31 outubro 2006
30 outubro 2006
A entrevista de António Lobo Antunes na Pública
A Dom Quixote vendeu ao Público uma entrevista promocional do último livro do escritor António Lobo Antunes. A encomenda coube nos últimos anos a Alexandra Lucas Coelho, que desta vez foi avisada de que “o homem queria falar”. Não se percebe de quê. Do livro não era. Ainda hoje, cinco entrevistas depois do momento em que foi anunciado o livro de Natal da Dom Quixote, continuo na ignorância do tema. A entrevistadora esforçou-se por dar alguma ordem à conversa. Lobo Antunes ouve vozes e escreve. Nesse processo “sofre imenso”, no que não se distingue da maioria dos alucinados. Como lhe disse um homem da Academia Sueca, a voz que ele ouve é sempre a mesma, a sua própria voz. Percebe-se o sofrimento.
A entrevista serve para o homem falar das viagens- ele não distingue bem as cidades e a descrição de Jerusalém às mãos de um motorista broeiro da Mossad é confrangedora; da política- onde emite declarações originais do tipo”Cavaco é o melhor presidente a que Sócrates podia aspirar”; da literatura- não parece saber quem ganhou o Nobel este ano, acha que os jovens escritores lhe copiam a pontuação e incita-os a escreverem “contra ele”.
No princípio, no meio e no fim declara-se o melhor escritor vivo, quiçá morto. O melhor e o segundo melhor.
Alexandra despacha aquilo com a empatia que dedicamos aos tios que vamos visitar ao Lar. Adeus e até ao próximo Natal.
A entrevista serve para o homem falar das viagens- ele não distingue bem as cidades e a descrição de Jerusalém às mãos de um motorista broeiro da Mossad é confrangedora; da política- onde emite declarações originais do tipo”Cavaco é o melhor presidente a que Sócrates podia aspirar”; da literatura- não parece saber quem ganhou o Nobel este ano, acha que os jovens escritores lhe copiam a pontuação e incita-os a escreverem “contra ele”.
No princípio, no meio e no fim declara-se o melhor escritor vivo, quiçá morto. O melhor e o segundo melhor.
Alexandra despacha aquilo com a empatia que dedicamos aos tios que vamos visitar ao Lar. Adeus e até ao próximo Natal.
29 outubro 2006
Ruy Belo
Mudam a hora para que nos lembremos:
É triste no Outono concluir que era o Verão a única estação.
Sim, concordo
Antes já tive convicções.
Cumprimentava os vizinhos
sabia o preço de um T3
em quem votar nas presidenciais (mentira)
o rigor do método científico
e até já soube o trilho dos Covões.
Agora ainda sei distinguir um filho da puta.
Um farsolas (mal).
Mas ouço, leio, vejo,
e dou comigo a concordar
com todos.
(Ah, excepto com os que se indignam.
E com os do discurso manhoso
da agenda política.
Com os que fulminam em geral,
e no final, condescendentes,
mudam o tom condenatório e declaram:
- Excepto alguns claro.)
Concordo com quase tudo
de quase tudo
escrito, ouvido,
ou visto.
Concordo com quase todos,
dos poucos que ouço
ou leio.
E se às vezes em mim se forma
uma dúvida,
o começo de um debate,
logo se esbate
e mal me chega à boca.
Sei que não vale a pena.
Tudo caminha para o seu fim. A noite. O esquecimento.
Cumprimentava os vizinhos
sabia o preço de um T3
em quem votar nas presidenciais (mentira)
o rigor do método científico
e até já soube o trilho dos Covões.
Agora ainda sei distinguir um filho da puta.
Um farsolas (mal).
Mas ouço, leio, vejo,
e dou comigo a concordar
com todos.
(Ah, excepto com os que se indignam.
E com os do discurso manhoso
da agenda política.
Com os que fulminam em geral,
e no final, condescendentes,
mudam o tom condenatório e declaram:
- Excepto alguns claro.)
Concordo com quase tudo
de quase tudo
escrito, ouvido,
ou visto.
Concordo com quase todos,
dos poucos que ouço
ou leio.
E se às vezes em mim se forma
uma dúvida,
o começo de um debate,
logo se esbate
e mal me chega à boca.
Sei que não vale a pena.
Tudo caminha para o seu fim. A noite. O esquecimento.
28 outubro 2006
Incitação a um bloguer
Se tu escrevesses a tua escrita espantava. Era fácil escrever no rasto das tuas palavras. Mas se tu escrevesses nós calávamo-nos, como disse o RAP quando o historiador começou a escrever. Porque tu havias de dizer o que nós queríamos. Mas melhor. Mas mais. Do lado sempre outro por onde olhas. Se tu escrevesses aumentavas a virtude. Se tu escrevesses nós não dizíamos a ninguém. Boca a boca.
Lousã
Agora os trilhos. Agora os pequenos animais assustados. O tartaranhão azul. Agora a cobra imóvel sobre a laje.
Teoria da Literatura
O Farsolas engana-me sempre que quer. Engana-me com a voz. Quando ele fala sou mulher. Engana-me com os olhos. Olha-me e vejo nele o menino. Engana-me com as palavras. O Farsolas é escritor, e grande, dos que ouvem vozes, e para viver eu preciso de ser enganado pelas vozes que ele ouve.
27 outubro 2006
Fim do mês
Viu-me no outro lado do passeio e aproximou-se, caloroso. Julguei que me reconhecera dos Correios. Mas quando começou a falar percebi que me reconhecera como contribuinte. Contou-me a história breve da sua vida. Parecida com a minha, excepto a heroína. Um resumo para cinco euros, calculei. Disse-me que não tinha forma de me pagar, o subsídio de desemprego só vem no fim do mês. Recordei-lhe que estamos no fim do mês, mas ele já não me ouvia, agradecido.
26 outubro 2006
O Fio lá da rua
O homem tem uma massagista moldava que lhe faz imenso bem. Mas já não deve ter nenhum amigo que o leia. Ou que seja capaz de lhe dizer.
Pacheco Pereira
Pacheco Pereira assina hoje no Público uma crónica sobre a reserva da intimidade, um dos temas que lhe é caro. Eu sei que nesse campo Pacheco Pereira está muito sózinho e contra a corrente. Mas espanta que os duzentos mil leitores e alguns dos articulistas do "Expresso" não tenham reagido contra a notícia e o que ela significa. Mais uma barreira do respeito pela vida intima foi devassada. É fartar.
Sócrates e a razão
Sócrates comentou o pretenso acordo com os professores num tom deselegante. O homem está convencido que o governo tem razão. Todos nós esperamos que o governo tenha razão. Pode-se mesmo dizer que a única explicação para a subsistência de Sócrates e do governo de Sócrates é a nossa arreigada crença na sua razão. Mas quando o que tem razão e a impôs, rejubila assim, nasce uma incomodidade perto dos nossos corações.
Reconforto
Parece que os britânicos e as britânicas andam sossegados e sossegadas. Um terço dos solteiros e mais de um quarto das solteiras não teve nenhum parceiro sexual em 2005. Oitenta e três por cento das mulheres revelou só ter tido um parceiro nesse mesmo período. Trinta e cinco por cento dos teenagers não conheceu, nesse ano, nenhum parceiro sexual.
A psicóloga Petra Boynton, que comentou os resultados deste Inquérito do INE do Reino Unido, fez algumas considerações, todas preciosas. Entre elas a de que "os números agora divulgados são muito reconfortantes".
Em algum sítio hão-de as psicólogas do Reino Unido encontrar conforto.
A psicóloga Petra Boynton, que comentou os resultados deste Inquérito do INE do Reino Unido, fez algumas considerações, todas preciosas. Entre elas a de que "os números agora divulgados são muito reconfortantes".
Em algum sítio hão-de as psicólogas do Reino Unido encontrar conforto.
Digestão
Juntamo-nos sempre no banquete que abre a Exposição. Quando abrem as portas misturamo-nos com o público. Ele dificilmente atinge o nosso grau de fruição.
25 outubro 2006
O pior
A mulher estava à porta de casa. Perguntavam-lhe pelos prejuízos. Ela não sabia. Dizia:- O pior não é a água. O pior é a humidade que fica depois.
Aviso
Não há imagens. Quase nunca. Não há música. Nunca. Um espaço de silêncio. A noite. A humidade que fica depois da chuva. A fome. Um rasto de vermes marinhos congelado num fundo milenar. Um bando silencioso que caminha para uma aventura fatal. O choro que vem da casa de banho pública. O corpo coberto das mulheres. A anemia. Uma pústula, um tumor. Um falso sinal.
Um nome
Vem com a chuva um nome imperfeito. Vem com a neve. Vem com a avançada dos exércitos para leste. Reunimo-nos à noite com as botas pesadas. Esperamos um sinal, o teu nome. Um nome que assinale o combate. O próximo combate. De dia caminhamos para leste. À noite reunimo-nos nas casas abandonadas, acendemos o fogo e ficamos à espera de notícias. É um nome que esperamos. O nome que tinhas. O primeiro nome. Um nome como a noite, pesado como a roupa ensanguentada, leve como os nossos corpos esgotados, um nome fácil de dizer, um nome para a nossa morte, o teu nome.
Lady in the water
Choveu muito. Eu, uma mulher sem nome, uma vida sem valor, uma idosa, fui com as águas.
(Pombal, esta noite)
(Pombal, esta noite)
24 outubro 2006
O sacrifício de Haldane
Quando perguntaram a J.B.Haldane, um biólogo inglês, se poderia sacrificar a vida por um irmão, respondeu que sacrificaria a vida por dois irmãos ou irmãs, quatro sobrinhas ou sobrinhos, ou oito primos direitos. (Haldane referia-se à percentagem dos nossos genes que existe em cada um destes parentes).
Nunca em mim os genes falaram assim claramente.
Eu por ti daria a vida. Por ti, também.
Nunca em mim os genes falaram assim claramente.
Eu por ti daria a vida. Por ti, também.
23 outubro 2006
Marie Antoinette
O Pulido Valente leu o livro da Antonia Fraser (no aeroporto, está desculpado) e achou que era uma enormidade. E eu ralado. Aviso já que vou gostar. Que vou gostar muito. Que fico tristíssimo se não gostar.
A vantagem dos historiadores
Ler o Público ao sábado, falo da página cinco, é algo que não recomendo. O emparelhamento dos cronistas actualiza a ilusão perigosa da superioridade intelectual da esquerda.
A mergulhadora
Rick Raymond
Era de noite e a rapariga estava debruçada sobre o bebedouro do xafariz, segura pelos braços dos encapuçados. Perguntaram-lhe se sabia que ia renascer e a sua resposta não foi perceptível. Depois quiseram saber o nome, o nome verdadeiro, o novo nome. E ela respondeu, com uma voz que contrastava com o tom solene dos encapuçados. Era a voz de alguém que vai nascer, que saiu de um território de farsa para outro onde não há lugar para o riso boçal, nem é certo o reflexo dos espelhos, o peso dos objectos ao cair, o eco das vozes se chamarmos. Uma voz sem ênfase, como uma pedra lisa onde a palavra se inscrevesse, solidão sem remédio, sem a esperança e o sofrimento do amor, sem a doçura do crepúsculo. Onde desconhecemos a razão e a regra. E não temos mapa para os trilhos. O nome que a voz dela disse foi:
-A mergulhadora.
21 outubro 2006
A cidade de A.
Carol Rudyard, Unreal City
Na cidade de A. as famosas bicicletas são invisíveis, embora circulem vistosos veículos motorizados, provavelmente destinados à recolha e reparação, cuja função evoluiu para a propaganda do Projecto de Cidade Saudável . Se perguntarmos pelas bicicletas, os residentes, com aquele ar de amnésia de paisagem, respondem invariavelmente que estão na Estação. Mas ninguém chega de comboio à cidade de A. Nas ruas, as pessoas não cruzam os olhares e parecem ter pressa. Algumas mulheres começaram a usar véu. Às sete da tarde as ruas ficam desertas. A essa hora os restaurantes abrem as portas . Ao entrarmos informam-nos da hora de encerramento da cozinha, como se nos tomassem por espanhóis. Esta sensação de fecho eminente, transmitida por luzes que se apagam, pelas mesas desertas, pelo ar do empregado que traz na mão um detector de fumadores e se curva como se viesse dizer uma má notícia , estende-se às pastelarias. Os únicos pastéis são de ovos, recheando hóstias. A Santa padroeira da Cidade não é bem uma santa. Explicaram-me que era uma quase-Santa, uma SCUT a que só faltaria a portagem. Sobre o canal há pontes que parecem decorativas. O interesse em mudar de margem, no canal, é reduzido. Numa praça havia uma galeria. Vazia. Pior que vazia. Com um único visitante. Um reformado. Um pensionista. Sozinho. Como eu. Como todas as pessoas da cidade de A. Excepto à noite, junto a uma fonte, quando os caloiros de Novas Tecnologias, se entregaram a um grupo de encapuçados. O ritual consistia em encher as cabeleiras fartas das novas alunas com musgos e líquenes de cor duvidosa, que boiavam na fonte. Elas gostavam. A coreografia era medieval, com velas, silêncios e gritos de combate. A veterana a quem a direcção do sucesso tinha sido entregue deve ter visto mais filmes de campos de concentração do que sebentas de novas tecnologias. A sua piada favorita era: -Não se abana a cabeça. Cabeça não é pilinha! Mesmo sem abanar a cabeça algumas caloiras pareciam lindas. Olhando para as veteranas percebemos que o curso de NT deve ser difícil.
Também há, na cidade de A., um cibergabinete, que deve ser da autarquia. O recepcionista pergunta se temos password. Inscrevemo-nos e apontam-nos uma fila de espera. Podemos ficar a ver os putos a jogar ou um grupo de seniores, inscritos nos programas da Universidade da terceira idade, a fazer o trabalho de casa. O ambiente ideal para uma investigação de sociologia não rural.
Não há crianças no centro da cidade de A. O Teatro Municipal anuncia espectáculos que decorrem em outras cidades. Numa praça estão quatro estátuas. A mulher do ramo, o fogueteiro e provavelmente dois marnotos. Tenho de ver, se voltar à cidade de A.
A cidade de A. é triste. Só uma mulher se ria, mas não era de lá.
Pela mão
Levam-nos pela mão
aos Correios, ao Ginásio, à Tensão.
Ufanas, vingativas,
parecem dizer:
- Olhem os fodilhões
antes faziam um vistão.
Lineu
A minha profissão é dar-lhes nomes.
Tal como o outro, passados os seis dias,
foi tudo achando bem, e disse
que era bom, e o chamou,
assim, no bom ou mau,
eu dou nomes à vida, digo
esta é a rosa dos ventos, digo
esta é a flor das águas, digo
esta é a planta do teu pé.
Apenas digo nomes:tudo existe
muito senhor de si,
tudo existe insolente,
independente.
Não era necessário eu ter nascido.
Pedro Tamen, Analogia e Dedos,
Oceanos/ASA editora,
Outubro 2006, 10 €
Novidades literárias
Tão fatal como o Natal é o romance do irmão do Rosinhas. Com as primeiras castanhas e a vacina da gripe começam as entrevistas. Por volta dos fiéis defuntos divulgam-se alguns capítulos. Está nas livrarias com o décimo terceiro mês. Todos compram, ninguém lê. É um livro para dar, um cheque-livro.
20 outubro 2006
O Navio de Espelhos está no Mercado Negro
O Navio de Espelhos, numa rua de Aveiro. Uma livraria onde os livros se alinham em estantes, empilham em mesas, em baús e cestos de verga. Um bar com as revistas . Um espaço ao fundo onde se sentavam os leitores e às vezes gente que precisava de um lugar de reunião. Hoje as portas estão fechadas. Uma faixa de luz ilumina um livro de Carlos de Oliveira. No chão há cartas- que os carteiros acumulam com desgosto. Uma sombra parece passar junto a uma estante, mas é só o vento que agita os cortinados. Nos vidros um papel escrito à mão informa que
.O Navio de Espelhos está no Mercado Negro.
Alguma Rivolição é necessária
Na sua crónica de ontem, Pacheco Pereira aborda a ocupação do Rivoli com a habitual antipatia que os "agentes culturais subsidio dependentes" lhe despertam, opondo o panorama de uma cidade de ouro do passado, com os burgueses esclarecidos a subsidiar uma actividade cultural florescente e popular, ao Porto actual, onde um grupo criado pelos fundos das Capitais da cultura, sedento de dinheiro, produz objectos "solipsistas", relativamente aos quais recusa qualquer avaliação.
Pacheco Pereira dá a entender que "o senhor Rio" aplica agora correctamente os dinheiros camarários, o "nosso dinheiro", em "projectos sociais" .
Pacheco Pereira tem razão em não simpatizar com os artistas que o poder subsidia e utiliza emblematicamente para manter aquela legitimidade que não pode perder. Eu também não aprecio ver os que se queixam de falta de apoio para as suas iniciativas a esbanjar fortunas em jantares aonde o inner circle dos críticos, comissários, ministros e directores acorre, com despreocupada cumplicidade. Mas, provavelmente por falta de imaginação, não vejo a gestão privada, utilizando instalações e equipamentos "pagos por todos nós" a permitir a liberdade de criação e ainda por cima a obter com isso os lucros a que julga ter direito.
Pacheco Pereira dá a entender que "o senhor Rio" aplica agora correctamente os dinheiros camarários, o "nosso dinheiro", em "projectos sociais" .
Pacheco Pereira tem razão em não simpatizar com os artistas que o poder subsidia e utiliza emblematicamente para manter aquela legitimidade que não pode perder. Eu também não aprecio ver os que se queixam de falta de apoio para as suas iniciativas a esbanjar fortunas em jantares aonde o inner circle dos críticos, comissários, ministros e directores acorre, com despreocupada cumplicidade. Mas, provavelmente por falta de imaginação, não vejo a gestão privada, utilizando instalações e equipamentos "pagos por todos nós" a permitir a liberdade de criação e ainda por cima a obter com isso os lucros a que julga ter direito.
Abriu-se-lhe à frente uma janela ética
Zita Seabra explica ontem no Público as diferenças sociológicas entre o Portugal dos anos 80, quando ela era uma funcionária da nomenclatura do PC, e o Portugal do século XXI. Neste espaço de tempo, e muito à custa de uma enfermaria de Ulianovgrad, a deputada do PSD viu abrir-se à sua frente uma janela ética. Hoje defende trabalhos de reeducação como pena para as mulheres que cometam o crime de abortar- sinais de permanência do passado na sua mente nova. O meu apelo a que no referendo da descriminalização do aborto não votem os homens e os senhores padres deve incluir as mulheres que confundem a post menopausa com a post modernidade.
18 outubro 2006
Enxaqueca
Cientistas de Harvard estudaram o meu cérebro e descobriram que duas áreas conhecidas por MT+ e V3A tinham uma espessura cortical aumentada. A aura migrainosa, essa quadrantanópsia irritante que periodicamente me faz perder um pedaço da vossas caras, parece estar associada a este achado. Os cientistas não perceberam ainda para que serve esta descoberta. Mas já é um começo. Sempre pensei que havia algo de errado no meu córtex visual.
Não se compreende
Diz o jornal que o deputado municipal do PS Pedro Bacelar de Vasconcelos lamentou "que a autarquia esteja a recorrer a mecanismos judiciais e policiais para sanar a questão do Rivoli". "É incompreensível que uma autarquia lide desta forma com pessoas da cultura, com gente civilizada", disse.
É um escândalo, de facto. Se fosse uma empresa textil, uma oficina de automóveis, uma fábrica de calçado, uma estação de correios, ainda vá lá. Agora tratarem assim o pessoal da cultura, civilizado. Ele não compreende e demora a explicar.
É um escândalo, de facto. Se fosse uma empresa textil, uma oficina de automóveis, uma fábrica de calçado, uma estação de correios, ainda vá lá. Agora tratarem assim o pessoal da cultura, civilizado. Ele não compreende e demora a explicar.
Honra aos ocupas do Rivoli
andré bonirre
Não sei o que se passa, a esta hora, no Rivoli. Li o que o Marmelo escreveu, a este propósito, no seu blog. Embora o tom seja irónico, discordo da posição de fundo. Se a autarquia e o energúmeno não têm política cultural, não faz sentido a oposição à privatização da gestão, diz o Marmelo. Pensámos o mesmo quando começaram a privatizar os Correios e foi o que se viu. Se tivesse sido hoje, ter-me-ia barricado na Estação. Quanto mais não fosse para, como fez a Regina Guimarães, gritar "Saguenail, je t'aime ". Há muito tempo que o Porto não ouvia uma coisa assim.
Um blog desfigurado
Quando ensaiava uma nova face para A Natureza do Mal substituí inadvertidamente o anterior e nessa operação desapareceram links e comentários. Peço desculpa aos meus amigos, anónimos ou não, cujo contacto perdi. Prometo repor a inserção de comentários logo que perceba o procedimento correcto. Até lá podem, sempre que queiram, utilizar o mail do blog(anatureza.domal@gmail.com).
Outono deste ano
Os gordos
revoluteiam
ancas e mamas
atrás dos filhos
gordos
no parque da cidade
agora
a chuva do outono
varre
as cinzas
das palavras
no parque da cidade
17 outubro 2006
Alejandra Pizarnik em Portugal (algumas traduções)
Há quatro anos (quando se confessou completamente viciada) que a Lebre (parabéns Lebre) publica textos da Alejandra Pizarnik.
António Cabrita traduziu Extração da Pedra da Loucura; 1968
para © Construções Portuárias #1, Maio de 2002. A Cristina, nos últimos dias da Janela reproduziu este poema e o José Mário Silva no BdE fez-lhe uma alusão.
«Antologia Poética»
é uma edição bilingue,
editada no Porto pela Estratégias Criativas.
Alberto Augusto Miranda traduziu alguns poemas. Ver tb aqui
José Bento traduziu um poema para a Rosa do Mundo-2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim, 2001
Podem ser encontrados textos em A Antologia do Esquecimento e Sololiteratura
O blog Um Buraco na Sombra, de consulta obrigatória, reune estas e outras informações.
António Cabrita traduziu Extração da Pedra da Loucura; 1968
para © Construções Portuárias #1, Maio de 2002. A Cristina, nos últimos dias da Janela reproduziu este poema e o José Mário Silva no BdE fez-lhe uma alusão.
«Antologia Poética»
é uma edição bilingue,
editada no Porto pela Estratégias Criativas.
Alberto Augusto Miranda traduziu alguns poemas. Ver tb aqui
José Bento traduziu um poema para a Rosa do Mundo-2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim, 2001
Podem ser encontrados textos em A Antologia do Esquecimento e Sololiteratura
O blog Um Buraco na Sombra, de consulta obrigatória, reune estas e outras informações.
37
más allá de cualquier zona prohibida
hay un espejo para nuestra triste transparencia
Alejandra Pizarnik
Um referendo
Dizem que vai haver um novo referendo sobre se devemos continuar a mandar a polícia perseguir, interrogar, prender, levar a julgamento e condenar as mulheres pobres que engravidaram e não querem ter filhos.
Eu não percebo porque é que os deputados são competentes
para decidir que o Serviço de saúde e o Teatro Nacional podem ser privatizados, as células estaminais não devem ser usadas para tratar doenças horríveis, os crimes desportivos não são bem crimes, o casamento é um sacramento entre um homem e uma mulher, um desgraçado que quer morrer e não sabe como não pode ser ajudado
e devolvem ao povo a soberania para uma decisão tão simples
como a de não interferir na decisão intima de uma mulher que está nas primeiras semanas de uma gravidez indesejada.
Como não percebo não tenciono votar.
Acho que os homens e os senhores padres deviam fazer como eu.
Eu não percebo porque é que os deputados são competentes
para decidir que o Serviço de saúde e o Teatro Nacional podem ser privatizados, as células estaminais não devem ser usadas para tratar doenças horríveis, os crimes desportivos não são bem crimes, o casamento é um sacramento entre um homem e uma mulher, um desgraçado que quer morrer e não sabe como não pode ser ajudado
e devolvem ao povo a soberania para uma decisão tão simples
como a de não interferir na decisão intima de uma mulher que está nas primeiras semanas de uma gravidez indesejada.
Como não percebo não tenciono votar.
Acho que os homens e os senhores padres deviam fazer como eu.
Leituras
Adições: No silêncio do deserto.
A Terra (é) Habitada por um ser cuja vida fascinante tem um período de 5 anos.
Inactivism, um bom blog de cultura.
A Terra (é) Habitada por um ser cuja vida fascinante tem um período de 5 anos.
Inactivism, um bom blog de cultura.
16 outubro 2006
Contra a simultaneidade
Jorge Faustino
No dia dos Correios devia ter escrito uma carta que começasse
espero que esta minha carta te vá encontrar
como começavam as cartas que os destinatários recebiam algum tempo depois de terem sido escritas, e não escondiam o temor da sua desactualização. No Congresso Europeu dos Correios não havia Caixa Postal. Muitos computadores, disputados por funcionários que liam os emeios, os jornais dos respectivos países, uma consulta de última hora a uma revista de referência. Mas nenhuma Caixa Postal, nenhum sítio onde se pudessem comprar envelopes, um selo, papel decente que não esborratasse.
Eu gosto do tempo que medeia entre uma coisa e o seu efeito. Nem sempre foi assim. Mas devemos aprender com os nossos erros, sobretudo quando lhes sobrevivemos. Hoje tenho horror à simultaneidade. Raramente percebemos as coisas ao mesmo tempo. Caminhamos sozinhos. De vez em quando uma subida íngreme junta dois caminhantes. Ou uma sombra recolhe um pequeno grupo. Ou a fome, o cansaço, um sinal quase apagado reúne alguns de nós. E então falamos do que interessa. A cobra debaixo da laje, o lagarto que atravessa o carreiro
Se te virares para o vento, tens à tua direita a depressão de onde virá a chuvaE rimos quando é altura de chorar, temos fome quando o outro está saciado, dói a um a virilha e a outro o joelho, dormimos desencontrados e já partimos já nos deixamos já caminhamos outra vez sozinhos.
Dia da Obesidade
No pódio europeu dos obesos estão agora as crianças portuguesas. Vítima dos genes e do fast food, do urbanismo dos patos bravos e da televisão, dos game boys e da falta de pavilhões desportivos. Obesos, cheios de açúcar e de gordura nas veias, apneicos e com dores nas articulações. Enchem o presente e não cabem no futuro.
A missa em Penha Garcia
Jorge Faustino
O grau de satisfação era elevado. Excepto nas duas adolescentes que reprovavam a extensão do sermão. O tolinho estendia a mão, as mulheres falavam da marmelada, o sacristão apalavrava um baptizado e o padre, satisfeito, fumava umas beatas na sacristia.
Stand Up
Parece que ontem, em algumas cidades do mundo, houve quem se levantasse um minuto contra a miséria. Os miseráveis continuaram sentados. Ou deitados. Era domingo, dia de descanso.
De pé, no Rivoli
O Teatro Rivoli foi ocupado por algumas pessoas. Ameaçado de privatização por aquele que se notabilizou como "o autarca energúmeno" e pelos que apoiam a sua política cultural, o Teatro vive um tempo de indefinição. Os ocupantes pretendem que a situação seja esclarecida. Gente como esta está a salvar o mundo, diria Borges.
Nombrarte
No el poema de tu ausencia,
sólo un dibujo, una grieta en un muro,
algo en el viento, un sabor amargo.
Alejandra Pizarnik
13 outubro 2006
Anna, na sua morte
No dia da execução ela entrou em casa com os sacos do supermercado, enquanto deixava o carro parado em frente, talvez sabendo que tinha sido seguida, como tantas vezes acontecera, um homem espiando-a, uma mulher cuja cara reconheceu, pessoas dos serviços secretos de Putin, terá pensado, afinal iguais às do KGB, iguais a todos os polícias que seguem pessoas em todas as cidades vigiadas do mundo, e no fim do dia fazem relatórios onde descrevem as coisas simples que fizemos, os cafés onde entrámos, as pessoas que cumprimentámos mais demoradamente, o livro que folheámos na livraria, e tecem comentários sobre os nossos encontros e desencontros, a nossa solidão e as nossas preferências literárias para superiores que os lêem e entregam a outros superiores que decidem o dia em que a nossa prisão é oportuna, o tipo de interrogatório que nos irão fazer, quem prenderão connosco. Mas naquele dia era diferente. Ela deixou de os ver à saída do supermercado e ao chegar a casa já não pensava na sua vida vigiada, mas em coisas prosaicas como a salada do almoço e o preço do café da Etiópia. Abriu o elevador, deixou em casa os sacos de compras e desceu para arrumar o carro, a porta do elevador abriu-se no hall de entrada e viu o homem do supermercado e uma pistola com um cano enorme virada para ela, não ouviu os tiros, viu a cara do seu assassino e pensou nos milhares de mortos da Tchetchenia que tinham morrido assim, morrido na cara dos assassinos, sabendo apenas que morriam sem tempo para gritar, que os gritos não trariam nenhum auxílio, que ninguém os ouviria porque as pistolas dos assassinos silenciaram as hostes dos anjos. Caiu para a frente e o homem debruçou-se sobre ela e deu-lhe, na nuca, o tiro com que os profissionais selam o seu trabalho.
Cê
é o que fica de um amor que não acaba assim
desolação de los angeles
a ideia de sermos outros
irreconhecíveis se nos voltarmos a cruzar,
eu odeio você dito como quem ama,
são paulo em cheio nas luzes da bahia,
porque veio e não veio quem eu desejaria
nada serve de chão às nossas lágrimas
e cantado com as tuas vozes e as tuas notas simples
de baladeiro, roqueiro, sambista,
meu menino lindo,
meu homem que afinal invejas tantas coisas das mulheres,
era o fim, é o fim, mas o fim é demais também.
desolação de los angeles
a ideia de sermos outros
irreconhecíveis se nos voltarmos a cruzar,
eu odeio você dito como quem ama,
são paulo em cheio nas luzes da bahia,
porque veio e não veio quem eu desejaria
nada serve de chão às nossas lágrimas
e cantado com as tuas vozes e as tuas notas simples
de baladeiro, roqueiro, sambista,
meu menino lindo,
meu homem que afinal invejas tantas coisas das mulheres,
era o fim, é o fim, mas o fim é demais também.
12 outubro 2006
Efemérides
A Assembleia da República e o Lux, um barracão em Santa Apolónia, celebram não sei o quê. O presidente da Assembleia encomendou um bufete cujo orçamento é de 150 euros por convidado. Tácito chamava a isto a luxúria do poder, paga pelos contribuintes, eleitores ou não. Sobre o aniversário do armazém de Santa Apolónia o melhor é ler EPC, ontem no jornal onde tem a coluna diária. Um elemento para a caracterização do intelectual mediático, neste período final da sociedade da abundância desigual e insustentável.
11 outubro 2006
Torre Agbar
Torre Agbar, Jean Nouvel, Barcelona
No primeiro dia, o Edifício da Praça das Glórias Catalãs fascina. Não se pode tirar os olhos daquele obelisco gigantesco, quente na base e azulado à medida que fura os céus de Barcelona. De dia e de noite. A pé ou no metro de superfície. De longe e de perto. É sempre para ele que se viram os olhos e as conversas. O dedo do gigante enterrado, o supositório, o pénis vibrante e colorido.
Depois passam os dias. E a certa altura, habituamo-nos. Como ao buraco do ozono, ao aquecimento global, à injustiça e à desigualdade, ao cheiro que vem das entranhas da cidade. E damos por nós a passar pela Praça das Glórias Catalãs sem levantar os olhos. Faz parte da paisagem melancólica deste tempo final. Já não nos espanta, não o vemos. Ainda há um que pergunta:- O piço?
- Qual piço? Ah, o edifício da Companhia das Àguas.
Viva Castela
O nacionalismo catalão granjeou simpatias quando a língua catalã era proibida nas escolas e a ditadura franquista perseguia as formações nacionais. Agora o Estado Espanhol é democrático e a Catalunha, como as outras regiões, tem um Estatuto de autonomia considerável. Neste contexto, o nacionalismo é ou uma manifestação de falta solidariedade para com as regiões mais pobres ou uma ameaça velada para com os espanhóis que ali procuraram trabalho e residência. Quando a isto se junta o futebol a mistura é mortal. No domingo passado, um estádio de Barcelona foi palco de um jogo entre as selecções da Catalunha e de Euskadi, à hora em que a selecção nacional era derrotada no apuramento para o Europeu de 2007. O resultado foi um empate, como convinha. A qualidade do futebol praticado baixíssima. Mas não faltaram os cartazes em inglês proclamando que Catalunya e Euskadi are not Spain. Barcelona é uma grande cidade por causa dos catalães e dos argentinos, dos brasileiros e dos subsarianos, dos galegos e dos asturianos, dos marroquinos e dos colombianos, dos castelhanos e dos de Navarra. Quando deixa de ser reprimido o nacionalismo perde o encanto.
8
Memoria iluminada, galería donde vaga la sombra de lo que espero.
No es verdad que vendrá. No es verdad que no vendrá.
Alejandra Pizarnik
Árbol de Diana, 8
09 outubro 2006
A cidade de B.
A cidade de B., onde Enrique Vila-Matas escreveu a maior parte dos seus livros e Carvallo exerceu o seu nobre oficio, ee uma das mais bonitas cidades do mundo. Gente varia anima as ruas e faz fila nos restaurantes, museus e catedrais, bairros degradados foram transformados em zonas de grande amenidade, arquitectos rivalizaram na construcao de torres, escultores como Gerry e Lichtenstein deixaram marcas nas novas pracas. Os habitantes sao simpaticos, uma mistura curiosa de gente civilizada com grunhos nacionalistas. Curiosamente nao parecem aperceber-se de que a cidade fede. Um cheiro de podridao vem em vagas, das praias aas colinas. O efeito de paisagem, esse engano que a normalidade deslisante prega aos nossos sentidos, impede os orgulhosos habitantes de B. de se aperceberem. Passam nas estradas do litoral em bicicletas rapidas, os filhos de patins em linha, ou saem elegantes das scooters. Noos nao temos coragem de lhes dizer: a rede de esgotos rebentou, a sua cidade fede.
Nas nossas ruas aos domingos
Nas ruas da Europa, nos domingos ao entardecer, os nazis manifestam-se. Ontem festejavam a grande votacao belga. Parece que em Anvers convenceram 35% dos eleitores de que o mal da Belgica se resolvia com a receita tradicional: expulsar os emigrantes, fechar as fronteiras, reforcar as policias. A escumalha nazi actualiza a psicanalise e mete medo, com o fascinio pelos cadaveres, as armas, a cor negra, as bandeiras nacionais e os canticos. Nestes anos de colapso da civilizacao ocidental temos de nos preparar para domingos como este, gente como esta que queimaraa os nossos livros e com os seus canticos de guerra abafaraa a nossa musica.
Eurocarteiros
No Congresso dos Eurocarteiros os holandeses sao muito interessantes. Ou devia dizer, as holandesas? Apresentam temas ligados a comunicacao com os clientes. Como dar uma ma noticia, por exemplo. Aqueles casos, tao frequentes, em que uma carta se extraviou ou a pensao nao chega para os medicamentos. Ontem uma holandesa apresentou este tema sob o titulo Honesty. Hoje, uma versao mais recente chamava-se Honesty with mercy.
08 outubro 2006
Anna Politkóvskaya
Jornalista russa. Denunciou os massacres da Tchechenia perpretados pelas tropas russas e as violencias dos garduados sobre os soldados rasos do exército de Putin. Foi assassinada à porta de casa em Moscovo.
07 outubro 2006
Eurocarteiros em B.
Congresso Europeu dos Correios na cidade de B. Nos intervalos os jovens funcionarios sentam-se no chao, em grandes rodas. Efeito de uma feliz combinacao entre a informalidade da nova geracao de carteiros e da nova arquitectura da cidade de B.
06 outubro 2006
O futuro do homem era a mala da mulher
Jared Diamond, que passou anos junto das populações da Nova Guiné, disse um dia numa entrevista, que talvez uma das distinções fundamentais do "homem civilizado" fosse a quantidade de objectos que transportava consigo. Se nos sentarmosnuma esplanada e olharmos para as malas que as mulheres transportam consigo percebemos que elas estão perto de atingir o grau máximo de civilização.
04 outubro 2006
Teoria política (resumo)
A mão invisível de Adam Smith defrontou durante duzentos anos os bons selvagens de Rousseau. Juntos deram cabo disto tudo, embora não o reconheçam. Os netos de Smith ganharam a partida e continuaram cegos e insaciáveis na gulodice. Os netos de Rousseau acham que a ideologia era boa, os pais deles é que eram muito maus. Nós respiramos o ar que resta. Antes da asfixia, satisfeitos, dizemos uns para os outros: foi melhor isto do que ser um soba africano.
Amnésia da paisagem
Em Colapso, um livro que é impossível ignorar, Jared Diamond chama “amnésia da paisagem” à incapacidade que demonstramos em apreciar a mudança quando ela ocorre lentamente, através de pequenas alterações graduais. A “amnésia da paisagem” impediu os maias e os anasazis, civilizações desaparecidas da Mesoamérica e da América do Norte, de perceberem que o seu clima estava mais seco. Devido às mudanças graduais, de ano a ano, esquecemo-nos de como era a paisagem de há cinquenta anos, conta Jared Diamond a propósito de um episódio da sua infância.
A “amnésia da paisagem” é, conjuntamente com “o dilema do prisioneiro”, a atracção pelo vencedor, a incapacidade de pensar a médio ou longo prazo, alguns dos factores que explicam porque não nos apercebemos do declínio da nossa civilização ou, quando o fazemos, não somos capazes de dar respostas que o contrariem.
Sucede o mesmo nas nossas vidas. A amnésia da paisagem não nos deixou perceber o desaparecimento dos barquilhos, das pichas, dos gelados Águia, das corridas de sacos e cadeiras articuladas, do jogo do prego, das três horas para a digestão, dos furos dos chocolates Regina, da bola Nívea, da bandeira aos quadrados, dos carrinhos de choque de vara eléctrica, do cabo de mar inimigo do topless. Nunca percebemos quando desapareceram os rochedos da maré vaza, os búzios e as estrelas do mar, o equinócio, os espanhóis de Badajoz, o barco salva vidas na fronteira da natação legal, as famílias dos lavradores invisíveis que, dizia-se, alugavam as casas em Outubro, já no fim das vindimas.
Hoje somos capazes de jurar que as águas foram sempre turvas, que sempre a espuma cinzenta percorreu o litoral, e as serras eram assim, loteadas por cima da cinza dos pinhais.
03 outubro 2006
Fita métrica táctil
A distância entre as mãos na mesa 14…5…18….45. O envelope de uma carta sem resposta 20x10. O Elogio da Intolerância, de Slavoj Zizek (Relógio D’Agua) 21x 13.5. Um lenço de papel aberto 22x22. Um passo ao fim da tarde 83. A capa do CD de Mitsuko Uchida e Mark Steinberg com as Sonatas para piano e violino K377, K303, KK304, K526 de Mozart (Philips , Decca 2005) 14x12,3. A distância intercantal 3,8 . A distância interpupilar 7.8. A distância intermamilar 18. A distância intermaleolar 5.2 Os pés do banco 34 . A distância dos pés ao chão 28.
(em cms)
Vilarigues descobre o corpo do desiderato
António Vilarigues, especialista em sistemas de comunicação, assina hoje no Público (sem link disponível) um esclarecedor artigo sobre a vitalidade do desiderato.
António Vilarigues, que numa crónica nos contou que cresceu na União Soviética de Brejnev, trouxe os livros da Escola e promete-nos resumi-los em capítulos. Vilarigues é um exemplo vivo do que o sistema de ensino soviético era capaz de fazer a um rapaz bem intencionado. Trinta anos depois ainda não se apercebeu de que os líderes comunistas russos transformaram as ideias de Marx no desiderato. Primeiro uma justificação do terror estalinista, depois o suporte da ditadura corrupta de Brejnev. Com aquela argúcia e profundidade dos manuais do PCUS ele afirma-nos que “o desiderato está vivo e que vale a pena lutar por ele”.
02 outubro 2006
A fita métrica na mala de mão
Inspirado pelas respostas ao post sobre a mala de mão passei a usar mais oito acessórios. O mais entusiasmante é a fita métrica. Mas o que é que se mede exactamente?
01 outubro 2006
A Queda do Boeing 737 em Mato Grosso
Death of Chatterton, Wallis
Às dezassete horas o Boeing 737-800 da GOL, procedente de Manaus, voava no céu de Mato Grosso, a 11.000 metros de altitude, quando colidiu com um pequeno jacto e se precipitou, na vertical, em direcção ao solo, a selva tropical do Amazonas. À velocidade que levava, a sua queda terá durado sete minutos, talvez um pouco mais.
Sete minutos.
Um minuto para perceber o que acontecera, apertar, desapertar os cintos.
Um minuto para se habituar à pressão horrível nos ouvidos, à vertigem da queda, à balbúrdia dos órgãos revolvidos, ao choro das crianças, aos gritos. O passageiro do lado com a cara colada à janela parecendo rezar, um casal que se abraça, gente que se procura e cai nos corredores. A incredulidade, a revolta e a resignação, tudo depressa e misturado. Depois a escuridão, depois as crianças calam-se como se se cansassem. Depois o silêncio.
Cinco minutos para ver a vida passar, percebendo que será a última vez que aquelas imagens desfilarão na sua cabeça atormentada. Uma ideia absurda: irá com ele a face que se formar no momento da explosão. Quer então parar o desfile absurdo que o cérebro teima em convocar. A quantidade de coisas que deixou desarrumadas. De quem não se despediu convenientemente? O que ficou para dizer? Tantas dívidas. Não pôs na reciclagem os cadernos pretos. Pensa na floresta verde que o vai receber. As copas mais altas são as da árvore a que os índios chamaram piuva.
Dois minutos. Os corpos despejam-se para que os fragmentos se apresentem limpos aos carcarás e urubus. Os casais largam as mãos. A morte é uma coisa que diz respeito a cada um. Penso em ti e na piuva. Em ti. E na piuva. Em ti e na piuva. Em ti, em ti. E na piuva.