A Vida dos Outros, um filme sobre a vigilância que um polícia da Stasi faz a um dramaturgo, nos últimos anos da RDA.
Uma história duvidosa: o polícia, um membro implacável da polícia política, um obsessivo que parece acreditar no seu papel de
escudo e espada da classe operária, um verdugo do socialismo real, além do mais um misantropo quase psicótico, humaniza-se durante a escuta a um dramaturgo. O filme resiste a esta improbabilidade, e a outras debilidades do argumento, por vários motivos: a direcção de actores, o fascínio que se desprende do personagem que Ulriche Mühe interpreta, e sobretudo pela modo como recorda a sociedade leste-alemã e o regime sinistro que os russos e os comunistas alemãos aí instauraram no pós-guerra.
Uma sociedade policial e totalitária, onde uma elite cínica e medíocre utiliza uma construção ideológica,
o marxismo – leninismo, como religião de Estado. Uma sociedade que em alguns aspectos lembra o Portugal de Salazar e Caetano, sempre para pior.
Em Portugal houve sempre oposição e resistência. E, depois dos anos sessenta, a oposição era maioritária nos círculos estudantis, organizada nas associações de estudantes, nas cooperativas, em alguns grupos recreativos. Um preso operário ou camponês podia desaparecer temporariamente nos cárceres da Pide, e a famigerada polícia torturava por sistema, tinha por missão a destruição sistemática dos que se opunham ao regime e, como se sabe, matou. Mas um grupo de gente corajosa levantou e manteve em funcionamento semi-clandestino, uma Comissão de Apoio aos Presos Políticos. Uma corrente de solidariedade ligava os presos às famílias, aos amigos e a sectores da população mais esclarecidos e menos dependente economicamente do regime. O isolamento político, ideológico e cultural dos oposicionistas de leste foi sempre incomparavelmente maior. Ignorados ou hostilizados pela esquerda dos países ocidentais, onde os partidos comunistas e os companheiros de estrada pontificavam, o destino de qualquer livre pensador a leste era, quando o tiro na nuca se desactualizou, a solidão, o esquecimento ou a prisão. Tudo debaixo do pesado silêncio dos que carregavam a culpa da derrota, da barbárie nazi, do holocausto. A sociedade que a classe operária construiu do lado de lá do muro era, no início dos anos 80, uma mistura de embuste ingénuo, mau-gosto, hipocrisia e brutalidade, um colosso de burocracia e obsolescência . A representação que fazemos destes tempos necessitava de um filme assim: o papel de parede atrás do qual a Stasi esconde os fios da escuta, o miúdo que pontapeia uma bola ao fim do dia, a desolação de Karl Marx Allee, a traição no interrogatório. Estranhamente, não chega conquistar um Óscar, um êxito razoável de bilheteira no Reino Unido para escapar a uma exibição discreta em salas secundárias da capital de um Império que também já foi. O fascismo nunca existiu, já se sabe. E aquele comunismo, camaradas, também não.
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