David Claerbout
Predrag Marvejevitch é um croata que hoje vive entre Paris e Roma, entre o asilo e o exílio, como ele diz. Em 2004 os nacionalistas Croatas condenaram-no à prisão. Nessa altura já tinha escrito alguns livros importantes sobre a dissidência e Breviário Mediterrâneo, um livro sem género sobre o Mediterrâneo, que Pedro Tamen traduziu e a Quetzal editou por volta de 1995.( referências :
Rui Cóias,
Miguel Marujo e
João Paulo Sousa)
A outra tradução de Predrag Marvejevitch existente entre nós, também da Quetzal, leva o nome de Epistolário Russo e reúne textos escritos entre 1972 e 1992.
AFP Denis Seniakov
Este livro reúne impressões de viagens, petições a favor de escritores soviéticos presos ou cujas obras eram interditas, e vários epitáfios: de Bukharin, Kropotkin, Gorki, Trotski, Nadeja Mandelstam e outros, uma legião infindável de perseguidos, desaparecidos, torturados, cujo nome quase foi apagado da história.
Entre eles Karlo Steiner, um comunista nascido em Viena que, vivendo em Moscovo em 1936 foi apanhado nas purgas estalinistas de 1936-1938 e passou vinte anos na Sibéria- 7 000 dias. Steiner sobreviveu, foi localizado e resgatado por intervenção de Tito após a morte de Estaline. Predrag, na altura membro da Liga dos Comunistas Jugoslavos, leu os relatos de Karlo Steiner, a quem chama um herói do nosso tempo, e fez tudo para que o livro fosse publicado na Jugoslávia. Como de facto o foi, anos antes do Arquipélago Gulag ser conhecido. Sete mil dias na Sibéria foi traduzido em muitas línguas, desconheço se terá tido tradução na nossa. Segundo Marvejevitch, o livro pôs Steiner “em comunicação com leitores de várias gerações e permitiu-lhes ter uma ideia sobre que tipo de razões levaram os jovens do tempo de entre guerras a aderir ao comunismo”. Mas é também, claramente, um depoimento sobre as características do comunismo soviético, e a monstruosidade da repressão .
Outra das figuras salientes do Epistolário é Varlam Chalamov. Já aqui falei, a propósito de uma nota sobre o Straw Dogs de John Gray, do autor de Histórias de Kolyma. Kolyma é uma zona do norte da Sibéria, próxima do Alasca. O número de vítimas entre os deportados para Kalima, até ao advento de Gorbatchov, é sujeito a debate, mas pode ter atingido três milhões de pessoas. Transportados em vagões de gado ao longo de mais de trinta dias, chegavam ao grande norte onde trabalhavam na exploração mineira em condições de escravatura e o extermínio parecia ser um objectivo tão importante como a obtenção de ouro e carvão. Histórias de Kolyma é uma obra literária, uma fonte de reflexão sobre a natureza humana.
O livro Epistolário Russo mantém algumas áreas de actualidade. A esquerda não estalinista do Leste europeu, onde existiu, não conseguiu produzir um modelo de sociedade que se demarcasse do comunismo real, nem suster a caixa de Pandora que, após a morte de Tito, soltou os demónios dos nacionalismos, os Milosevic e os Tudjmans. As oposições que se forjavam na URSS dos anos 70, baseadas num regresso ingénuo ao cristianismo, foram trituradas pelo capitalismo real. Personagens como Predrag Marvejevitch estão no exílio, não têm lugar neste mundo a preto e branco, como sucedeu ao pai, um judeu fugido da Rússia.
Simultaneamente a leitura do livro desencadeou-me uma onda de angústia e culpabilidade. Nesses anos 70 em Portugal, Óscar Lopes era para mim um modelo de investigador rigoroso e cidadão integro, um homem discreto, perseguido, afastado do ensino. Lopes visitou a URSS e publicou um livro, Convite para a URSS, na Inova, do Porto, em data incerta, mas próxima das primeiras visita que Predrag Marvejevitch refere. Nessa altura o Arquipélago Gulag começava a ser conhecido, Siniavski e Daniel estavam presos, Brodsky implorava para que o deixassem continuar a ser um escritor russo, Akhmatova e a mulher de Mandelstam eram humilhadas, Bulgakov não tinha sido publicado. As Uniões de Escritores, anfitriãs destes turistas privilegiados, eram dirigidas por funcionários preguiçosos, alcoólicos, sem talento nem prestígio junto dos colegas. Predrag Marvejevitch questionou, dirigiu queixas ou interrogações, angustiou-se, envergonhou-se. Óscar Lopes escreveu um livrinho que não guardei, mas li despreocupadamente. Já não era a Albânia em festa do baiano que os meus pais adoraram, mas, adaptada à índole pouco expansiva do Professor, mantinha os mesmos ingredientes de plena aceitação.
Karlo Steiner e Chalamov morreram pobres e sozinhos apesar das circunstâncias políticas dos seus países serem, então, muito distintas daquelas em que sofreram perseguição e injúria. Não sei como acabará o exílio de Predrag Marvejevitch, um homem que se pensava jugoslavo. Eu fui cúmplice, para sempre, dos horrores de Kolyma.
Liu Zheng
Epistolário Russo
Predrag Matvejevitch
trad: Pedro Tamen
Quetzal
Sete Mil Dias na Sibéria
Karlo Steiner
Convite para a URSS
Óscar Lopes
Ed Inova
Kolyma Stores
Varlam Shalamov
Penguin ed.
29/7/08: Ler
o texto de João Paulo Sousa em
Da Literatura sobre Danilo Kis, um amigo de Matvejevitch
Etiquetas: colaboracionismo, comunismo, gulag