folhas literárias perguntam aos famosos o que é que lêm. Recordo-me de um famoso colunista, comentador desportivo, fumador de charutos e cirurgião que, autor de vários best-seller, foi um dia a um programa de televisão e lhe perguntaram o que é que andava a ler. Foi um momento de grande embaraço. O entrevistador, face ao silêncio logorreico que caracteriza a irritante personagem de quem falamos, ia-lhe dando deixas. Que livro tem à cabeceira? E ele, triunfante: Vários, uma pilha de livros, sempre. O outro insistiu, pediu um nome. Não me lembro de nenhum. Sabe, tenho pouco tempo livre, como calcula, cada operação demora dez horas, doze horas. É a minha mulher quem me compra os livros.
As mulheres- que não operam, compram-lhes os livros e a roupa. Camisas, gravatas, lingerie, o último saramago, um blazer, um livro daquele rapaz que é filho do Horta Ribeiro, tem imenso talento.
As mulheres- que não operam, compram-lhes os livros e a roupa. Camisas, gravatas, lingerie, o último saramago, um blazer, um livro daquele rapaz que é filho do Horta Ribeiro, tem imenso talento.
O lado certo
Sonhei que habitava uma cidade dividida por duas potências rivais que se vigiavam na fronteira quase impossível de atravessar . Por artes e sortes consegui passar a fronteira e vi-me do outro lado, façanha inacreditável. Mas não tinha missão, nem contactos, nem a certeza de ser aquele o lado certo.
Hoje dou livros:
Para o Littleblackspot que há tempos escreveu sobre o poeta alemão.
Poemas e Canções de Brecht, selecção e versão portuguesa de Paulo Quintela, Livraria Almedina, Outubro de 1975.
E um excerto do poema An die Nachgeborenen ( Aos que virão a nascer), uma espécie do testamento do B.B, anos 50.
(...)
Vós, que haveis de surgir da cheia
Em que nós nos afundámos
Lembrai-vos
Quando falardes dos nossos fracos
Também do tempo escuro
A que escapastes.
Pois nós marchámos mudando de terra mais vezes que de sapatos
Através das guerras de classes, desesperados
Quando lá só havia injustiça e não revolta.
E contudo nós sabíamos:
Também o ódio contra a vilania
Desfigura as feições.
Também a cólera contra a injustiça
Enrouquece a voz. Ai, nós
Que queríamos amanhar o terreno para a amabilidade
Não podíamos nós mesmos ser amáveis.
Mas vós, quando chegar a hora
Em que o homem possa ajudar o homem
Pensai em nós
Com indulgência.
E para R. não ficar entusiasmada outro poema, de outro alemão, Erich Fried, tradução de Quintão Portela, edição da Dom Quixote de 1979. Infelizmente não posso dar o livro
Em tempo de guerra não se limpam armas
Infelizmente
Hoje não temos tempo
Para subtilezas
Disse alguém
Que eu já há anos conhecia
Como um grosseirão.
Para o Littleblackspot que há tempos escreveu sobre o poeta alemão.
Poemas e Canções de Brecht, selecção e versão portuguesa de Paulo Quintela, Livraria Almedina, Outubro de 1975.
E um excerto do poema An die Nachgeborenen ( Aos que virão a nascer), uma espécie do testamento do B.B, anos 50.
(...)
Vós, que haveis de surgir da cheia
Em que nós nos afundámos
Lembrai-vos
Quando falardes dos nossos fracos
Também do tempo escuro
A que escapastes.
Pois nós marchámos mudando de terra mais vezes que de sapatos
Através das guerras de classes, desesperados
Quando lá só havia injustiça e não revolta.
E contudo nós sabíamos:
Também o ódio contra a vilania
Desfigura as feições.
Também a cólera contra a injustiça
Enrouquece a voz. Ai, nós
Que queríamos amanhar o terreno para a amabilidade
Não podíamos nós mesmos ser amáveis.
Mas vós, quando chegar a hora
Em que o homem possa ajudar o homem
Pensai em nós
Com indulgência.
E para R. não ficar entusiasmada outro poema, de outro alemão, Erich Fried, tradução de Quintão Portela, edição da Dom Quixote de 1979. Infelizmente não posso dar o livro
Em tempo de guerra não se limpam armas
Infelizmente
Hoje não temos tempo
Para subtilezas
Disse alguém
Que eu já há anos conhecia
Como um grosseirão.
16 agosto 2003
Ética Animal
Há nas Astúrias um velho caminho de montanha a que chamam a Senda do Arcediago. Une Soto de Sajambre, ainda em Leão, com outra pequena aldeia a dezasseis quilómetros, onde nunca cheguei. No tempo em que podia percorrer esses trilhos aconteceu-me, nessa senda, um encontro que vou tentar recordar.
Era uma manhã de sol, talvez excessivo para uma caminhada que se avizinhava tão longa. A aldeia de Soto, está abrigada aos pés da Pena Santa de Castela, um monte verdejante atrás do qual espreitam as escarpas nuas do Canto Cabronero. Nessa manhã a aldeia acordava de uma orgia de sidra, mascarada e gaitas de foles. Alguns músicos curtiam a ressaca tirando horríveis acordes das gaitas de fole e os primeiros miúdos saíam ás ruas mostrando, ainda timidamente, os seus disfarces. Ninguém nos deu os bons dias, mas devia-se notar na minha cara a pouca simpatia, não pelos celtas, mas por aquilo que é a vulgata dos seus símbolos. Um velho, no cimo do povoado, ensinou-nos o início da rota. Ao longo de três esforçadas horas subimos de 1000 a 1800 metros, até entrarmos num belo caminho de agudos lapiás. Passámos uma fonte que enchia um bebedouro. Para trás ficava uma veiga onde pastavam vacas sem guarda e os últimos bosques de carvalhos e faias. Tínhamos que ladear um enorme morro, o Pico Valdepino, numa encosta onde as águas de Inverno tinham, para enganar os caminhantes, desenhado múltiplos trilhos. Nessa altura, os que gostam de percursos bem definidos começaram a dar sinais de inquietação. Não se via vivalma e subitamente o céu escureceu e a temperatura baixou. Tudo se modificou. Éramos poucos, não falávamos, mas algumas interjeições mostravam que uma nuvem negra se instalara também já nas nossas cabeças. Eu ia à frente, não porque os meus companheiros confiassem em mim, mas porque tinha as cartas e por natural tendência. (Deplorável tendência que me pôs à frente das caminhadas e agora nesta cela solitária.) Numa curva do caminho, uma pequena portela, ouvi o rocegar de mato e surgiu-me à frente um pequeno vitelo. Ficou tão espantado por me ver como eu. Minto. O espanto do animal era muito maior. Nunca vi atenção de um herbívoro tão concentrada num objecto à sua frente, as pernas delgadas, vacilantes, o nariz fremente. Como não cabíamos os dois no trilho inclinado, subi um pouco para ele me poder cruzar. Os meus companheiros, imaginando que se tratava de um javali, reuniram-se uns trinta metros atrás, no alto da portela, junto a um penedo. Acabei por me reunir a eles porque o vitelo não se mexia daquele sítio de espanto e o mesmo sucedia com o meu grupo. Ficámos algum tempo a espreitar a chegada de outras vacas, a imaginar o trilho e a discutir o futuro da caminhada. A nuvem negra sobre o Cabronero tapava-lhe os cumes. Alguns lembraram-se da queda rápida de nevoeiros na zona e da água que começara a escassear- ninguém quisera beber ou abastecer-se no bebedouro.
Voltámos pelo mesmo caminho . O vitelo seguiu-nos. Como nos tivéssemos dividido ele caminhava entre nós. Era um recém-nascido, com o cordão umbilical mumificado, tombando do ventre, ao pendurão. Tudo lhe parecia meter confusão e os cheiros, as irregularidades do terreno, faziam-no parar com frequência. Caminhou assim ao seu passo, não muito diferente do meu, durante meia-hora. A certa altura, mesmo por debaixo do enorme torreão que é o Pico Valdepino, corria um mísero regato coberto de mato que se ultrapassava de um salto. O recém-nascido abordou o obstáculo com mil precauções e ao fim de uma exploração sensorial que parecia a nada conduzir ficou imóvel. Tentei incitá-lo à travessia, colocando-me ao seu lado, exemplificando. Chamei-o. Falei-lhe como se fala a um bebé. Ele deitava-me uns olhos aflitos.
O grupo reunira-se de novo junto à fonte e fui-lhes dar conta da situação. Enquanto falávamos, desenhou-se na falésia a sombra de uma rapina, naquele seu voo fascinante, de asas imóveis. Levantámos os olhos e num instante tinha-se formado em torno do Pico, na vertical do vitelo abandonado, um bando de mais de doze águias, ou abutres. Ou ambos.
Discutiram-se as seguintes opções: L. que representava a tendência chamemos-lhe rousseauniana , acreditava que não devíamos intervir nas regras normais da natureza e da pastorícia. A mãe vaca não tardaria, e se não fosse o caso, no fim do dia, um pastor daria conta da falta e saberia encontrá-la. L. acredita que existe uma ordem natural de que o homem não participa, e que perturba sistematicamente, ao intervir.
De nada servia lembrar que há uma hora que o vitelo estava sozinho. Que parecia exausto - quanto tempo aguenta um vitelo sem mamar? Que até onde o nosso olhar alcançava não se via vivalma. Que as águias rondavam claramente a sua presa.
A minha tendência, que na altura foi defendida por A., e a que podíamos chamar progressista, propunha que pegássemos no vitelo e o trouxéssemos até ao pasto que víramos na subida, onde, quem sabe, uma teta a adoptaria. Contrapúnhamos à crença nos poderes do instinto maternal e da superior organização da pastorícia de montanha os factos, de todos conhecidos, de mães que matam ou abandonam os filhos, de mães enlouquecidas. Por outro lado nada garantia que os criadores de gado de Soto de Ajambre não estivessem bêbados e assim fossem permanecer enquanto durassem as festas.
C., representando a posição egoísta, argumentou que dava um trabalhão voltar atrás, lá onde ficara o vitelo, que era certo que não o iríamos comer e portanto não retiraríamos nenhuma vantagem de uma hipotética salvação. Percebia-se que o joelho lhe começava a doer o que dava vigor aos seus argumentos. P., o antropólogo molecular louco, disse que nos esquecíamos do ponto de vista das águias, abutres ou ambos. A tragédia do vitelo era a felicidade das aves de rapina- animais selvagens e em vias de extinção, ao contrário dos vitelos. Era a posição dos relativistas. A autodenominada Loura hesitou entre os vários campos. Tendência eclética.
Não vos conto o desenrolar do episódio.
Lembrei-me hoje do olhar do vitelo recém-nascido, encurralado por um insignificante regato e como se deixou abater sobre as patas da frente quando, tremendo como ele, me aproximei.
Era uma manhã de sol, talvez excessivo para uma caminhada que se avizinhava tão longa. A aldeia de Soto, está abrigada aos pés da Pena Santa de Castela, um monte verdejante atrás do qual espreitam as escarpas nuas do Canto Cabronero. Nessa manhã a aldeia acordava de uma orgia de sidra, mascarada e gaitas de foles. Alguns músicos curtiam a ressaca tirando horríveis acordes das gaitas de fole e os primeiros miúdos saíam ás ruas mostrando, ainda timidamente, os seus disfarces. Ninguém nos deu os bons dias, mas devia-se notar na minha cara a pouca simpatia, não pelos celtas, mas por aquilo que é a vulgata dos seus símbolos. Um velho, no cimo do povoado, ensinou-nos o início da rota. Ao longo de três esforçadas horas subimos de 1000 a 1800 metros, até entrarmos num belo caminho de agudos lapiás. Passámos uma fonte que enchia um bebedouro. Para trás ficava uma veiga onde pastavam vacas sem guarda e os últimos bosques de carvalhos e faias. Tínhamos que ladear um enorme morro, o Pico Valdepino, numa encosta onde as águas de Inverno tinham, para enganar os caminhantes, desenhado múltiplos trilhos. Nessa altura, os que gostam de percursos bem definidos começaram a dar sinais de inquietação. Não se via vivalma e subitamente o céu escureceu e a temperatura baixou. Tudo se modificou. Éramos poucos, não falávamos, mas algumas interjeições mostravam que uma nuvem negra se instalara também já nas nossas cabeças. Eu ia à frente, não porque os meus companheiros confiassem em mim, mas porque tinha as cartas e por natural tendência. (Deplorável tendência que me pôs à frente das caminhadas e agora nesta cela solitária.) Numa curva do caminho, uma pequena portela, ouvi o rocegar de mato e surgiu-me à frente um pequeno vitelo. Ficou tão espantado por me ver como eu. Minto. O espanto do animal era muito maior. Nunca vi atenção de um herbívoro tão concentrada num objecto à sua frente, as pernas delgadas, vacilantes, o nariz fremente. Como não cabíamos os dois no trilho inclinado, subi um pouco para ele me poder cruzar. Os meus companheiros, imaginando que se tratava de um javali, reuniram-se uns trinta metros atrás, no alto da portela, junto a um penedo. Acabei por me reunir a eles porque o vitelo não se mexia daquele sítio de espanto e o mesmo sucedia com o meu grupo. Ficámos algum tempo a espreitar a chegada de outras vacas, a imaginar o trilho e a discutir o futuro da caminhada. A nuvem negra sobre o Cabronero tapava-lhe os cumes. Alguns lembraram-se da queda rápida de nevoeiros na zona e da água que começara a escassear- ninguém quisera beber ou abastecer-se no bebedouro.
Voltámos pelo mesmo caminho . O vitelo seguiu-nos. Como nos tivéssemos dividido ele caminhava entre nós. Era um recém-nascido, com o cordão umbilical mumificado, tombando do ventre, ao pendurão. Tudo lhe parecia meter confusão e os cheiros, as irregularidades do terreno, faziam-no parar com frequência. Caminhou assim ao seu passo, não muito diferente do meu, durante meia-hora. A certa altura, mesmo por debaixo do enorme torreão que é o Pico Valdepino, corria um mísero regato coberto de mato que se ultrapassava de um salto. O recém-nascido abordou o obstáculo com mil precauções e ao fim de uma exploração sensorial que parecia a nada conduzir ficou imóvel. Tentei incitá-lo à travessia, colocando-me ao seu lado, exemplificando. Chamei-o. Falei-lhe como se fala a um bebé. Ele deitava-me uns olhos aflitos.
O grupo reunira-se de novo junto à fonte e fui-lhes dar conta da situação. Enquanto falávamos, desenhou-se na falésia a sombra de uma rapina, naquele seu voo fascinante, de asas imóveis. Levantámos os olhos e num instante tinha-se formado em torno do Pico, na vertical do vitelo abandonado, um bando de mais de doze águias, ou abutres. Ou ambos.
Discutiram-se as seguintes opções: L. que representava a tendência chamemos-lhe rousseauniana , acreditava que não devíamos intervir nas regras normais da natureza e da pastorícia. A mãe vaca não tardaria, e se não fosse o caso, no fim do dia, um pastor daria conta da falta e saberia encontrá-la. L. acredita que existe uma ordem natural de que o homem não participa, e que perturba sistematicamente, ao intervir.
De nada servia lembrar que há uma hora que o vitelo estava sozinho. Que parecia exausto - quanto tempo aguenta um vitelo sem mamar? Que até onde o nosso olhar alcançava não se via vivalma. Que as águias rondavam claramente a sua presa.
A minha tendência, que na altura foi defendida por A., e a que podíamos chamar progressista, propunha que pegássemos no vitelo e o trouxéssemos até ao pasto que víramos na subida, onde, quem sabe, uma teta a adoptaria. Contrapúnhamos à crença nos poderes do instinto maternal e da superior organização da pastorícia de montanha os factos, de todos conhecidos, de mães que matam ou abandonam os filhos, de mães enlouquecidas. Por outro lado nada garantia que os criadores de gado de Soto de Ajambre não estivessem bêbados e assim fossem permanecer enquanto durassem as festas.
C., representando a posição egoísta, argumentou que dava um trabalhão voltar atrás, lá onde ficara o vitelo, que era certo que não o iríamos comer e portanto não retiraríamos nenhuma vantagem de uma hipotética salvação. Percebia-se que o joelho lhe começava a doer o que dava vigor aos seus argumentos. P., o antropólogo molecular louco, disse que nos esquecíamos do ponto de vista das águias, abutres ou ambos. A tragédia do vitelo era a felicidade das aves de rapina- animais selvagens e em vias de extinção, ao contrário dos vitelos. Era a posição dos relativistas. A autodenominada Loura hesitou entre os vários campos. Tendência eclética.
Não vos conto o desenrolar do episódio.
Lembrei-me hoje do olhar do vitelo recém-nascido, encurralado por um insignificante regato e como se deixou abater sobre as patas da frente quando, tremendo como ele, me aproximei.
Mulheres zangadas
André disse-me que viu muitas mulheres zangadas este verão.
Como acontece no Inverno, retorqui-lhe, sem perceber o que lhe tinha de facto chamado a atenção.
No Inverno também. Mas no verão – precisou, dão nas vistas por estarem em sítios habitualmente associados ao prazer, à amenidade, ao convívio.
Como acontece no Inverno, retorqui-lhe, sem perceber o que lhe tinha de facto chamado a atenção.
No Inverno também. Mas no verão – precisou, dão nas vistas por estarem em sítios habitualmente associados ao prazer, à amenidade, ao convívio.
Um livro para Ana Paula Inácio
André Bonirre viajou por alguns sítios este verão. Não falarei mais da viagem aos Açores cujo principal, e único objectivo se gorou. Não inteiramente. As coisas acontecem sempre de uma forma diferente da que tínhamos pressentido. O José Mário assegura que a Ana Paula Inácio existe,” é encantadora, com um sorriso bonito, mas muito tímida. Parece prestes a desfazer-se no ar como se a única coisa que a prendesse à terra fossem as palavras (ou nem isso)” . Provavelmente não está agráfica. Simplesmente, dando provas de um bom senso que a outros terá faltado, não quis entregar originais a uma antologia que julgou sem critério, ou apenas geracional. Ou não quis ser envolvida na guerra do alecrim e da manjerona, nortistas contra sulistas, realistas contra simbolistas, discípulos de Sena e Belo contra herdeiros de Herberto Hélder. Seja como for, Ana Paula passa bem sem os conselhos de que André era portador, bem escassos por sinal. Se ela sorri, como diz o José Mário, então não se calou nela a vontade de escrever. Faço votos para que não esteja na ilha do Pico, pelo menos no Inverno. Foi a meio do Canal, na direcção da Madalena, que Tongoy, o feiíssimo alter ego do narrador vilamateano de O mal de Montano deixou soltar a frase - E não haverá no paraíso outra morte! Porque a Madalena geralmente deserta, a enganadora alacridade do mar em Cais do Pico, a extensão surpreendente da ilha na Calheta do Nesquim , são tão perigosos como alguns fins de dia, no verão, em que o sol incendeia atrás de nós o vulcão e a ilha de S. Jorge parece o sítio onde realmente devíamos estar. Assim encerro a minha procura de Ana Paula, um pouco triste, parcialmente vencido. De facto eu não esperava que uma escritora de escrita tímida e antiga, uma voz dada a gente subalterna, circulasse na blogosfera ou lesse os jornais da Penitenciária de Coimbra. Se André Bonirre tivesse estado com Ana Paula levava-lhe também alguns livros de Invisíveis, criaturas literárias que não quiseram dar nas vistas, passaram sem ruído, fizeram o seu trabalho, o humilde trabalho dos agricultores, dos funcionários. Não lhe levava Kafka, porque é seguro que API conhece o homem obscuro que Praga ignorou e agora comercializa. A conselho do narrador vilamateano, André conseguira, comdificuldade, obter um livro de Robert Walser, copista em Zurique- entre outras profissões servis, internado num sanatório, caminheiro, que numa tarde de 25 de Dezembro de 1956, teve um fim ao gosto de API. Caminhou longamente até se confundir com a brancura do chão.
15 agosto 2003
O estilo
Já agora um conselho- insuportável como todos, às vozes que eu tanto aprecio. É muito importante o estilo. E adoro o despojamento, a afectação, a vibração, a pedagogia, a proximidade do abismo, a contenção, o pudor de certos estilos neste espaço que partilhamos. Mas, foi W. Gombrowicz, quem o disse: Agora que com tanto esforço encontraste o teu estilo chegou o momento de ir mais longe, mais fundo. Onde o teu estilo não te possa acompanhar
Naturalmente assassinado
O homem de gelo da Suíça, o nosso antepassado de há não-sei-quantos-mil-anos. Sabemos o que comeu antes de morrer. As doenças de que sofria. A roupa que vestia. Os utensílios que transportava. Sabemos também que foi assassinado. Morreu em combate. Tinha no corpo sangue de pelo menos quatro outros homens. A luta durou mais de um dia, dizem os investigadores.
Vigilantes
O verão liquidou o governo. Depois de deprimir a nação está a levá-la ao suicídio - diz-me o André que sabe o que é fluoxetina e o que a casa gasta. E liquidou as oposições que se confundem com os governos. E essas coisas a que pomposamente se chama protecção civil, gabinete de crise, segurança social. O burro morreu abandonado na estrada de Bensafrim. E os carvalhos, as faias, os amieiros, os castanheiros. Estavam já aliás todos classificados. Em vias de extinção.
Mas o verão destruiu também o que restava da esquerda e da direita institucional.
E ardeu também o povo, para quem tinha ilusões. Alguns, por ingenuidade ou ofício, usaram ainda, sem pudor, palavras como solidariedade. Ouvi uma reportagem em que os habitantes da aldeia, chamemos-lhe Vila Pouca, considerada em grande perigo, eram entrevistados.
-Então, as chamas estão à vista, o que vão fazer?
- Não. O vento está a mudar, o fogo não vem para aqui, vai-se desviar para Tinjo.
-E os senhores o que vão fazer? Vão ficar vigilantes?
- Eu tenho a certeza que aquilo vai para Tinjo.
- Quer dizer que vão dormir descansados?
- Eu vou dormir descansado. Está a ser levado para Tinjo.
Vão ficar vigilantes. Vigilantes. Repetia o repórter até à náusea. E o povo de Vila Pouca, duas mil almas, escondido nos seus buracos, boçais, vigilantes, que arda o Tinjo, ignorantes, vigilantes, na segunda feira lá estarão em fila à porta da junta ou da caixa, humildes, vigilantes a estender a mão à esmola do Bagão, agradecidos, vigilantes.
Mas o verão destruiu também o que restava da esquerda e da direita institucional.
E ardeu também o povo, para quem tinha ilusões. Alguns, por ingenuidade ou ofício, usaram ainda, sem pudor, palavras como solidariedade. Ouvi uma reportagem em que os habitantes da aldeia, chamemos-lhe Vila Pouca, considerada em grande perigo, eram entrevistados.
-Então, as chamas estão à vista, o que vão fazer?
- Não. O vento está a mudar, o fogo não vem para aqui, vai-se desviar para Tinjo.
-E os senhores o que vão fazer? Vão ficar vigilantes?
- Eu tenho a certeza que aquilo vai para Tinjo.
- Quer dizer que vão dormir descansados?
- Eu vou dormir descansado. Está a ser levado para Tinjo.
Vão ficar vigilantes. Vigilantes. Repetia o repórter até à náusea. E o povo de Vila Pouca, duas mil almas, escondido nos seus buracos, boçais, vigilantes, que arda o Tinjo, ignorantes, vigilantes, na segunda feira lá estarão em fila à porta da junta ou da caixa, humildes, vigilantes a estender a mão à esmola do Bagão, agradecidos, vigilantes.
Nicolas
O SAMU foi chamado a uma casa em Strasbourg. Quando chegou encontrou uma criança de nove anos. Morta. Caiu nas escadas – disse a família. No hospital os médicos, surpreendidos pelos múltiplos hematomas, chamam o médico-legista. Poupo-vos os pormenores. Na casa viviam os pais, um tio e a avó do menino. Além de três irmãs com 12,11 e 6 anos. Os vizinhos não sabiam de nada. Na escola também não. Chamava-se Nicolas.
O parasitismo literário
Esta declaração deveria ser ter sido feita há mais tempo, quando começámos A Natureza do Mal. Julguei que fosse desnecessária, por demais evidente. Mas agora André Bonirre leu o nosso blog – e passou algumas horas lendo outros. Acato o seu conselho, faço a advertência.
Há vozes originais na blogosfera, e uma delas bem próxima. Mas tudo o que escrevo, ou digo, ou sinto é de outros. Alguns tenho-os nomeado, citado, transcrito. Outros não. Foi assim com Ruy Belo, no início deste Verão, quando não se adivinhava que viesse a ser tão trágico. A alguns, que parecem sair do nada, como pequenos pontos luminosos e depois rapidamente ao nada retornar, tenho resistido a dizer, como o fez A. Franco Alexandre : meu amor não morras nunca mais. O Congresso que terá lugar em Milão e onde Angélica Pabst se deitará numa cama, obviamente nada electrónica, é um capítulo ainda não escrito, mas nem por isso mais criativo, roubado a Lodge. O crime pelo qual aguardo julgamento está descrito num dos livros de Javier Marias- que não vou indicar apenas para não prejudicar a minha defesa. O lamento sobre a ausência de eco, mesmo quando gritamos, foi Rilke quem o soltou de forma inesquecível. Espero que tenham reconhecido Eliot, Benjamim, Hanna Arendt. A fuga dissociativa, tema sobre que espero postar ainda hoje, e que tanto me atrai, tem vindo a ser tratado, sob um ponto de vista dramático, por um colectivo britânico.
Não sou pois o autor de nada do que escrevo. Ou sinto. Sobretudo daquilo em que julgais ver algum mérito. Considerem-me um parasita literário.
Mesmo esta confissão tardia foi copiada a Vila-Matas. Ou como ele diria: a percentagem de cópia foi oitenta e cinco por cento. Espero que assim André Bonirre me possa ler com mais sossego.
Há vozes originais na blogosfera, e uma delas bem próxima. Mas tudo o que escrevo, ou digo, ou sinto é de outros. Alguns tenho-os nomeado, citado, transcrito. Outros não. Foi assim com Ruy Belo, no início deste Verão, quando não se adivinhava que viesse a ser tão trágico. A alguns, que parecem sair do nada, como pequenos pontos luminosos e depois rapidamente ao nada retornar, tenho resistido a dizer, como o fez A. Franco Alexandre : meu amor não morras nunca mais. O Congresso que terá lugar em Milão e onde Angélica Pabst se deitará numa cama, obviamente nada electrónica, é um capítulo ainda não escrito, mas nem por isso mais criativo, roubado a Lodge. O crime pelo qual aguardo julgamento está descrito num dos livros de Javier Marias- que não vou indicar apenas para não prejudicar a minha defesa. O lamento sobre a ausência de eco, mesmo quando gritamos, foi Rilke quem o soltou de forma inesquecível. Espero que tenham reconhecido Eliot, Benjamim, Hanna Arendt. A fuga dissociativa, tema sobre que espero postar ainda hoje, e que tanto me atrai, tem vindo a ser tratado, sob um ponto de vista dramático, por um colectivo britânico.
Não sou pois o autor de nada do que escrevo. Ou sinto. Sobretudo daquilo em que julgais ver algum mérito. Considerem-me um parasita literário.
Mesmo esta confissão tardia foi copiada a Vila-Matas. Ou como ele diria: a percentagem de cópia foi oitenta e cinco por cento. Espero que assim André Bonirre me possa ler com mais sossego.
E agora José? E agora Rosario?
Na contra-capa de El mal de Montano uma fotografia de Enrique Vila-Matas. Olha-nos de frente, talvez de um plano ligeiramente mais baixo que o nosso. A mão direita, à altura do queixo, segura um cigarro. Veste um blaser preto e uma camisa clara, de colarinho apertado. Olha-nos, interrogativamente, com os olhos muito abertos, a boca fechada, o rosto mal barbeado.
Na capa outra fotografia perturbadora. Um ser andrógino, de branco, camisa masculina de mangas, calça turca apertada justamente acima dos tornozelos estreitos, babouches brancas, gravata e cintos finos, escuros. Tem um cigarro na boca. Dir-se-ia sorrir. Mas pode ser apenas o esgar da boca que segura um cigarro enquanto a mão direit risca um fósforo. O corpo desenha uma convexidade e, se esquecêssemos o pormenor dos fósforos, podia sugerir o movimento do boxeur que prepara um ataque.
A face é estranhamente parecida com a de Vila-Matas. A mesma fronte alta e ovalada, as mesmas sobrancelhas , o mesmo queixo voluntarioso. Vila-Matas nasceu em 1948 e a foto é de Júlio Vivas, chama-se “Mujer de un pintor” e é de Colónia, c. 1924-1928, embora o fundo- um fragmento de um quadro e um painel com um arabesco, sejam singularmente actuais.
Na página 132 o narrador Vilamateano dá-nos uma chave para uma das fotos. Diz-nos que, à semelhança do que fez José Cardoso Pires aos cinquenta anos, lhe deu para fumar frente ao espelho e perguntar. E agora, José. Ele, perigosamente deixado em casa num longo fim de semana em que todos parecem ter desertado, pergunta: E agora, Rosário. (Rosário Girondo é o matrónimo do narrador vilamateano, o nome da mãe, autora do inédito Teoria de Budapest, e o nome com que o narrador assina os seus livros).
E num diálogo hamletiano, ao espelho, ouve uma voz que lhe diz:
-Agora. Continua a fumar.
Na capa outra fotografia perturbadora. Um ser andrógino, de branco, camisa masculina de mangas, calça turca apertada justamente acima dos tornozelos estreitos, babouches brancas, gravata e cintos finos, escuros. Tem um cigarro na boca. Dir-se-ia sorrir. Mas pode ser apenas o esgar da boca que segura um cigarro enquanto a mão direit risca um fósforo. O corpo desenha uma convexidade e, se esquecêssemos o pormenor dos fósforos, podia sugerir o movimento do boxeur que prepara um ataque.
A face é estranhamente parecida com a de Vila-Matas. A mesma fronte alta e ovalada, as mesmas sobrancelhas , o mesmo queixo voluntarioso. Vila-Matas nasceu em 1948 e a foto é de Júlio Vivas, chama-se “Mujer de un pintor” e é de Colónia, c. 1924-1928, embora o fundo- um fragmento de um quadro e um painel com um arabesco, sejam singularmente actuais.
Na página 132 o narrador Vilamateano dá-nos uma chave para uma das fotos. Diz-nos que, à semelhança do que fez José Cardoso Pires aos cinquenta anos, lhe deu para fumar frente ao espelho e perguntar. E agora, José. Ele, perigosamente deixado em casa num longo fim de semana em que todos parecem ter desertado, pergunta: E agora, Rosário. (Rosário Girondo é o matrónimo do narrador vilamateano, o nome da mãe, autora do inédito Teoria de Budapest, e o nome com que o narrador assina os seus livros).
E num diálogo hamletiano, ao espelho, ouve uma voz que lhe diz:
-Agora. Continua a fumar.
12 agosto 2003
Os ciclistas esforçados ciclistas.
São pequeninos
como os joquéis dos cavalos de corrida.
Têm as pernas depiladas.
No Inverno trabalham na agricultura
ou nas bombas de gasolina.
Se ganham uma etapa
e são entrevistados
ficamos a tremer
com medo de que um
tênhamos
ou um póssamos
se lhes atravesse.
Recebem o ordenado mínimo desportivo
e vai metade para o chulo, o director desportivo, o manager.
No fim da etapa são massajados
sem elegância
por homens de mãos grossas.
Jantam comida sempre a mesma
em restaurantes de baptizados e casamentos.
Pedem-lhes que subam serras ardidas
ao calor asfixiante de Agosto.
No fim sofrem a humilhação de mijar
para a polícia da verdade desportiva.
Quando lhes encontram o dope no xixi
escandalizam-se os hipócritas.
como os joquéis dos cavalos de corrida.
Têm as pernas depiladas.
No Inverno trabalham na agricultura
ou nas bombas de gasolina.
Se ganham uma etapa
e são entrevistados
ficamos a tremer
com medo de que um
tênhamos
ou um póssamos
se lhes atravesse.
Recebem o ordenado mínimo desportivo
e vai metade para o chulo, o director desportivo, o manager.
No fim da etapa são massajados
sem elegância
por homens de mãos grossas.
Jantam comida sempre a mesma
em restaurantes de baptizados e casamentos.
Pedem-lhes que subam serras ardidas
ao calor asfixiante de Agosto.
No fim sofrem a humilhação de mijar
para a polícia da verdade desportiva.
Quando lhes encontram o dope no xixi
escandalizam-se os hipócritas.
Alguém que se preocupe ,verdadeiramente, connosco.
A notícia do Verão é a candidatura de Schwarzenegger a mayor da Califórnia. O governador democrático parece ter poucos apoios mas nenhum membro destacado do Partido democrático tem coragem para concorrer. Dentro de pouco tempo os californianos, muito pouco informados politicamente, terão um boletim para responder sim ou não à continuidade do mandato do governador. E em seguida, os nomes de, pelo menos 15 presumíveis alternantes. Ao lado do Terminator estão Larry Flint e uma personagem chamado Ariane Huffington que trocou a extrema-direita pela esquerda quando o ex-marido, um congressista republicano, anunciou ser homossexual.
Larry Flint, o pornógrafo que o filme celebrizou e depois de um atentado ficou hemiplégico, declarou com a sua voz arrastada: “eu preocupo-me de facto com as pessoas e as suas verdadeiras necessidades".
Larry Flint, o pornógrafo que o filme celebrizou e depois de um atentado ficou hemiplégico, declarou com a sua voz arrastada: “eu preocupo-me de facto com as pessoas e as suas verdadeiras necessidades".
Há seis semanas apenas
Não sei se viram. Normalmente passo por cima mas aquela imagem era incontornável. A legenda dizia: reconstrução, pela polícia, do rosto do suspeito do atentado de Jacarta. Depois via-se uma face grosseiramente edemaciada, exoftálmica. Três bocados cozidos uns aos outros. O texto explicava que ele levava consigo toneladas de explosivos. Testemunhas oculares (sobreviventes) relataram ter visto sair disparados da viatura fragmentos de uma face humana. A polícia reconstruiu o rosto a partir dos fragmentos não identificados. E pôs-lhe um nome: Amal. Era o nome de alguém que há seis semanas enviara um mail para uma morada suspeita dizendo: “ Quero casar!” No código secreto da Jihad Islâmica: estou pronto a realizar um atentado suicida.
Na praça de C. tudo na mesma
André disse-me que estava tudo na mesma. À noite na praça de C. as mulheres com jerseis preto e os cabelos claros apanhados atrás e depois caídos pelo pescoço, ou atrás das omoplatas, bebem cocktails com coca-cola e ouvem com olhar perdido os namorados a falar de nada.
Escrever de novo
Enrique Vila-Matas escrevera sobre a síndrome de Bartleby, situação que cala, por vezes definitivamente, os escritores. Aprendemos agora que foi o seu filho, Miguel de Abriles Montano, aliás Montano, quem escreveu Bartleby e companhia. Montano, que vive agora em Nantes, onde gere uma pequena livraria, foi, também ele, acometido dessa maldição. Depois de Bartleby deixou de publicar e, provavelmente, de escrever. O narrador Vila-Mateano, chamemos-lhe assim para facilitar, visita Montano para se curar de uma doença que nele assume características trágicas. Tal como o filho ele não pode escrever por ter o cérebro, ou o que resta dele, ocupado por imagens literárias. Ou, como diz Montano, recordar com a memória de outro. No fabuloso encontro com que termina a primeira parte deste livro, pois é de um livro que vos falo, o narrador encontra, num bar cujo nome vos revelarei em breve, um homem sem face que pode ser ele mesmo ou o escritor Ricardo Piglia ( autor, entre outros, de Nombre Falso, Respiración Artificial, Formas Breves). O encontro tem as características de um sonho mas o diálogo é de uma enorme lucidez, como só alguns sonhos permitem. “Recordar com a memória de um estranho, é uma variante do tema do duplo, mas é também uma metáfora perfeita da expressão literária.”-sussurra Piglia ao ouvido do narrador. No final desta conversa o escritor acorda e, vendo ao fundo o Canal do Pico e as águas azuis na proa de uma embarcação, tão nítidas que podia distinguir a espuma, percebe que está curado.
Sim, são os Açores as ilhas onde o narrador Vila-Mateano sofreu os horrores do fim da literatura e finalmente se reencontrou e é no Café Sport que este sonho tem lugar.
Nos Açores André Bonirre procurou, a meu pedido, uma mulher que depois de escrever um livro de contos que intitulou “Os invisíveis”, deixou de publicar. Eu sabia que “ Mulher à porta de sua casa” fora escrito numa ilha cujo nome não revelarei. Acreditava ser capaz de reconhecer aquela “vila redonda que se fechava, em concha, sobre o centro, traseiras viradas ao mar.” O meu amigo Teixeira, autor de uma novela chamada “O Rasto”, esperou André no aeroporto e acompanhou-o nesses dias. A viagem não teve qualquer êxito. O Teixeira deixou de beber, frequenta as famílias, tem casamento marcado e perdeu a piada. Quando André lhe falou de “O Rasto” sorriu-lhe como a uma assombração inofensiva. Nenhum dos seus conhecidos ouvira falar da autora de “Vinhas de Meu Pai”. Seria uma professora do continente? Uma funcionária do Governo? Uma juíza, ou delegada? Um amigo comum que agora ocupa nas ilhas um elevado cargo podia ser uma ajuda preciosa. Mas depois de um fim-de-tarde de ameno convívio no palacete colonial que ele ocupa, faltou a André a coragem para ser mais preciso na indagação e escondeu os verdadeiros motivos da sua visita.
Na mochila, levava El mal de Montano.
Montano cura-se quando põe a falar entre si as memórias literárias que o habitam e em “siete escassas pero intensas cuartillas” concentra toda a história da literatura. Antes do narrador eu percebera a outra maneira de vencer a doença de Montano. E era isso que queria mandar dizer à agráfica que André não chegou a encontrar: deixamos de escrever- como ela sabe, porque nada parece restar depois do nosso corpo cair, e numa suspensão do tempo, encontrar “o cheiro mais intenso da terra, o cheiro a cogumelos, escondidos, nessa altura, nos lugares mais secretos das matas.” Mas esse não é um lugar de chegada. Um dia a realidade estará de novo à nossa frente, cheia de cor, espessa e transparente. E mesmo que a estejamos a ver pelos olhos e pelo cérebro de Hamlet devemos celebrá-la, por exemplo da saudável maneira orgânica com que o narrador Vila-Mateano o fez. Porque nessa altura podemos de novo escrever.
Enrique Vila-Matas, El mal de Montano, ed. Anagrama, narrativas hispánicas, Barcelona 2002. 306 pp. 16 E
Sim, são os Açores as ilhas onde o narrador Vila-Mateano sofreu os horrores do fim da literatura e finalmente se reencontrou e é no Café Sport que este sonho tem lugar.
Nos Açores André Bonirre procurou, a meu pedido, uma mulher que depois de escrever um livro de contos que intitulou “Os invisíveis”, deixou de publicar. Eu sabia que “ Mulher à porta de sua casa” fora escrito numa ilha cujo nome não revelarei. Acreditava ser capaz de reconhecer aquela “vila redonda que se fechava, em concha, sobre o centro, traseiras viradas ao mar.” O meu amigo Teixeira, autor de uma novela chamada “O Rasto”, esperou André no aeroporto e acompanhou-o nesses dias. A viagem não teve qualquer êxito. O Teixeira deixou de beber, frequenta as famílias, tem casamento marcado e perdeu a piada. Quando André lhe falou de “O Rasto” sorriu-lhe como a uma assombração inofensiva. Nenhum dos seus conhecidos ouvira falar da autora de “Vinhas de Meu Pai”. Seria uma professora do continente? Uma funcionária do Governo? Uma juíza, ou delegada? Um amigo comum que agora ocupa nas ilhas um elevado cargo podia ser uma ajuda preciosa. Mas depois de um fim-de-tarde de ameno convívio no palacete colonial que ele ocupa, faltou a André a coragem para ser mais preciso na indagação e escondeu os verdadeiros motivos da sua visita.
Na mochila, levava El mal de Montano.
Montano cura-se quando põe a falar entre si as memórias literárias que o habitam e em “siete escassas pero intensas cuartillas” concentra toda a história da literatura. Antes do narrador eu percebera a outra maneira de vencer a doença de Montano. E era isso que queria mandar dizer à agráfica que André não chegou a encontrar: deixamos de escrever- como ela sabe, porque nada parece restar depois do nosso corpo cair, e numa suspensão do tempo, encontrar “o cheiro mais intenso da terra, o cheiro a cogumelos, escondidos, nessa altura, nos lugares mais secretos das matas.” Mas esse não é um lugar de chegada. Um dia a realidade estará de novo à nossa frente, cheia de cor, espessa e transparente. E mesmo que a estejamos a ver pelos olhos e pelo cérebro de Hamlet devemos celebrá-la, por exemplo da saudável maneira orgânica com que o narrador Vila-Mateano o fez. Porque nessa altura podemos de novo escrever.
Enrique Vila-Matas, El mal de Montano, ed. Anagrama, narrativas hispánicas, Barcelona 2002. 306 pp. 16 E
09 agosto 2003
El mal de montana
Sou dois. Um na cela, outro nos altos picos da Europa. Falta - por motivos diferentes - à realidade de ambos, espessura suficiente para poder ser escrita.
03 agosto 2003
Seja eu?
De Vila do Rei a Castelo de Vide há um país em chamas. Os gritos do costume. O céu vai do chão para o alto em colunas de chumbo e nem as velhas enlouquecidas têm coragem para pedir a S. José glorioso que nos dê chuva em abundância. A reunião de emergência habitual do conselho de ministros irá indemnizar não se sabe quem. O outro país, do glamour está a banhos. Lá mais para o outono os raids todo-o terreno passarão pela cinza enlameada. No canal Mezzo às 03 horas o concerto de Marisa Monte: haverá um anoitecer e amanhecer e sermos nós ainda?
Marie Trintignant
Marie Trintignant foi transportada de Vilnius até Paris em morte cerebral. A filha de Nadine e de Jean Louis Trintignant. Preso na Lituânia, o cantor antiglobalização que ela amou, ainda não sabe de tudo.
02 agosto 2003
Agosto nas revistas do fim-de-semana
Agosto nas revistas do fim-de-semana
Ines Sastre é lindíssima de vermelho. Renée Zellweger tem um ar incrivelmente saudável. Jennifer Connely está a tentar dar uma volta na sua carreira. Mas quem pode confiar na namorada do Hulk? Julianne Moore posou nua para uma figuração do Déjeuner sur l’Herbe (Julianne Moore pode fazer o que entender. Não me esquecerei dela em Longe do Paraíso. A voz sussurrante, macia. A compostura, o sorriso. A forma como ela segurava os fios da sua relação. A cara dela, naquela conversa em que as amigas falam da frequência da cama na relação conjugal e ela se apercebe de que algo está mal, como o doente palpa o tumor que se tornou indisfarçável mas que estava lá há tanto tempo). Halle Berry- que em Depois do Ódio ( Monster’s Ball) humaniza um polícia bestial com uma queca inesquecível, não tem quem lhe diga que fica mal de beige. Quem, depois do filme de Marc Forster faz de Bond-girl com o piroso do Brosnan e essa coisa chamada X-Men2, não tem perdão. Marie Trintignant foi espancada até à morte, num hotel da Lituânia pelo namorado bêbado, um cantor rock. Marisa Cruz está em todas as capas com um jornalista da Sic . O texto anuncia a sua nova relação. Ela já vai com cara de infeliz.
Inês Pedrosa, num texto de um confrangedor conformismo, fala dessa nova heroína do feminismo português, a dona Filomena. E depois de três colunas de dissertação do estilo "não posso imaginar o que faria no lugar desta mulher, porque a minha imaginação não alcança a ideia do que seria intentar um divórcio contra Pinto da Costa" acaba assim: 'como é que nos deixámos chegar a este estado?'
Sim, como é que foi?
Ines Sastre é lindíssima de vermelho. Renée Zellweger tem um ar incrivelmente saudável. Jennifer Connely está a tentar dar uma volta na sua carreira. Mas quem pode confiar na namorada do Hulk? Julianne Moore posou nua para uma figuração do Déjeuner sur l’Herbe (Julianne Moore pode fazer o que entender. Não me esquecerei dela em Longe do Paraíso. A voz sussurrante, macia. A compostura, o sorriso. A forma como ela segurava os fios da sua relação. A cara dela, naquela conversa em que as amigas falam da frequência da cama na relação conjugal e ela se apercebe de que algo está mal, como o doente palpa o tumor que se tornou indisfarçável mas que estava lá há tanto tempo). Halle Berry- que em Depois do Ódio ( Monster’s Ball) humaniza um polícia bestial com uma queca inesquecível, não tem quem lhe diga que fica mal de beige. Quem, depois do filme de Marc Forster faz de Bond-girl com o piroso do Brosnan e essa coisa chamada X-Men2, não tem perdão. Marie Trintignant foi espancada até à morte, num hotel da Lituânia pelo namorado bêbado, um cantor rock. Marisa Cruz está em todas as capas com um jornalista da Sic . O texto anuncia a sua nova relação. Ela já vai com cara de infeliz.
Inês Pedrosa, num texto de um confrangedor conformismo, fala dessa nova heroína do feminismo português, a dona Filomena. E depois de três colunas de dissertação do estilo "não posso imaginar o que faria no lugar desta mulher, porque a minha imaginação não alcança a ideia do que seria intentar um divórcio contra Pinto da Costa" acaba assim: 'como é que nos deixámos chegar a este estado?'
Sim, como é que foi?
Silêncio sobre A Natureza do Mal
A blogosfera é um concerto de sussurros dissonantes. Leio com atenção os blogs que linkamos e outros, excelentes, que com mais tempo hei-de propôr para selecção: A Janela Indiscreta; Tempo Dual; O Bicho Escala Estantes; achoeu por exemplo. Mas ninguém nos lê. Um silêncio pesado como este ar de agosto, cinza e névoa ardente, cai sobre A Natureza do Mal . E do mais importante ninguém me fala. Ninguém sabe da Ana Paula Inácio.
O chá e a bagaceira
O EPC é o maior bloguista sem blog. Depois dos blogues falou hoje do chá e da avó materna. A minha avó materna era a garrafa branca de calibrina. A abridora, a cambraia, a limpinha, a lanterneta, a meropeia, a purona, a salsaparrilha de bristol, o remédio, a venenosa. Cada um com o seu blog. Cada qual com a sua avó.