28 abril 2006
Cartoon
A Igreja vai rever a sua posição. É altura do António pôr o preservativo em Ratzinger. Como um mal menor, mas no sítio.
Diversão
Enquanto o governo faz a política da direita (o desmantelamento do estado social) o presidente faz o discurso da coesão social.
O povo diverte-se nas montras dos centros comerciais. O povo é ignorante, obeso, preguiçoso e toxicodependente. Hão-de passar mil anos até que tome o comando, ou alguém por ele.
O gerente do banco já tem o palacete quase pronto. E o Parque Verde o último andar. E a ponte da Inês a inauguração pedonal. E a bebedeira intensiva dos estudantes-padres. Está tudo quase pronto.
O povo diverte-se nas montras dos centros comerciais. O povo é ignorante, obeso, preguiçoso e toxicodependente. Hão-de passar mil anos até que tome o comando, ou alguém por ele.
O gerente do banco já tem o palacete quase pronto. E o Parque Verde o último andar. E a ponte da Inês a inauguração pedonal. E a bebedeira intensiva dos estudantes-padres. Está tudo quase pronto.
27 abril 2006
Ideia do Esquecimento
Ao Pedro Picoito, sem rancor
Em 1506 no largo de S. Domingos, no Rossio, em Lisboa, durante vários dias, houve em Lisboa um massacre horrível. Homens, mulheres e crianças foram mortos das várias e horríveis maneiras com que matar se pode, porque eram judeus. No blog A Rua da Judiaria, o Nuno Guerreiro, recuperou textos sobre o acontecimento e apelou a que, no dia 18 de Abril, quinhentos anos depois de tudo ter começado, se recordasse o sucedido.
A evocação de um massacre de Lisboa deu lugar a uma surpreendente reacção. Que era uma manifestação da incurável superioridade moral dos aderentes. Uma afloramento dessa insuportável ideologia a que se chama politicamente correcto. Uma treta sem sentido. Acender uma vela só depois de um curso intensivo de história. Como a história não é um tribunal, a evocação do massacre teria que ser acompanhada de sucessivas declarações de incorrecção política, onde ficasse bem claro que não se visava a Igreja Católica, a política do rei Manuel I, a culpabilização dos nossos supostos avós, a instrumentalização das perseguições para construir a tal história a preto e branco. E sobretudo, ah sobretudo, a legitimação do estado de Israel.
Só depois de trezentos posts em que, inequivocamente, deixássemos claro que não considerávamos que as crianças mortas no ventre das mulheres, queimadas em fogueiras, atravessadas pelos ferros, mereciam mais consideração que os fanáticos que as sacrificaram, é que uma vela íntima nos seria consentida. Desde que não falássemos na Inquisição, que veio para combater as heresias e nos dar a mesma dignidade do reino vizinho. Desde que não aludíssemos ao Holocausto, que não foi a morte silenciosa de milhões de seres humanos, mas uma indústria ao serviço do sionismo. Desde que acendêssemos, ao mesmo tempo, velas por todos os perseguidos conhecidos e desconhecidos, sobretudo os esquecidos pelos malvados do politicamente correcto, dos vinhateiros do Douro à Maria da Fonte.
A minha vela ardeu silenciosa como a minha evocação. Este debate é para mim completamente desinteressante. Nenhuma forma de intimidação me vai impedir de recordar a Rafle do Vel d’Hiv,ou, como Ilse Pollack fez no rasto de Joseph Roth e de Paul Nizan, ir a Czernowitz lembrar que o Cinema Municipal foi em tempos o Templo Grande dos judeus.
Todas as razões que Pedro Picoito aqui, nos comentários ao post de 21 de Abril teve a gentileza de alinhar, são exteriores à minha intenção. São de outra ordem de preocupações. Falam de outra coisa, independentemente da sua correcção, da razão ou da falta dela.
Foi Georgio Agamben quem disse que “mais essencial que a transmissão da memória é a transmissão do esquecimento, cuja acumulação anónima cai dia a dia sobre os (nossos) ombros, inapagável e sem refúgio. E se esta acumulação é de tal modo que nem o mais perfeito dos arquivos, teria capacidade para uma pequena parcela que fosse (…)essa é, no entanto, a única herança que cada homem infalivelmente recebe.”
Ilse Pollack, Mundos de Fronteira; Giorgio Agamben, Ideia da Prosa, Livros Cotovia.
Comentários:
Sem rancor e sem muito rigor. Este post, há-de conceder-me, é uma caricatura do que eu escrevi. Risco que eu sabia inevitável e que só me surpreende não ter tido esta consequência mais cedo. Nunca coloquei as vítimas de 1506 no mesmo plano que os verdugos, nunca disse que era preciso compreendê-los, nunca afirmei que qualquer instituição estivesse acima da crítica, nunca critiquei a existência do Estado de Israel (embora critique a sua política de Talião), nunca defendi que se deixasse de comemorar o massacre, nunca afirmei que tem a mesma gravidade que as malfeitorias de Pombal, nunca pretendi branquear a Inquisição. Mas há uma frase deste post que resume tudo o que critico: aquela em que se adjectiva de "exteriores" às razões da comemoração as circunstâncias do acontecimento comemorado. Eu não acho que sejam exteriores. É isto o que nos separa. Infelizmente, é mais do que parece.
pedro picoito | 04.27.06 - 12:25 pm | #
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Exactamente Pedro, é isso que nos separa. É não perceber isso que nos separa.
Luis | Homepage | 04.27.06 - 12:32 pm | #
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Peço autorização ao Luís Januário e ao Pedro Picoito para publicar este texto e respectivos comentários no Cocanha.
Só o posso fazer amanhã porque hoje tenho um dia muito preenchido.
Creio que a questão também me toca, uma vez que foi à custa de deturpações idênticas às que estão a ser feitas ao Pedro, que eu tive uma diatribe menos usual nas vésperas desta homenagem.
Neste caso sinto-me na obrigação de defender publicamente o Pedro, porque o que aqui foi escrito na primeira página é uma total alteração de sentido das suas palavras.
zazie | Homepage | 04.27.06 - 12:40 pm | #
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De qualquer modo, obrigado pelo debate. Conheço poucos blogs (se algum) em que eu pudesse ter escrito a vintena de comentários que aqui escrevi sem ser insultado.
pedro picoito | 04.27.06 - 12:47 pm | #
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Não, mui cara Zazie, não gostaria que este debate saísse da caixa de comentários da Natureza do Mal. Primeiro porque estou muito bem acompanhado (não desfazendo), depois porque, apesar do nome, este blog mostrou ser um sítio bastante mais civilizado do que muita blogosfera, e finalmente porque não quero tornar-me um alvo tão óbvio para os profissionais de todas as boas intenções. Se o tema fosse outro, não teria qualquer problema. Tu conheces-me e sabes que não tenho medo de ser impopular, pelo contrário. Já me chamaram muita coisa e passa-me sempre ao lado. Mas ter o rótulo de anti-semita é diferente porque, como qualquer ocidental, a minha dívida para com os judeus é profundíssima. É o único insulto que me toca realmente por dentro. Não quero expor-me aos chacais que rondam por aí. Prefiro discutir massacres com gente que gosta de poesia. O que prova, diga-se de passagem, que Adorno não tinha razão ao sentenciar que depois de Auschwitz não se podia falar de poesia. Pode-se e deve-se. Sem a poesia (ou sem a história...), somos meros escravos da brutalidade dos factos. Como os judeus em Auschwitz ou no Rossio. Todos somos judeus errantes, só que alguns erram mais do que outros.
pedro picoito | 04.27.06 - 1:17 pm |
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Na mouche, Luís. Obrigado.
António | 04.27.06 - 3:23 pm | #
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"Never shall I forget that smoke. (...) Never shall I forget those flames which consumed my faith forever. Never shall I forget that nocturnal silence which deprived me, for all eternity, of the desire to live. Never shall I forget those moments which murdered my god and my soul and turned my dreams to dust. Never shall I forget these things, even if I am condemned to live as long as god himself. Never." foi ellie wiesel que escreveu isto -- li-o nas paredes de um dos museus do holocausto, o de washington, inaugurado em 1993. mas a verdade decretada é que se esquece. sempre. o ofício da memória, luís, é também esquecer.para poder ser possível viver.
f. | 04.27.06 - 4:33 pm |
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diria até que a memória é mais um mecanismo de esquecimento que de recordação
f. | 04.27.06 - 4:34 pm | #
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ok, totalmente respeitada a decisão e devo dizer que és mais sensato que eu.
obrigada ao Luís, da mesma forma. Fica aqui escondido e fica bem. Foi tudo civilizado. A minha ideia era apenas e estritamente de interesse histórico e formas como a história pode ser usada ou pode ser incómoda
zazie | 04.27.06 - 5:06 pm | #
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Aproveito para felicitar o Luís pela delicadeza ao dar voz ao "contraditório", que neste caso até me parece que tocava aspectos que o ultrapassam e cujos ecos mediáticos extravasam a dimensão de um blogue.
Deixo aqui apenas uma ideia acerca das preservações da memória.
Por um lado considero importante que não se percam nem fiquem fechadas em redomas, como se nada desse passado pudesse servir de "lição" para o presente.
Por outro, como dizia o Nietzsche, há que ter cuidado com o excesso de História- no sentido de se ficar preso a um passado que impede mudança e a libertação criadora.
Quanto ao resto, ao sentido de "superioridade genética e moral" do politicamente correcto- de quem se vê do lado certo da história, também passo.
Afinal de contas o meu lema anda mais próximo do "vive e deixa viver" que da necessidade de comprar guerras e ainda menos de "educar" quem quer que seja.
zazie | Homepage | 04.27.06 - 9:14 pm | #
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(...) De que é que falavam? Nem sempre percebi. O Pedro falava do rigor histórico, por um lado. O Luís desvalorizava a importância da correcção factual e apontava mais a relevância de se falar do que não é lembrado. O que retenho: o desabafo do Pedro para a Zazie dizendo que é aqui, num blogue de poesia que é possível falar da memória.
jpn | 04.28.06 - 12:49 am | #
26 abril 2006
Agenda
Visita guiada à Custódia do início do século XVI, atribuída a Gil Vicente. Às dezoito horas, no Museu Nacional de Arte Antiga.
As três mortes da Revolução
A Revolução acabou quando o camponês negou a enxada à cooperativa. Acabou quando os dirigentes da cooperativa lha pediram. Acabou quando a miúda viu na televisão e pensou que A Revolução tinha acabado. Nenhuma Revolução resiste a tantas mortes.
25 abril 2006
O lado errado
No Público de ontem, Jorge Varanda, reconhecido esperto em Qualidade, e pessoa que muito admiro, escreve sobre A insustentável gravidade das cirurgias do lado errado. Varanda lembra o Protocolo Universal para prevenir a cirurgia do lado errado, do procedimento errado e da pessoa errada, traduzido e divulgado a partir dos textos da Joint Commission International, no tempo em que alguns dos antigos Hospitais SA se envolveram num processo de Acreditação. O protocolo pressupõe basicamente os seguintes procedimentos:
Verificação pré operatória,
Marcação, em geral com tinta indelével, do local do corpo a operar, com a colaboração do doente.
Verificação final mesmo antes da operação começar, na presença dos membros da equipa operatória.
No meu caso, lamentavelmente, o protocolo não resultou. Relembro: A verificação pré operatória fez-se. Mas não havia negatoscópio na enfermaria e, lida contra a vidraça da janela, a TAC foi colocada ao contrário. A tinta não era indelével. O marcador indelével estava esgotado e foi substituído por um outro, que não resistiu à tonsura, ao banho da manhã operatória, à desinfecção com os produtos de antissepsia. Na verificação final não estavam presentes os elementos da verificação pré operatória. O anestesista tinha sido substituído, o cirurgião estava a lavar-se e o doente tinha feito midazolam como parte da medicação pré anestésica e estava sedado, amnésico e relaxado. Tiraram-me assim o coração e não a bola de sangue que estava do outro lado. O protocolo estava correcto. O protocolo que estabelece que deve haver negatoscópios nas enfermarias, tinta indelével, e avaliação pré operatória pela mesma equipa escalada para a cirurgia é que não foi respeitado. Ou talvez eu fosse o doente errado.
Otelo quê?
No 25 de Abri de 74 Otelo não sabia quem era Álvaro Cunhal (DN de hoje). No 25 de Abril de 74 alguém sabia quem era Otelo Saraiva de Carvalho?
25 de Abril
Hoje, nas ruas, nos parques, nas praças, mais uma vez vi: o 25 de Abril está (mais ou menos) vivo nos nossos (velhos) corações.
24 abril 2006
21 abril 2006
Mortos correctamente
Não eram dominicanos, eram beneditinos. Não foi no domingo de Páscoa, foi no de Pascoela.
Luta de titãs na Liga de Honra
Eu, Manuel Mesquita, cidadão português, empresário em nome individual, eu se fosse o Prado Coelho com o vidão que ele teve (e tem), as pessoas que conheceu (e continua a conhecer e a acumular), o mundo que lhe passou pelas mãos (e continua a passar), as mulheres (sim, as mulheres!), os homens, o pai, os livros do pai, as capelinhas a que pertenceu, as que lidera, os interesses que gere, as amizades que preserva, rega e dão frutos... Ah, sem dúvida que se eu fosse o Prado Coelho estava mesmo cheio de medo da falta de causas até porque se há coisa que qualquer um reconhece no Prado Coelho são as causas. Quais causas, quais carapuças! O Prado Coelho é um homem com influência, nunca a deixou de ter, trabalhou muito para a conquistar e continuará a tê-la na proporção do estatuto que tem e terá. Não é em vão que elogia Benard da Costa. Lá chegará! O que aqui, neste caso, causa dano é a inexistência de alternativas ao poder reconhecido e notório de Prado Coelho, assim como das panelinhas críticas do Expresso, do Dn, do Público. Infelizmente este meio não há meio de enriquecer. E infelizmente não é o George quem deixará de replicar o que todos fazem em causa própria, facto que se nota quando se pega no livro da capa verde e no da capa amarela. Se alguém se der ao trabalho de sublinhar (seguindo-lhe as pegadas metodológicas) a quantidade de vezes em que George fala de George ficará esclarecido.
Rosa C. e Manuel Mesquita
Publicado nos comentários e aqui transcrito para maior visibilidade.
Fenimore em Veneza
Durante o Inverno, durante os dez últimos anos da sua vida errante, Fenimore esperou por Henry James. Ele emocionava-se com os personagens das peças que escrevia para os teatros de Londres e com os rapazes que lhe pediam opinião sobre os manuscritos. Tinha a doença que a mãe de Flaubert diagnosticara ao filho: no lugar do coração estava uma máquina de produção literária.
(ver Autor, Autor de David Lodge e The Master de Colm Toibin)
20 abril 2006
19 abril 2006
O massacre de 1506: hoje no Rossio
Imaginar os mortos e lembrá-los. Os cristãos-novos. Expulsos da Espanha católica. Gente sem pátria e sem defesa, vítimas fáceis em tempo de seca, doença, abandono da cidade pelos mais abastados. Lembrar o medo, a casa invadida, a violência e a excitação dos violentos. Imaginar o sofrimento das facas, das lanças, dos paus, das chamas. E lembrar os frades beneditinos, a excitação das multidões, uma mulher barbuda que se indigna, os gritos dos homens sem trabalho e sem alcoól , o saque, as mãos para sempre ensanguentadas. E saber que não somos melhores que eles, estes inocentes e estes verdugos embrutecidos pela miséria e por padres ignorantes. Que há pouco tempo, na Europa, gente como nós, matava e morria, torturava e era torturada, no meio de uma crueldade planificada e tecnologicamente avançada. Lembrar tudo, e um deles em particular, um homem, uma mulher ou uma criança em particular.
(Hoje, uma vela no Rossio; no Largo de S. Domingos às 19 H)
18 abril 2006
A vingança do bebé nu
EPC chamou hoje alforreca a JP George. EPC fôra, há tempos, objecto de algumas referências críticas de JP George. Preferiu calar-se. Esperar. E quando pôde, escondendo do leitor o conflito de interesses, aproveitou a coluna infame para insultar. Com a falta de causas é de esperar tudo de EPC.
Amo-te
Eu também
Não é uma resposta
Inteiramente correcta.
Nem um beijo.
Nem um beijo bêbedo.
Nem um suspiro.
Nem o espanto.
Muito menos
O silêncio.
Nem a dor que fura o esterno
E paralisa
E te deixa ali pregad(a)
Nas palavras.
Uma valsa com mil tempos
O primeiro perdeu-se.
Foi a guerra, a montanha,
o barco do aborto,
o pacote Vila -Matas a vinte euros na assírio.
Diz os jardins, as livrarias, diz.
A emocionada escrevente
naufragou no canal.
No tempo do verão quente
um barco no Faial.
Um imbecil trabalha nos correios
ouve rádio, faz a alucinada
viajem da Europa.
A estrela cozida na pele,
foste ficando só,
as crenças, uma ganga sem préstimo
nem cor.
Vandalizaram as bibliotecas,
incendiaram carros,
insultaram,
e levavam as tuas bandeiras.
Barra, horizont, lençol
- Curto tempo de mar.
Bastam estradas de pó,
a rocha ferida de onde jorra
um sangue que conheces.
Respirar o mesmo veneno,
a mesma hemoptise, a asfixia,
o mesmo silêncio aceso
neste tempo de morte.
17 abril 2006
A Cidade Vaga de Miguel Cardina
Há um novo blog na cidade. O neto do Olho de Girino. Começa assim:
( Foi igualmente adicionado o link de Defender o Quadrado)
Bati. A senha, gritaram. Remexi os bolsos, o bordo das meias, o resto. Nada. Empurrei a porta entreaberta. Lá dentro, o eco.
( Foi igualmente adicionado o link de Defender o Quadrado)
16 abril 2006
Tolerância Tridimensional
Este texto foi escrito quando, depois da publicação de Os Versículos Satânicos por Salman Rushdie, os hierarcas iraniano apelaram ao seu assassinato e prometeram o paraíso aos executores. Rushdie tinha escrito livros fundamentais para a compreensão da experiência dos emigrantes das ex-colónias na Metrópole (Vergonha), sobre a independência da India e do Paquistão (Os Filhos da Meia Noite). Mas geralmente, os que têm o poder sobre as vidas dos outros, são ignorantes, e não se detêm em pormenores. O que o outro realmente escreveu, ou desenhou, ou filmou, ou disse, parece ser o que menos interessa, no grande debate civilizacional. Essa cegueira para os factos não atinge apenas os censores. Num recente debate sobre os cartoons dinamarqueses, num anfiteatro da Universidade de Coimbra, José Pacheco Pereira, um dos intervenientes, quis mostrar, através da análise do seu modo de produção, que os cartoons se inscreviam na tradição da sátira política democrática, de Plantu a António. Quando pensou em projectar os objectos de análise, sentiu constrangimentos. E, ninguém, da plateia de luzes, se interrogou por que diabo estavam ali a discutir objectos que não tinham coragem de projectar.
Este texto foi referido por Desidério Murcho num Mil Folhas recente. Faz parte de uma colectânea de textos sobre a natureza humana, o Estado, a liberdade, os direitos, a justiça entre os grupos, o progresso e a civilização. Foi editado por Michael Rosen & Jonathan Wolff na colecção Oxford Readers da Oxford University Press, em 1999. Não se encontra em nenhuma das livrarias de Coimbra. Não se encontra em nenhuma das livrarias da Baixa de Coimbra porque estão moribundas, como a Baixa de Coimbra, à espera da cobertura delirante de um autarca. Não se encontra na livraria da Praça, que nem os livros da editora de que é propriedade (Almedina) divulga. Não se encontrará na FNAC de Coimbra, porque a FNAC de Coimbra é para Coimbra, e os estudos de mercado ensinaram aos mercadores que bacalhau devem trazer: a área de livros será muito inferior à de electrodomésticos.
O texto foi lido e traduzido por algumas pessoas que, no debate, tiveram uma atitude de tolerância do primeiro grau. Isto é , preferiram manter-se silenciosas para não ferir as convicções religiosas da maioria dos elementos da mesa e das meninas de lenço palestiniano. Mas que ficaram em dívida para consigo mesmas. Façam bom proveito. E não se esqueçam que já é demasiado tarde.
Apelar ao outro para a tolerância significa invocar alguns valores em comum. Quando o fazemos pensamos que algo como o conhecimento, a liberdade, a segurança ou até a simples possibilidade de uma vida decente para todos, estarão ameaçadas a menos que encontremos um modus vivendi. Mas não podemos fazer esse apelo se não tivermos interesses em comum, ou se os nossos interesses forem diferentemente coloridos por fés e perspectivas rivais. Se alguém está convencido que a vida, literalmente, não vale a pena ser vivida, que não vale a pena procurar a verdade ou que não vale a pena exercer a liberdade na companhia do infiel, não há base para discussão e, mesmo que tenhamos essa base de interesses em comum, isso leva-nos apenas a meio caminho. Não se pode escapar ao facto de as vidas erigidas sobre esta base comum poderem diferir na fé, no sentido e aspirações.
A tolerância, o respeito mútuo, viver e deixar viver podem ser concebidos de diferentes modos. Numa perspectiva unidimensional a tolerância implica deixar as pessoas sozinhas com a sua fé e sensibilidades. Devemos ter cuidado para não dizer nada que critique ou fira as convicções religiosas de alguém.
Mas a fé não pode ser selada desta maneira. As religiões mundiais têm pretensões rivais quanto à natureza e à essência de deus e quanto ao sentido da vida humana. O respeito mútuo não pode requerer que se prescinda da crítica, quanto mais não seja porque a crítica de outras seitas está implícita nas afirmações de qualquer credo particular.
Um segundo tipo de tolerância aceita esta ideia e acrescenta-lhe uma dimensão de debate. A crítica e a discussão entre fés rivais são aceitáveis e incontornáveis. Mas esta tolerância bidimensional insiste em que ela deve ser séria, honesta e respeitosa no seu carácter. Tenho que ser sensível ao papel que estas crenças desempenham na vida de alguém e não lidar com elas de forma ligeira, sarcástica ou insultuosa. Segundo este modelo os Versículos Satânicos correram mal, não por dizerem coisas contra o Islão, mas pelo tom ofensivo que adoptaram. A tolerância bidimensional tenta combinar os valores da busca da verdade com o princípio do respeito. Esta tolerância deixa espaço para o debate mas afasta o escárnio, a ofensa e o insulto. Acima de tudo, permite-nos compreender noções como sacrilégio e blasfémia, não como ideais internos a uma religião, mas como princípios que enformam o que devemos uns aos outros enquanto seres humanos no respeito pelas convicções mais profundas.
Mal dizemos isto apercebemo-nos da falácia desta tolerância bidimensional. Porque o que é sério e o que é ofensivo, o que é sóbrio e o que é sátira, não são conceitos neutros. Fazem parte do pacote e diferentes religiões definem-nas de formas diferentes. Em algumas tradições rabínicas o debate teológico processa-se através do conto de anedotas. Há seitas muçulmanas que consideram uma afronta insuportável a participação de uma mulher numa discussão religiosa, independentemente da sobriedade do seu tom.
O modo como as disputas religiosas devem ser conduzidas é, em si mesmo, um problema sobre o qual os pontos de vista religiosos se dividem. Esta questão está imbuída da ideia de que a fé toca nas regiões mais profundas da verdade, do conhecimento e dos valores. Não há nada necessariamente privilegiado nas normas de civilidade a que chamamos de seriedade moral e, de facto, pedir à controvérsia religiosa que observe as mesmas regras de um debate ponderado num rotary club do Midwest pode ser o pior , não o melhor, de ambos os mundos. Da mesma forma é pretensioso pensar que há um modo de governar uma sociedade multicultural sem perturbação nem ofensa. Quando Stuart Mill apresentou a sua tese a favor da livre discussão, a perturbação da complacência e o abanão na fé eram valores positivos no debate. É difícil imaginar como a liberdade de expressão poderia ter avançado se se tivesse mantido psicologicamente inócua. Seja como for, algumas pessoas agarram-se às suas crenças de forma tão devota, que mesmo a crítica mais sóbria e respeitadora lhes parece um insulto mortal à sua personalidade. Alguns são tão devotos que a simples presença do ímpio ultrapassa o que são capazes de suportar.
Se as questões são tão importantes como parecem, então, o desconforto perante as respostas dos outros é parte do preço a pagar por temos colocado essas mesmas questões. Não se pode invocar a sensibilidade quando a parada está já tão alta.
Os compromissos religiosos têm conteúdo, levantam questões importantes, não apenas para um crente, mas, pelo menos potencialmente, para toda a gente. As questões de saber se há um deus, como é que ele é, o que quer de nós, se existe o Mal - estas questões importam. O estilo de resposta de uma pessoa, ou mesmo de um milhão de crentes, não pode impedir os outros de colocar as questões no estilo que lhes parecer mais apropriado.
Somos então levados à tolerância tridimensional. As pessoas e os povos devem deixar-se uns aos outros livres para colocarem as questões da religião e da filosofia da melhor forma e com todos os recursos que tiverem à sua disposição. No mundo contemporâneo isto pode significar que toda a panóplia da técnica literária- a fantasia, a ironia, a poesia, os jogos de palavras, o malabarismo das ideias - é usada naquilo que muitos consideram o sagrado, o imaculado, o dogma. Como poderia ser de outro modo? Ou as questões são importantes, ou não são. Se o são, nós sabemos que elas põem à prova os nossos recursos psicológicos e intelectuais. Conduzem-nos aos limites da disputa linear e para além deles. Porque dizem precisamente respeito aos limites, ao que é assustador, perturbador, impensável. As religiões do mundo consagram os seus símbolos, fazem as suas afirmações, contam as suas histórias e tudo isto é lançado no mundo como propriedade pública, parte da mobília cultural e psicológica que não podemos adorar em bicos dos pés ou pegar com pinças cautelosas. No nosso desejo de dar sentido à existência, temos que fazer o que podemos com as questões e as respostas que foram lançadas sobre nós.
É dito por vezes que o humanismo secular é também uma religião como as outras. A ponta de verdade desta afirmação consiste em que as questões levantadas pelas religiões são-no para todos. Mas se esse é o caso, as grandes religiões não podem estabelecer os termos nos quais estas questões devem ser tratadas. Por exemplo, todos andamos à procura de uma compreensão de nós mesmos, dos nossos corpos e da experiência intensa da nossa sexualidade. Encontramos, nas nossas culturas, lendas acerca de homens puros e de santos como Maomé e até a afirmação de que deus assumiu forma, carne e sangue humanos, na pessoa de Jesus Cristo. O dogma da encarnação, em si mesmo, não é no entanto uma ideia óbvia, e requer alguma crença o dizer-se que podemos pensar sobre esta questão sem que isto mexa, por exemplo, na questão da sexualidade de Cristo. A nossa visão do corpo está tão ligada ao que nos ensinaram sobre a santidade que não podemos proibir a associação do sagrado e da sexualidade na nossa tentativa de lidar connosco mesmos. Alguns podem ser capazes de separar as duas questões, mas a sua devoção não pode responder à questão de como os outros devem lidar com esta experiência.
Pela mesma ordem de ideias todos buscamos uma compreensão do Mal no mundo. Há a doença, os grandes crimes, a morte das crianças e os céus estão silenciosos e não parece haver um sentido nestas coisas. Sabemos que as grandes religiões tratam estas questões de forma tímida e indirecta, com uma pletora de imagens e de histórias, que em alguns casos, usados noutro contexto e se nos esquecêssemos que foram usadas nos livros sagrados, seriam elas próprias blasfematórias. Uma vez mais o respeito pela sensibilidade de alguns não pode ser usado, em consciência, para limitar os meios disponíveis por outros para lidar com o problema do Mal. É já demasiado tarde para isso.
As coisas que parecem sagradas para alguns, são, nas mãos de outros, objecto de brincadeira, riso, tomadas de forma ligeira, objecto de fantasia, cantadas, misturadas com todo o tipo de coisas, sonhadas ao contrário, abjuradas. Isto é o que acontece nos Versículos Satânicos. Não se trata de uma disputa teológica solene e não deve ser defendido como tal. Também não deve ser defendido como uma obra de arte, que apenas ocasionalmente inclui algumas passagens lamentáveis. Como toda a literatura contemporânea, é uma forma de procurar dar sentido à experiência humana. Esta obra toca em alguns problemas levantados pelo Islão e invoca imagens e narrativas com as quais o Islão coloriu o mundo de Salman Rushdie. Fá-lo de forma divertida e caleidoscópica, mas isto não significa que os temas sejam menos importantes para o autor do que para os milhões de crentes.
Pode ser demasiado tarde para defender a liberdade de Salman Rushdie do terror e da ameaça de assassínio, mas se apelarmos em defesa de outros como ele no mundo, deve ser nesta elevada perspectiva- que os grandes temas da religião são demasiado importantes para serem enclausurados pela sensibilidade dos que se contam como devotos. Não há outra forma de vivermos juntos e de respeitar o corpo-a- corpo com a vida que cada um de nós trava.
Jeremy Waldrom , sobre The Satanic Verses (publicado originalmente no Times Literary Supplement , 10 a 16 de março de 1989 e incluído em Political Thought. Tradução parcial. Sublinhados nossos, esperançados em que, ao menos eles, sejam lidos. Um agradecimento especial ao Fernando Gouveia, do Não tenho vida para isto.)
13 abril 2006
A cópula, os espelhos
O problema dos quartos espelhados, Filipe, não é a multiplicação dos homens, nem a sua natureza frágil e generosa. O problema é que,se estiveres atento, a mulher muda de espelho para espelho.
Programa de fim-de-semana
Parece que foram todos para férias. Todos e todas e os outros. Podemos escrever à vontade. Sem gramática, nem prontuário. Nem bom senso. A escrevente emocionada escreve com a emoção. Nós com o folar, as cinzas onde voltaram a queimar o Judas, restos do cordeiro pascal nos dentes, as mãos sujas de barro,a toalha de vinho.
O grupo nihilista que destruiu a Ecole
Está bem, Afonso. A senhora é autista, tu saberás melhor que muitos. Agora lê com atenção, até ao fim, a descrição dos acontecimentos. Como é que caracterizavas o grupo? O que é que aconteceu? O que é que está a acontecer? Despacha lá a coisa.
Adequação sociológica
Dois terços dos deputados do PSD e metade dos do PS faltaram ao trabalho parlamentar (cenas do trabalho no Parlamento).
Ontem, aqui, na reunião dos Correios, não foi diferente. O CDS-PP pôde, assim, ter a sua merecida maioria pascal. O país, deixem-se de hipocrisias, não é diferente do Parlamento.
Ontem, aqui, na reunião dos Correios, não foi diferente. O CDS-PP pôde, assim, ter a sua merecida maioria pascal. O país, deixem-se de hipocrisias, não é diferente do Parlamento.
12 abril 2006
Bebelplatz
Meia -noite de sábado em Berlin, na Unter den Linden. À luz misteriosa dos focos, incrustados no chão ou em pilares, desvelam-se os novos edifícios. Há muita gente nas ruas, diluída nos grandes espaços. De súbito sou ultrapassado por um grupo numeroso de estudantes ingleses.
Procuravamos a Bebelplatz, onde Misha Ulmann, no final dos anos 80, incluiu uma evocação da noite da Queima dos Livros pelos nazis. A praça estava belíssima : A ocidente, agora limpa, a fachada da Universidade Humboldt. A Staatsoper a este, e ao fundo, se não me engano, esse estranho edifício barroco a que chamam "Kommode", a Alte Bibliotek. Do interior da praça, perto do centro, jorra um feixe de luz. Uma das grandes lajes que cobrem o chão foi substituída por um vidro espesso. Em baixo há um poço de luz. Quando nos acostumamos, vemos que o fundo do poço é uma cela forrada a estantes. Vazias. Brancas. Gravada com discrição no chão da praça está uma frase de Heine, que não recordo, e outra lembrando que na noite de 13 de Maio de 1933 os estudantes da Universidade Humboldt queimaram, num auto-de-fé, os livros de filósofos, publicistas, investigadores, cientistas que não estavam de acordo com as suas ideias.
Na penumbra da Bebelplatz os jovens ingleses formaram dois grupos e sentaram-se no chão. De mochila, quase sem se distinguir dos outros pela idade, um deles é ouvido em silêncio. Atraso o passo e ouço-o falar nos "perigos de erigir o outro em ser demoníaco".
Naquela noite, na nova Berlim cosmopolita – a cidade mais fascinante da velha Europa, os ingleses, netos dos jovens que bombardearam e foram bombardeados, mataram e morreram, estão a reabilitar a noite da Queima dos Livros.
Aparentemente passou muito tempo. Talvez agora já ninguém saiba quem foi Auguste Bebel, nem isso seja importante. Bebel é um nome de praça. Bebelplatz. Junto à Kommode, o monumento de Misha Ulmann é um fio de luz nas sombras. Volto sobre os meus passos para me cegar de novo com a luz das estantes vazias e à medida que me aproximo, vem-me, como uma dor que não chega a ferir, uma frase envolta numa recordação: anos sessenta, a revista Vértice, que os meus pais assinam, traz sempre uma frase na contracapa: "Todos os livros queimados iluminaram o mundo."
11 abril 2006
Como estou
O que é feito de mim? Que tenho feito? Estou bem? Onde estou? Como tenho andado? Ninguém espera respostas sérias a estas perguntas cruéis.
Semana Santa
Esta noite nos Prós e Contras (rtp 1) discutia-se o declínio da Europa. Depressa se percebeu que havia um candidato de peso. Um padre especialista em santidade e no reconhecimento dos milagres, autor de um livro que alguns seminaristas da assistência mostravam às câmaras e que está destinado a ser um sucesso na Xis e nas dioceses. O padre José Saraiva Martins é um alto funcionário da Cúria Romana, cardeal dos pastorinhos, e, trazia consigo uma claque de rapazes e raparigas que tinham de comum a castidade, a roupa em cores pastel que a Prada agora produz para os jovens devotos de Sua Santidade e um êxtase semi-orgástico (provavelmente aquilo que um celebrado poeta académico chamou de orgasmo pequenino) de cada vez que ele exaltava a superioridade do matrimónio. Ao lado do padre Martins estava César das Neves, o João, que tem a virtude de dizer em troglodita o que o padre murmura na língua de madeira dos ministros do Vaticano. Na outra margem, envoltos em chamas, estavam dois investigadores do Instituto de Ciências Sociais (Barreto e Bonifácio). A teoria da decadência da Europa resume-se mais ou menos assim: a Europa perdeu a identidade, os valores identitários. Vista de fora, pelo Islamismo, pelos pagãos, é um mundo risível, uma espécie de Sodoma gerida por políticos que não têm coragem de pôr o Cristianismo na Constituição e proíbem os símbolos religiosos ( - A mim, se me tirassem este crucifixo, era capaz de me tornar num terrorista- ameaçou um jovem da assistência, dono de um biótipo curioso, que misturava os elementos clean já descritos nos colegas com outros de forcado lusitano). Com o tempo de antena a exaurir-se, o padre da Cúria despejou a mensagem que trazia: - O casamento não pode ser posto ao mesmo nível das uniões de facto. E quando Barreto e Bonifácio estrebucharam, o padre, sempre a sorrir em lume brando, perguntou: - A senhora é a favor das uniões homólogas? –Acha que os homossexuais devem poder adoptar crianças? Bonifácio, do meio das chamas, balbuciou: - Não, sou contra. E, logo ali, o padre a absolveu, e todos, católicos, muçulmanos, hindus convertidos, rezaram a Jesus, Deus e filho de Deus, que no Corão, como disse o sheik, vem citado cerca de vinte e três vezes contra apenas três do Profeta Maomé e, às mãos dos judeus, está quase a morrer por todos nós, como o Zeffireli mostra aos que porventura ainda duvidem.
10 abril 2006
08 abril 2006
Aleluia
Não deixe pão, por favor. É sábado e vamos à aldeia. Hoje nasceu a menina. Veio de olhos fechados e esteve assim toda a Páscoa. As pessoas perguntavam: - De que cor são os olhos da menina? – Se está acordada porque não abre os olhos? Hoje, para teu alívio, a mulher escrevente, a mulher emocionada, lá cumpriu a sua obrigação semanal. Na aldeia mataram os cabritos para os primos da cidade e eles comem devagar, com medo da noite. – Come José, que há muito cabrito, prova-me este queijo, e que dizes ao vinho? O corpo chegou de Angola. As mulheres choraram, habituadas à morte dos homens. Este era um rapaz e nem estava doente. - Não podermos vê-lo. - Como é que vamos habituar-nos à ideia?
- Aproveita para dormir. Ou vai pôr as chagas ao sol a ver se cicatrizam. Diz que o sol tudo cura, tudo fecha. Mas tem de haver algum sangue debaixo da pele. Tem de haver pele. - Toma cuidado com as moscas. Enxota as moscas, que trazem a infecção nas patas.
- Aproveita para dormir. Ou vai pôr as chagas ao sol a ver se cicatrizam. Diz que o sol tudo cura, tudo fecha. Mas tem de haver algum sangue debaixo da pele. Tem de haver pele. - Toma cuidado com as moscas. Enxota as moscas, que trazem a infecção nas patas.
Análise dos movimentos sociais
A comitiva oficial de Sócrates a Angola tinha 72 homens de negócios e uma mulher.
A Ecole foi vandalizada durante quatro dias por cinquenta e um homens e vinte e quatro mulheres.
A Ecole foi vandalizada durante quatro dias por cinquenta e um homens e vinte e quatro mulheres.
A Ecole vandalizada
A Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, uma das Escolas francesas "que nos últimos 50 anos mais tem contribuido para o diálogo entre os povos, o conhecimento das culturas não europeias e o reconhecimento dos seus valores" foi ocupada e vandalizada. Ler aqui um relato. Hoje num jornal português, uma carta de vinte investigadores portugueses, entre os quais André Belo, Rui Tavares, José Mattoso e Ana Isabel Buescu, repudia o facto.No edifício está instalado o Centre d'Etudes Portugaises.
Depois do Colóquio
Eu estava atento à sua alteridade. Sabia que os direitos que eu defendia eram direitos de chegada. Porém, sendo ele um homem de partida, não era capaz de ver o outro em mim. Tomou-me por um imperialista, um verdugo, um arrogante eurocêntrico. Cortou-me a cabeça. Ficou-me a consolação da minha decapitação não ser nada na longa história das decapitações que a minha civilização infringiu a outros povos e de que, compreensivos, os meus amigos não iriam sobrevalorizar o acontecimento.
07 abril 2006
Com foto
Este blog devia ser sobre nada. Um sítio onde nada acontecesse, de uma forma quase imperceptível, como a chegada do ácaro sarcopto à pele, o último suspiro de um velho no asilo, um ruído dos canos, a febre a subir, as lágrimas no banho, a apoptose, o sertão, a espera do abutre, a biblioteca central da universidade, o auditório do Teatro Camões, as ruas da Baixa de Coimbra depois do fecho do comércio.
Um sítio que parecesse um cão, mas fosse uma rata africana. Um cão pardo e famélico, de focinho afilado como os deuses egípcios, silencioso, furtivo, ensanguentado. Uma rata africana.
Título: Pergunta ao espelho
Foto: PC
Um sítio que parecesse um cão, mas fosse uma rata africana. Um cão pardo e famélico, de focinho afilado como os deuses egípcios, silencioso, furtivo, ensanguentado. Uma rata africana.
Título: Pergunta ao espelho
Foto: PC
O Mulherio Felisminado
Na minha pesquisa sobre as quotas de paridade fui ter à engenharia social. Parece que, tendo a evolução destinado papéis sociais diferentes aos dois sexos principais, as mulheres se encontrariam subrepresentadas nas áreas do poder político. Como a marcha da evolução é lenta e imperscrutável, haveria de proceder a uma engenharia social, através de leis correctoras de discriminação positiva, que levassem a dona Matilde ao Parlamento, mas também a Maria Antónia e a Zita e a Rosário. Os defensores desta teoria não têm levado até ao fim as suas implicações. Os opositores, como o hipócrita que pensa que é director do Público, quer convencer-nos que engenharia social foram só os estados totalitários do século XX, escondendo com a batina o processo de engenharia social em curso, o mesmo que lhe faz pensar que é director do Público.
(sobre este tema, com maior proveito, o melhor é estar atento à Lida Insana. )
Questão ao PC
PC, gostei da tua defesa do Parque Verde. Mas estavas a falar do Parque Verde Celestial ou daquela coisa entre a Bascol e o Keimódromo?
06 abril 2006
Um cão que sabe
Tiago, o meu cão sabe que vai morrer. Tal como sabia do cio das cadelas, do cansaço dos que se atrasavam nas caminhadas, do medo das crianças, das más notícias dos jornais, do fogo nos pinhais, do sabor das mulheres. Hoje, sem mistério, sabe que vai morrer.
O mulherio felisminado
Obrigado Lutz. Grande texto. Continuo sem perceber. Hoje, um jornal atribuía a Teresa Beleza o argumento de que as quotas se destinavam a acelerar a história. A História. A dona Matilde no Parlamento será, assim, uma espécie de antevisão do fim-da-história.
Agenda
Não esquecer, amanhã, sexta-feira, às 18H, na Fac. Economia (Coimbra), as civilizações difíceis.
Parque Verde
Uma ponte que liga nada a coisa nenhuma. Os restos mortais de um urso decepado. O atoleiro da erva. O pavilhão deserto. A sombra desembargada da construção civil. Um casal que se beija sem tesão. O pavimento que prende os patins em linha. A loja dos gelados que faliu. Um milhafre que desenha um círculo sobre os passageiros da linha da Lousã. Uma mulher que olha o poente. Um exibicionista que espera o crepúsculo.
05 abril 2006
O Benfica não será o ópio do povo
O Benfica perdeu. O declínio da pátria é imparável. Acabou o estado de graça de Cavaco. Sócrates que se cuide.
A derrota do costume
A derrota do Benfica em Camp Nou deve ser vista como um aspecto da subordinação da nação Portuguesa à Coroa de Castela (pese embora a vassalagem ter sido prestada à Autonomia catalã). O relacionamento com os holandeses, a utilização intensiva dos colonizados sul americanos e africanos, a actuação facciosa de uma arbitragem da Mitteleurope, são aspectos secundários.
V de Vendetta
Uma distopia do século XXI em homenagem à banda desenhada de Alan Moore and David Lloyd: depois da Guerra da América um partido político de extrema – direita, homofóbico e terrorista, toma o poder no Reino Unido. Um dos momentos fundamentais da sua ascensão foi a epidemia de St Mary, uma espécie de incêndio do Reichstag virulógico, que consagrou a aliança entre os Laboratórios farmacêuticos e o fascismo. A esquerda, acusada de ter provocado a epidemia, é exterminada pelas milícias fascistas e a população fragilizada entrega as liberdades à custódia de um déspota totalitário. A revolta é encabeçada por um homem que tem como referência Guy Fawkes, o incendiário frustrado das Houses of Parliament, e como herói o Conde de Monte Cristo.
Às vezes interessante (ver as referências para que remete), às vezes imbecil, sobretudo pela realização de James McTeigue que não consegue decidir-se sobre que tipo de filme está a conduzir.
Interpretação excelente de Stephen Rea (The Crying Game, Michael Collins, The end of the affair)e de Natalie Portman, sem direcção. E boa banda sonora onde sobressai I Found a reason (Cat Powers) (3/5).
Pedido
A Natureza do Mal (facção Luís) agradece o envio de razões que suportem a bondade da medida que instaurou uma quota de paridade para as listas de deputados concorrentes ao Parlamento.
As respostas podem ser enviadas para os comentários ou para o mail da Natureza do Mal.
As respostas podem ser enviadas para os comentários ou para o mail da Natureza do Mal.
Camas
Durmo com a Isabel. Quase não durmo porque estar na cama contra a Isabel, cheirar-lhe o corpo, tocar-lhe no cabelo que é liso e preto, agarrar-lhe os braços, colar-me às suas costas, ocupa as minhas noites. A mamã diz que a Isabel rouba toalhas e lençóis e que vai mandá-la embora, para casa da irmã, na cidade. É mentira. São os cães que levam os lençóis. Vi-os no fundo do quintal a disputar os farrapos. Um dos cães tinha o focinho afilado e quando abria a boca via-lhe a dupla fieira de dentes afiados, que são a marca distintiva das ratas africanas, especializadas em devorar os gatos e rasgar as toalhas das famílias condenadas. Isabel dorme no meu quarto, na minha cama. No quarto ao lado esteve a minha avó, vinte anos acamada desde que Perón voltou e a Virgem Maria apareceu sobre um depósito de água de Rosário da Fronteira, a uma rapariga tão perturbada que nunca foi capaz de contar decentemente os pormenores da aparição. Agora a mamã expulsou o Gregório do quarto, alegando que ele largava a tinta do cabelo na almofada e que está calor demasiado para partilhar a cama e o vinho. Um dia a mamã vai deixar de se levantar e esse dia já chegou.
(La Ciénaga, Lucretia Martel, Argentina 2001))
Finalmente
Vereadores socialistas da Câmara de Coimbra preocupados com o atraso das obras na vivenda do gestor da Finibanco exigem que o presidente da ARS cumpra calendarização prometida.
(dos jornais)
(dos jornais)
dois
Os deputados europeus entrevistados na dois sobre a gripe das aves. Enrugados como os antigos combatentes de Bilal, caquécticos, vestidos na Redoute como se tivessem trocado as encomendas, falam do H5N1, das mutações, das explorações confinadas, das vacinas, das resistências ao antiviral, das migrações das aves. Riem-se e não se percebe se se riem deles mesmos ou de nós.
Sicnotícias
Clara de Sousa recicla o Fragateiro, entre gravatas de cor pastel, decotes, e uma passadeira de cristal. Desinteressante (3/10).
04 abril 2006
Uma Mulher do Mal: Lucretia Martel
No cerro há um boi que agoniza e os canos das espingardas apontam muito baixo. Em Rosário de la Frontera, na província nortenha de Salta, na Argentina. Na casa grande, as camas estão desfeitas e nunca se dorme. O amor e o desejo e a ternura estão suspensos. A Virgem aparece a uma deficiente, sobre um depósito de água, num cenário urbano degradado, uma epifania para os noticiários de televisão, entre o anúncio de arcas frigoríficas, com o mesmo volume, a mesma convicção. Os índios não são de confiança, batem traiçoeiramente, dormem com os cães, roubam as toalhas, cozinham o peixe sujo do lodo das barragens. Um cão comeu os gatos, tem uma dupla fiada de dentes e era afinal uma rata africana. Levem os cães daqui. Virgem Maria, mãe de misericórdia, vida , doçura e esperança nossa. Os homens velhos pintam os cabelos e são mandados para o quarto dos fundos. Podíamos ir à Bolívia, mas as estradas são más e não temos os papéis que pedem na fronteira. Bebe-se muito. Um refresco, põe umas pedras de gelo nessa taça de vinho. Ninguém atende os telefones. As pessoas não foram feitas para este clima. As paredes perderam a cor, a natureza invade a piscina, a casa e os corpos. A piscina tem uma água pútrida, o acidente espreita em todo o lado: uma escada, uma panela a arder, os vidros de uma garrafa, os micróbios, um tiro perdido, um índio ciumento no baile. Ninguém dorme. Os velhos precisam de alcoól, os novos de uma carícia que não há. Com os olhos abertos um miúdo parou de respirar. O outro tem meia cara destruída. Não assustes o teu irmão, rapariga. Não te vás embora, Isabel, só te tenho a ti, Isabel, a minha mãe vai-se enfiar na cama como a minha avó. No cerro, ao longe, soam os estampidos das espingardas. Não pára de chover. Tenho tanto medo, quando os miúdos vão para o mato.
La Ciénaga, 2001; La niña santa, 2004; duplo DVD, distribuição Atalante
03 abril 2006
Quotas
Tenho lido algumas opiniões sobre as quotas das mulheres no Parlamento. Devo dizer que simpatizei com a medida quando Zapatero a tomou. Mas Zapatero constituíu governo com mulheres em metade dos ministérios. Quase todas inteligentes, elegantes e espanholas. Aqui, a medida serviu, que me lembre, para o PS levar ao Parlamento pessoas com a qualidade da dra. Matilde Sousa Franco. Avisado, Sócrates constituiu um gabinete viril, o que não o impediu de vir agora pedir legislação sobre quotas, impondo aquilo que, livremente, não quis executar.
A paridade foi apoiada pela esquerda e rejeitada pela direita. Neste debate não consegui perceber:
1º Se a paridade é boa porque é que só se aplica ao Parlamento? Porque é que não se estende ao Governo, aos cargos de nomeação do Estado? Aos Conselhos de Administração, ao Conselho do Estado, ao Governos Civis, ao Conselho Superior da Magistratura, etc, etc.
2º Se as quotas servem, apenas, para reformar os partidos, são uma medida destinada ao fracasso. Os partidos continuarão a ter um recrutamento medíocre, centrado no pessoal sem qualidade das Jotas, gente que quando devia estar a experimentar a solidariedade, a amizade, o debate, a transgressão, está a aprender a obliquidade, a traição, o aparelho, o arranjo, a carreira. Os partidos são irreformáveis. Serviram para o último quartel do século vinte e arrastam-se penosamente aos olhos de quem queira ver e não precise de se pôr a jeito.
Se essas antiguidades, no fim do quadriénio, vão lá desencantar as Matildes para as pôr no Parlamento, é matéria que nos devia deixar indiferentes ou, quando muito, servir para o movimento do Manuel Alegre fazer uma reunião, lá para o Verão, num Hotel de Lisboa.
Pois até parece que, escritores e afins, andam a fazer petições.
A paridade foi apoiada pela esquerda e rejeitada pela direita. Neste debate não consegui perceber:
1º Se a paridade é boa porque é que só se aplica ao Parlamento? Porque é que não se estende ao Governo, aos cargos de nomeação do Estado? Aos Conselhos de Administração, ao Conselho do Estado, ao Governos Civis, ao Conselho Superior da Magistratura, etc, etc.
2º Se as quotas servem, apenas, para reformar os partidos, são uma medida destinada ao fracasso. Os partidos continuarão a ter um recrutamento medíocre, centrado no pessoal sem qualidade das Jotas, gente que quando devia estar a experimentar a solidariedade, a amizade, o debate, a transgressão, está a aprender a obliquidade, a traição, o aparelho, o arranjo, a carreira. Os partidos são irreformáveis. Serviram para o último quartel do século vinte e arrastam-se penosamente aos olhos de quem queira ver e não precise de se pôr a jeito.
Se essas antiguidades, no fim do quadriénio, vão lá desencantar as Matildes para as pôr no Parlamento, é matéria que nos devia deixar indiferentes ou, quando muito, servir para o movimento do Manuel Alegre fazer uma reunião, lá para o Verão, num Hotel de Lisboa.
Pois até parece que, escritores e afins, andam a fazer petições.
Todos dizem bem do Governo
O António Barreto, com uma escrita juvenil, diz bem do governo. O que ele diz, mais ou menos, é que este governo herdou, do guterrismo, o afecto para com os grupos económicos e financeiros, e do cavaquismo, a antipatia para com grupos profissionais, associações e funcionários públicos. Tem além disso, afirma Barreto, uma pulsão destruidora do Estado Social.
Ouvi ler isto na esplanada, que eu não compro jornais, muito menos o jornal de que JMF se pensa director. O leitor acabou com uma pergunta retórica, não sei se ainda do texto de Barreto, se de lavra própria:
- Eis que merece atenção- disse ele.
- Merece, merece- concordaram todos.
Ouvi ler isto na esplanada, que eu não compro jornais, muito menos o jornal de que JMF se pensa director. O leitor acabou com uma pergunta retórica, não sei se ainda do texto de Barreto, se de lavra própria:
- Eis que merece atenção- disse ele.
- Merece, merece- concordaram todos.
Adições
A Terceira Noite, de Rui Bebiano (Rui, desculpa o atraso)
A Causa Veio Para Aqui, do Maradona.
E uma adição já antiga mas que não teve o relevo devido: Bichos Carpinteiros, do José Medeiros Ferreira.
A Causa Veio Para Aqui, do Maradona.
E uma adição já antiga mas que não teve o relevo devido: Bichos Carpinteiros, do José Medeiros Ferreira.
01 abril 2006