31 março 2004

HOSPITAL DE PONTA

A minha Gestora Hospitalar Anónima vem sempre mais fervilhante de cada nova reciclagem. Versou-se de fresco em agilização de contratos de trabalho precário e quer pôr já um anúncio: “Hospital SA contrata Médico e Cão” – equipamentos tratam doentes, médico alimenta cão, cão impede médico tocar equipamentos. Aguardo esperançado pela próxima reciclagem – será dessa que acabam com os doentes de vez?

André Bonirre

INCENTIVOS HOSPITALARES

A minha Gestora Hospitalar Anónima, sempre borbulhante, de ideias, anunciou que vai haver, já este ano, entrega de incentivos para quem trabalha. Estou confiante, serei certamente dos que mais vão receber e bem preciso, tão desmotivado que ando (terei percebido ao contrário?)

André Bonirre

Educação Sentimental

Depois do jantar, entre a sobremesa e o café, elas podem tentar-se a confidências. Como são diferentes, histórias de infância, de família. Então talvez possas pensar que algo especial ela deve ter, pois te dedicou duas horas da sua vida. Mas afasta rapidamente esse pensamento perigoso. Controla bem a musculatura da cara e a tua postura à mesa para que ela perceba bem o bruto que há em ti.

Ao Norte

Vincent enlouqueceu ao sol do meio dia. Entre o Tigre e o Eufrates é deserto. Na praia sobrevivo com o suor do teu corpo e a certeza que os maus dias sempre acabam. O verão são os incêndios, a pestilência das ruas, a alegria postiça dos resorts. Salva-se o recolhimento das cidades castelhanas na interminável sesta, e o mar, nos canais onde ele é profundo, variável e mortal.
Dias do Norte, que começam com neblina nas planícies e cincelo nos jardins. Dias de frio com as raparigas vestidas em doces camadas de tecidos, as faces vermelhas de prazer e a boca orvalhada. Dias de emoções rigorosas, em que a respiração se lê como os balões da banda desenhada e o que se lê nos balões são frases de pedra. Dias de pratos de resistência, sopas, molhos espessos, caldas, chá, um pão escuro de centeio e basílico. Dias em que, quando ninguém espera, o céu se limpa, e o azul é tão lavado que percebemos que se lhe chame firmamento. A essa hora, levadas placidamente por velhos que parecem rejuvenescer, as crianças enchem as ruas do Norte e nos olhos delas está a mesma gravidade dos dias do Norte.

Toma lá, então

A sua memória tinha passado toda para a imaginação.

(do O'Neill)

Milosz, Szymborska e os outros

Benvindos, boa noite.

Górecki, Sinfonia das Canções Tristes.

Eu não sei e não sei e a isto me agarro.
A Sandra anota o alinhamento com a caneta com que corrigiu os pontos dos putos distraídos.
Um espaço de coisas luminosas.

Foi mais ou menos assim. Via-se uma nesga de Tejo como um corrimão providencial.
Falta uma coisa. Vou pôr mais logo.

Obrigada. Obrigado também.

30 março 2004

Hoje, às cinco e meia

Nem todas as terças feiras acontece, mas hoje, como tu certificas e o Bonirre antes do silêncio explicou, nem sempre mas hoje, tu páras o carro na estrada que vai de Trofa a tua casa e decerto que alguém na paragem do autocarro, no veleiro Acédia, talvez na praia, debaixo da calçada, nas janelas do Porto, na tasca, em tantos sítios que sei e não sei, lá estamos nós a respirar o mesmo ar, a dizer baixinho, my life is, my is not my life.

A vocação natural do Refúgio

Do presidente da Comissão de Acompanhamento da Lei da Adopção Portuguesa estamos falados. Já se sabia que, como a ciência tem provado, ele acha que as crianças adoptadas por homossexuais correm o risco de ver desviada a sua orientação sexual natural. Agora ficamos a saber que no seu Refúgio não têm lugar as crianças seropositivas para HIV nem os deficientes, ou só aqueles cuja deficiência não seja detectável ao nascimento. "Portugal tem centenas de instituições, cada uma vocacionada para determinadas patologias", foi ele que disse. E isto é espantoso, esta mentalidade ordenadinha, o Refúgio dos meninos com Trisomia 21, o Abrigo das Crianças com Doença Neuro Muscular, a Casinha das crianças com Hemofilia e outras doenças da Coagulação, a Quintinha dos X-frágeis, a Lua Cheia para os HIV. Tudo no sítio, com os meios, os subsídios e as festinhas de beneficência correspondentes.
Mais grave é Dulce Rocha, a presidente da Comissão Nacional da Protecção de Crianças e Jovens em Risco, ter vindo cobrir posições destas com declarações evasivas.
O editorial do Público de ontem, assinado por Amilcar Correia, parece-me correctíssimo. Que pena, se as crianças em risco, à espera de pais, não têm nos Presidentes das Comissões do Estado, os seus melhores defensores.

29 março 2004

Uma questão de justiça

Quando era pequeno conseguia voar ou dar saltos prollonnggados apenas no tempo. Depois cresceu e adoptou a capacidade telepática incondicional e à distância, conseguia saber com exactidão tudo o que se tinha passado numa sala distante e adivinhava o encandear de pensamentos com antecipação de várias frases. Mais tarde soube possuir um código genético fortificado, à prova de tudo, reforçado pelo poder do pensamento, das suas sinapses exactas. Praticava comportamentos de risco com a confiança de resistir por focagem da mente, após diagnóstico precoce. Enfurecia-o a falta de reconhecimento dos seus pares. Quando cede doente, não perdoa a injustiça do mundo.

PC

O direito dos judeus a ter um Estado mau

Durante dois mil anos os judeus tiveram direito a levar porrada. O holocausto durou mais de dez anos, desde o início das leis anti semitas até à solução final e depois à execução do extermínio. Tempo suficiente para os povos do ocidente se aperceberem e travarem a barbárie. Mas ninguém deu conta, ninguém sabia. Milosz conta num poema que, tal como em Campo Fiori o povo dançou logo depois de um Autodafé ter queimado Giordano Bruno, assim também em Varsóvia se cantava já o gueto ardia. E os judeus obedeceram sempre, sem revolta. Coseram nos casacos a estrela infamante. Deixaram os passeios aos arianos. Subiram para os comboios com ordem. Hoje têm um Estado como os outros. Melhor do que muitos dos Estados por onde circulamos. Melhor do que qualquer dos Estados árabes de que me consigo lembrar. Um Estado democrático, com gente simpática e que quase não consegue eleger representantes, gente normal e depois também uns fundamentalistas que continuam a viver como no século dezanove nas judiarias do leste europeu. E um primeiro ministro medíocre. Israel, um país como o nosso, mais ou menos. Os judeus têm direito a ter um país, um exército, um parlamento, um governo, uma oposição, maus como os outros.

Tabligh Jamaat : A friendly islamist group

Interessante esta entrevista.Uma seita em que se vestem como o profeta Maomé. Que não revela a forma de organização, o número de membros, a fonte dos rendimentos. Que tem como missão ir junto dos muçulmanos e convertê-los à sua versão integrista do Islão. Era bom saber se a actividade destas seitas, que entre outras peculiaridades defendem um papel social da mulher que corresponde ao existente na Europa antes da Revolução Francesa, está de acordo com a Constituição.

Errata

Disse aqui que a história de Bonirre e Bartleby (o de Vila-Matas), de Vanessa e do fantasma de Margarida, do médico hipocondríaco e de Alice era bem contada no Eternuridade. Enganei-me. O Luís G.M. só viu parte do que se passou. E foi exactamente a parte que, por motivos que explicarei, eu não pude presenciar. Devo dizer que tenho dúvidas relativamente à realidade de alguns personagens e problemas no acédio à verdadeira identidade de outras.

28 março 2004

Scarlett Johansson

No Mauritshuis Museum, em Haia, A Rapariga com Brinco de Pérola está em frente da Vista de Delft. Para mim, doente de literatura, Tracy Chevalier estava em frente de Jorge Semprun. Depois percebi que não estava sózinho na sala do Mauritshuis. Não eram Vermeer nem as referências literárias quem iluminava as caras dos visitantes que trazem ao museu holandês um sucesso sem memória.

Multatuli editado em português.

Multatuli, aliás Eduard Douwes Dekke, o que dorme numa barcaça para os lados de Prinsengracht, escreveu Max Havelaar. Este livro foi traduzido e editado em 1976 pela Civilização. Notícias?

Mondrian adiado, poesia holandesa

O Museu de Arte Moderna StedelidjK, em Paulus Potterstraat, onde esperava encontrar Mondrian, está fechado. Não há dinheiro para a nova instalação encomendada a Siza Vieira nem está indicado o local das instalações provisórias. Ao lado o Museu Van Gogh conhece melhor sorte com filas de uma hora. Mas para troca, Cristina, toma este link, e estes livros de poesia neerlandesa para acrescentares à tua Uma migalha na saia do universo, Assírio & Alvim, 1997:
Antologia da literatura flamenga, Bertrand, 1972 (prosa e poesia)
Um mundo claro, um dia escuro, Limiar, 1988 (poesia)

Julieta

Julieta é socióloga. Enquanto estudante usava ponchos. Quando as mulheres da sua idade começaram a limpar as rugas da face com a toxina botulínica, Julieta, que substituira o poncho por capas, fez-se cleidoctomizar. Agora Julieta é uma raia, adejando sobre a realidade social.

C. A. Portucalense

Durante uma semana li alguns jornais europeus. Peço desculpa mas não consegui encontrar vestígios do notável desempenho do nosso primeiro-ministro. Se alguma protecção temos relativamente aos mandantes do terror islamista é a nossa insignificancia. Pode ser que eles pensem que a famosa cimeira foi nos Azores, essa base americana, e que o esquecido anfitrião era um autarca local, ou, vá lá, o presidente de uma autonomia de Espanã.

O nome da ponte

Na terrinha têm finalmente a ponte pronta mas não atinam no nome para a coisa. O edil anterior, ou o ministro dele, chamou-lhe Europa. Era uma homenagem ao Lars von Trier, ou um agradecimento a quem deu o dinheiro. Pela ponte não se vai para a Europa. Vai-se para uma estradeca horrível, um pesadelo que dá pelo nome de EN-1. Quem entra na cidade pela ponte há-de penar entre a rotunda do Continente e da Macro. Há oito anos que o grande empresário tem o exclusivo da distribuição às gentes da terrinha (e sempre descontente). A haver justiça e adequação à realidade a ponte havia de chamar-se de Belmiro. Alguns hão-de passar o Continente e chegar ao Estádio. Aí está outra sugestão: Ponte do Estádio. Chamada a pronunciar-se a Comissão de Toponímia hesita. Ou o seu inefável presidente que entretanto já se terá informado sobre quem foi Aristides Sousa Mendes e qual o seu contributo para o esplendor da terrinha. Na agenda tem a proposta celestial do Presidente da Câmara: Ponte da Rainha Santa. Mas os vereadores da oposição socialista não se conformam. A luta continua.

Pacheco

Na Pública uma entrevista a não perder com Luiz Pacheco. Pacheco igual a si próprio, ouvido amorosamente por uma mulher que lhe perdoa (Sarah Adamopoulos): o homem que desde 1958 se livrou da função pública e não percebe muito bem a angústia de estar desempregado despede-se da vida num lar de Lisboa. Sem livros nem jornais, poucas visitas, não tem vista para ir à rua passear e já só lhe resta a rádio. Um registo sereno (este maldito não dá porrada por encomenda) e algumas pérolas: Lobo Antunes, Manuela Ferreira Leite, o professor que lia os comunicados da Mocidade Portuguesa.

A despedida de Aznar

No Público Teresa de Sousa refere que ele foi" longamente aplaudido" num artigo encimado por uma foto de campanha eleitoral dos dias felizes. A propósito da última reunião do Conselho Europeu em que o actual ex-primeiro ministro espanhol assistiu ao seu elogio fúnebre. El Pais relata que à intervenção do presidente em exercício da Comissão e às palmas dos seus congéneres Aznar respondeu com oito palavras: "Muchas gracias y espero que les vaya bien." E o jornalista espanhol escreve que os funcionários e diplomatas da União Europeia comentavam que a rudeza ("sequedad") de Aznar ultrapassava a proverbial gravidade castelhana.
Ainda no El Pais Juan Jose Millás ( A desordem do teu nome, A solidão é isto, A ordem alfabética, autor de quem se anuncia a tradução de Duas Mulheres em Praga) escreve na sua crónica das sextas feiras: "Não deveria haver nada neste mundo capaz de impedir um presidente de governo acudir aos hospitais para se solidarizar com os feridos de um atentado terrorista". E no mesmo jornal (27.03) Juan Luis Cebrián (amanhã em Lisboa para apresentar o seu livro sobre a transição democrática no país vizinho) assina um artigo demolidor intitulado A honra perdida de José María Aznar. O que eles não perdoam a Aznar é a entrevista de televisão desta semana em que ele "não foi defender a sua política, explicar as suas acções, debater os problemas de Espanha, dar confiança aos cidadãos, garantir-lhes a sua segurança,ou explicar-lhes em que falharam as autoridades se é que o fizeram, para não poder prevenir este massacre, vai dizer que ele é um homem de honra,e que não pode ficar arrumado num canto da História, com esta fama de mentiroso e de manipulador que alguns lhe estão arranjando".
Aznar não terá, como pensou, "o retiro do imperador Carlos em Yuste". A Aznaridad (ler Montalbán na edição que a Mondadori publicou) acabou. Que se vaya bien.

Antologia de O Mal: Wislawa Szymborska

Nada duas vezes

Duas vezes nada acontece
nem acontecerá. E assim sendo,
nascemos sem prática
e sem rotina vamos morrendo.

(...)

Wislawa Szimborska

Antologia de O Mal: Czeslaw Milosz

Tão Pouco

Disse tão pouco.
Dias curtos.

Dias curtos,
Noites curtas.
Anos curtos.

Disse tão pouco,
Não tive tempo.

O meu coração cansou-se
Do êxtase,
Do desespero,
Do zelo,
Da esperança.

A boca do Leviatã
Engolia-me.

Deitava-me nu junto ao mar
Nas ilhas desertas.

Arrastava-me para o pélago
A baleia branca do mundo.

E agora não sei
O que foi verdade.

Czeslaw Milosz in Alguns gostam de poesia, Cavalo de Ferro.

Cavalo de Ferro

Cavalo de Ferro é um milagre editorial. Gosto de tudo. Do formato dos livros, do toque acetinado das capas, das escolhas. Quem nos trouxe Robert Artl, Juan Rulfo, Jan Potocki, os escritores da Europa de Leste merece a nossa gratidão. Agora é esta Antologia que junta Czeslaw Milosz e Wislawa Szymborska, já referida pelo menos aqui e aqui.

Alguns gostam de Poesia
Antologia
Czeslaw Milosz e Wislawa Szymborska

selecção e tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves
Lisboa, março de 2004

A minha pátria

Volto aos ç e ao mês e aos às e às pás e ao não e ao pão. Não senti falta, não tive saudades.

27 março 2004

Despedida em Leidsplein

Beijaram-se como se fosse a ultima vez, sabe-se la porque. Depois foi cada um para seu lado. Ela fez um movimento com a cabeca e os olhos e a cara tinham ainda o mesmo brilho. Ele caminhava em frente, com determinacao, tinha aprendido que era assim que se devia fazer. Depois parou, quando pensava que ja nao havia testemunhas, voltou atras, ao sitio onde se tinham separado, e ficou a olhar o ponto onde ela tinha desaparecido.

Juliana 1909-2004

Juliana Louise Emma Marie Wilhemina, Rainha da Holanda, Princesa de Orange-Nassau, Duquesa de Mecklenbourg, fugiu para Londres em Maio de 1940 quando os nazis ocuparam o seu pais. A mae, Wilhelmina, ficou em Londres ate a libertacao. Ela foi com as criancas para Ottawa, no Canada, onde viveu sob o nome de Mrs. Von Lippe-Biesterfeld uma existencia normal, os melhores anos da sua vida.
Em 1952, ja rainha, convidada pelo senado norte-americano, proferiu um discurso considerado calorosamente pacifista. No final, o principe Bernardo, o marido que a Coroa laboriosamente lhe encontrara, e o ministro holandes dos Negocios Estrangeiros estavam furiosos. Ela apercebeu-se do desagrado e perguntou:"Devia ter-lhes falado das virtudes da cerveja holandesa?" Quando em 1976 o escandalo Lockheed atingiu o principe, ha muitos anos que Juliana dormia sozinha.

Um beijo

No bar uma rapariga muito alta beija enlevadamente um rapaz. O beijo tem tanto empenho que atrai alguns olhares. Encontro os olhos do rapaz e a sua publica aflicao. Ela continua, entusiasmada. A que sabem os labios de um rapaz desconcentrado?

A literatura portuguesa derrotada

A bibliotecaria de Gouda chamava-se Margriet e tinha uma cara de anjo que terminava num queixo de bruxa. O conjunto resolvia-se, paradoxalmente, de forma muito atraente. A coisa correu bem. Ela lia-me Cees Nooteboom e eu Jose Saramago. Podia chamar-se aquilo uma troca desigual mas Margriet parecia gostar. Durou dois anos. Foi mais ou menos a meio do Ano da Morte de Ricardo Reis que ela comecou a bocejar. Ainda tentei Cardoso Pires, Maria Velho da Costa, Nuno Braganca, Paulo Castilho. Agustina, em desespero. Hoje, enquanto a Rainha Juliana saia pela ultima vez de Soestdjick Palace, despedimo-nos. Ela disse-me: o nosso amor era a lingua portuguesa. Margriet tinha encontrado Cervantes e Quevedo, Frei Luis de Leon e outros castelhanos mais novos. Podia entender o seu entusiasmo.

26 março 2004

cáspite palácio que me enganei

Antes quando era pequeno abria a porta e fazia um compasso de espera escondido atrás onde o vento não me apanhava, perguntava se já tinha passado o frio todo e não saía antes de ter o certificado metereológico, coisas de criança atoleimada, cresço e tudo mudou, agora sou forte e musculado, não tenho medo de nada, não há frio que me encontre, que se cuidem ou eu tomo conta de qualquer festa, um sucesso nas conquistas, cáspite palácio que me enganei, isto de andar
com os dedos à frente da cabeça resulta mal, só as portas é que já não encontro, não é metereológico o certificado adiantado que preciso, mas agora, agora mesmo que levo os dedos à frente da cabeça, aceito o convite do sol, agradam-me as exuberâncias anunciadoras da reprodução, vou à conquista, é para os dedos que vão à frente que devo olhar, esse é o justo compasso de tempo que me faltava.

PC

25 março 2004

A companhia das aguas

Encontrei-o no canal Singel e jantamos os dois. Ele disse-me que se chamava Multatuli desde que estivera na Indonesia mas que era outro o seu nome verdadeiro. Vivia numa barcaca. Foi para la que fomos fumar e ouvir as historias da enorme crueldade da Companhia das Indias. Depois veio a noite e ele disse que por causa da policia tinha de levar a barcaca para um canal dos arredores. Fomos para Prinsengracht, junto ao Woonbootmuseum. Dormi a bordo sem imaginar o frio que ia fazer. O Multatuli tinha o cao mas eu so tinha a companhia das aguas geladas do canal, debaixo de mim, a noite toda a levantar e a baixar o fundo chato do barco.

Vantagens das medidas securitarias

No aeroporto de S. obrigam as raparigas a descalcar as botas. Elas usam botas muito altas com longos atilhos e e muito bonito ve-las ao lado das maquinas de Rx a descalcar as botas e depois a passarem descalcas o controle.

Um negocio em Gouda

Em Gouda conheci Renata. Alugamos um espaco na parte velha. Renata e duas amigas cozinhavam. Os namorados delas e eu faziamos compras e tratavamos da decoracao, limpezas, contabilidade e contactos com as autoridades. Sobravava-me algum tempo para ler e passear pelos bosques vizinhos de Gouda. O negocio revelou-se lucrativo. De tal forma que a minha presenca numa das mesas se tornou incompativel com o necessario aproveitamento do espaco. Sim, eu compreendia. Tive de passar a ler na biblioteca de Gouda. Renata tinha cada vez menos tempo para mim. Quando comecei a engordar ela disse-me que ja nao gostava de mim e que podia vender a minha quota aos dois rapazes holandeses. Fizemos as contas e fui-me embora. Tambem ja tinha saudades das montanhas e a bibliotecaria simpatizava comigo e sabia imenso de literatura neerlandesa.

23 março 2004

Regras da boa educação infantil

As regras da boa educação infantil, olá, bom-dia, obrigado, adeus, de nada, dormir a noite toda, adormecer na cama autónoma, são todas conquistas de importância suprema, possivelmente para os pais, fiéis indicadores da justeza da sua moral, requisitos de aceitação social. Mais tarde, adolescentes e jovens adultos provam a eficácia destas boas práticas pelo seu desempenho superior comparado. Mas não esqueçam os hábitos e o horário e a leveza,, a leveza do pensamento deles deve-nos fazer voar silenciosamente, os hábitos ancorar ao chão.

PC

22 março 2004

Invitation au voyage

Meu amor, linda,
que bom que é
à saída do Verzetsmuseum
fumar um charro no De Drie Fleschjes

Aqui é tudo luxo e beleza
e calma e volúpia

19 março 2004

O melhor do Mal é no Eternuridades

A história que por aqui se vai contando é muito mais bem contada no Eternuridades e na Glória. É aí que se devem dirigir se quiserem saber o que realmente aconteceu. Eu sou fiel mas impreciso nos relatos. O André sucumbiu ao mal de Montano, alucinado pela felicidade duma noite no veleiro azul, rumo à Calheta do Nesquim. Foi esse o porto onde a memória dos cetáceos lançou a sua última armadilha. Tropisetrom foi o que te disse para tomar. Tropisetrom e betahistina.

Todos os meus adversários são campeões

É a guerra é a guerra soa-me a grito de freiras nos conventos (cf. João César Monteiro). Uma grande batalha atravessou a minha adolescência. A batalha relatada na Cartuxa de Parma com o personagem que vagueia sem perceber que se faz história nem quem se desenha como vencedor. Acho que os que gritam é a guerra é a guerra se excitam imenso. Não ponho em causa a sua coragem pessoal. Sucede que sou cobarde. Sempre que ouvia os relatos das grandes batalhas da história e me imaginava em combate, era sempre caído no chão, de borco, a ouvir o tremendo clamor e a fingir de morto. Mais tarde, à fantasia acrescentou-se a frase de Tarkovsky dita repetidamente, em jeito de oração: cai, faz-te de morto e ressuscita.

Adiamento

O André Bonirre está a organizar, para a noite de 27 de Março, aquilo a que chama uma festa. As festas do André são uma espécie de albergue espanhol. Cada um leva o que tem e afixa na parede. Desta vez a parede está suspensa num sótão, grande como a nave central de Santa Clara a Velha. Como os amigos dele são talentosos as festas têm muito sucesso. Estou a falar disto à vontade porque não estarei presente. Os azares da agenda levam-me para o norte. Quer isto dizer, Cristina, que o Mal vai ficar entregue à Sofia. O Escrivão Bartleby pode ser o par interessante da Sofia. Mas nós gostaríamos de estar presentes quanto mais não fosse para assistir à cena. Podes adiar a entrega?

Outra coisa se houver

outra coisa:
uma cor esquecida
nas romãs

um nome inventado
levado à boca

uma sombra ausente
pelo meio-dia

um horizonte abandonado
num poema

e se não houver outra coisa:
o gume da sede
em cada rosa.


Da Sandra

Bilhete da noite

Saí do turno e vagueei pela cidade. Anotei duas coisas: há imensos estudantes a passear pelas ruas e gatos pretos a atravessarem-se à minha frente. Parei em todos os cafés abertos à procura de um chocolate para a minha miúda. Só havia chocolates amargos e ela pediu-me dos doces. Num dos cafés ouvi o noticiário da madrugada. A OMS prevê uma terrível epidemia mundial de gripe. Não vai haver vacinas que cheguem, nem camas nos hospitais, nem medicamentos para os doentes. Ninguém ligou nenhuma à notícia. Parece que ninguém acredita nas notícias da madrugada.

Silvano

Educação sentimental


O dimorfismo sexual tem destas estranhezas. Este grande peixe, esta nave de águas profundas, esta arca de olhos e boca arregaladas é uma fêmea. Aqueles minúsculos satélites acastanhados que a acompanham são os machos da sua espécie. O seu sistema nervoso dá-lhe duas ordens. Acompanhar a fêmea e procurar a fenda (the little black spot, legenda em fúcsia) onde descarregam aquilo que são. Um saco de esperma. Só um entre muitos é eleito. Esse morre de prazer enquanto os outros se envenenam com o seu sémen desperdiçado. Se sobrasse alguma coisa do sistema nervoso destes machos, pode ser que dissesse isto como um poema, um bailado, uma canção. Se isso aumentasse a sua eficácia reprodutiva os machos da anglerfish (peixe diabo) seriam peixes criativos.

18 março 2004

André Bonirre

Completamente absorvido com as praticalidades da sua iniciativa de 27 de Março, André Bonirre estará ausente das páginas deste blog. Que volte em breve e a glória inunde os seus olhos.

A carta de Silvano

Gosto dela. Parece que nos cruzamos na vida. Ela a subir. Eu sabe-se lá.
Quando começa o turno da noite vejo-a, como sempre quase sem ouvir. Ela pôe a cabeça de lado, entreabre a boca, tem os lábios molhados e a língua a aparecer. Deve dizer coisas importantes. Já lhe disse que não ponho som no aparelho. Não é bem por causa dos regulamentos. É respeito para com os mortos. E basta-me vê-la. O meu colega do turno da tarde afixa fotos dela pelo gabinete. Tudo para o gozo, para me fazer rir. Outro dia era uma revista em que ela aparecia de meias pretas de renda e chinelas de salto. Deu-me uma pica melancólica. E um casaco de penas a pingarem. Dizia lá que estava vestida pela fashion clinics, uma nota. Mas até nisso ela é especial, porque conseguia disfarçar o luxo, humilde como as miúdas dos bares. Agora estou triste. O meu colega deixou outro recorte. Uma entrevista a sério, só a falar rico, Rosselini práqui, Kosturami prácolá. Estava pronto para tudo menos para a ouvir dizer aquillo. Eu sei que é artista e os artistas querem sempre dizer outra coisa. Mas ela não precisava de se expor assim. "Disse ao Julião Sarmento que é meu amigo: Sou a actriz putativa do teu filme".

Silvano

17 março 2004

Medo do medo


The Nature of Panic: a walk through fear in pictures and words
An exhibition by Patrick Olszowski and Sophie Petit-Zeman at the gallery@oxo, Oxo Tower Wharf, London, UK


A minha psiquiatra esteve lá e disse-me que era uma exposição muito bem conseguida. Ele, Olszowski, é um doente. Tem panic attacks e fotografa situações que contêm simultâneamente a vertente psicológica e física dos seus sintomas. Ela, cujo nome parece um achado de ficção, é uma medical writer (aqui está uma profissão a sério) e escreveu comentários para as fotografias. A minha psiquiatra trouxe-me o catálogo. Ainda não abri. Quando penso em fazê-lo fico com os músculos tensos, pesa-me o coração, desato a suar e as mãos perdem a sensibilidade.

O primeiro beijo

Cheguei atrasado. Ela já não estava lá. Depois estava ela e era eu que faltava. Depois, anos a fio, não conseguia expressar convenientemente os meus sentimentos. Como num filme do Woody Allen repetia até ela se fartar e me empurrar. Depois lembrei-me da anedota behaviourista, e disse-lhe: "Tu gostaste!(pausa) Diz-me por favor,(pausa) eu gostei?". Ou ela não tinha humor ou não tinha lido o David Lodge.

Hospitalidade

A hospitalidade oferecida pelo Mal ao Escrivão Bartleby está ameaçada. Esta manhã, ao despertar, percebi a sombra que tem manchado o sorriso do André Bonirre. Com a sua letra elegante, de quem escreve com a mão direita como se fosse outro o seu hemisfério dominante, ele copiou, uma e outra vez, todo o O'Neill. Isto antes de aprender a dizer que sim e começar a escrever. A chegada de Bartleby acorda-lhe pulsões negativas. Nem sempre estamos preparados para as mínimas contrariedades. Mesmo na Janela a separação não é pacífica (cf. o outro lado dos posts da Ana Alves).

iPOD

Comprei por causa do auricular. É pequenino e quase imperceptível. Tecnologia sem fios (extra). Além disso não se chama walkman, eu não quero aquilo para andar. Também não quero armazenar nada. Nem reprodução fiel. A voz de Rafael Alberti não foi digitalizada. Quero passar despercebido no balcão, às cinco da tarde de quinta feira, uma semana sim uma semana não. Já tinha treinado o vagar dos gestos e a cara que entrego ao atendimento público. Só me faltava uma prótese destas, que não sobressaísse do canal auditivo externo para o pavilhão. A Sandra sabe, o chefe e os utentes não precisam de saber. O mais pequeno dos instrumentos ao serviço de uma emoção sem nome.

PUÑAL


El puñal
entra en el corazón,
como la reja del arado
en el yermo

No.
No me lo claves.
No.


El puñal
como un rayo de sol,
incendia las terribles
hondonadas.

No.
No me lo claves.
No.


Federico García Lorca

16 março 2004

Sempre

Os teus textos sempre tiveram voz e cara e mãos.

DE CÁ PARA LÁ

Ando de lá para cá, perdi-me a ouvir o cigano, o realejo calou-se e eu estou agora parado, mais indeciso que esta mulher que atravessa a praça a correr, agora para lá, há pouco para cá, desaparece pelas escadas, atalha, apressa um encontro ou foge, para não ser encontrada talvez.
Tenho fome, estou longe de casa, no primeiro andar do restaurante à esquina um vulto acena alegrias para felizes destinos, eternuridades que não distingo, sigo para o cais, sou vagamente das tascas, evito sempre as áreas de serviços. Sento-me num banco do jardim vazio, sento-me em Paris, no banco de jardim onde ajudei uma jovem que não conseguia compor uma mensagem. “Nunca fiques triste, eu poderia ter-te amado”, disse-lhe e era Verão, disseram-me a mim depois, repito-o agora sozinho, estremeço com o vento no canavial, com a corrida da mulher que não encontra ou não quer ser encontrada.
Estou com fome, preciso de voltar para o veleiro azul, o meu calendário desbotado, com reproduções de pinturas, que tenho pendurado na parede onde traço o tempo que passa e falta para dizer uma única frase; preciso de voltar, moro do lado de lá, num sótão com uma cave, onde ninguém acende as luzes, sou o último a tropeçar nos móveis (o meu cão vê bem no escuro).
Vim parar aqui por um engano, apanhei boleia junto ao vulcão, entrei, “Castelo Branco” disse, julgaram-me “de lá fora”, e alguma razão tinham, passámos sem parar, não disse nada, deixei-me ir, a mulher ao lado trazia um mal que reconheci, talvez fosse preciso ajuda. Por causa dessas palavras, e das que calei, estou agora no cais, deserto a esta hora, não há carreira para Castelo Branco, há baile no Amor da Pátria onde os carros estacionados não são de boleias, não tenho outra safa, vou gamar uma Zundap.

(pode continuar, em Paris, com eternuridades, de Zundap, sempre em Glória)

André Bonirre

Carta recebida de Silvano

Senhor Luís,

O meu nome é Silvano. Sou segurança na morgue. Não é a primeira vez que lhe escrevo, embora seja, por feitio, discreto e, por caprichos da sorte, pouco habituado à escrita. Mas passou-se comigo ontem uma coisa estranha, e acho que é a si que a devo contar, e aí que a deve escrever, se achar algum mérito a este relato.
Apesar de ser este o meu local de trabalho não se pode dizer que esteja habituado à morte. Por motivos que têm a ver com o meu passado, escolho os turnos da noite, quase sempre como voluntário. Furto-me assim aos doutores da faculdade de medicina, alguns dos quais meus antigos condiscípulos da escola, e às famílias dos mortos. Nos últimos tempos tenho visto a menina que aí escrevia. Ela trabalha até horas despropositadas e ignora-me, apesar de haver alturas em que eu sou a única coisa viva no edifício, e, ouso dizê-lo, no quarteirão. Não a vejo comer, dá cabo da saúde, está cada vez mais magra e macilenta. Mas não devo falar dela e não é por isso que lhe escrevo.
Sucede que para passar o tempo e espalhar o sono vejo televisão, quase sempre sem som. E vi o que se passou em Madrid. Aquela gente que vinha de manhã para os empregos, gente dos arredores, gente como eu, afastada do êxito e do conforto, gente dos transportes públicos da manhã e do fim dos dias. Li os relatos das suas vidas estragadas contados por aqueles de quem não se despediram. Vi os corpos separados, retalhados pelo aço, suspensos dos destroços. Cada história que conheci era a minha própria história. Também se eu morresse o meu patrão diria era o meu melhor funcionário, um filho quase, e uma mulher havia de chorar a minha falta e depois voltaria a haver sol lá no subúrbio de onde eu vinha e todos encontrariam no esquecimento a sua saúde. Isto tudo eu pensava ontem, no início do turno, a lembrar-me do 11 de Setembro e a ouvir os comentadores dizerem o contrário do que tinham dito anteriormente. E agora ouça a minha revelação e sinta a minha vergonha. Estava num grande desamparo. Tinha desaparecido a raiva e a dor, a dúvida e a euforia e a minha alma esvaziara-se como as ruas de Madrid depois dos funerais. Lembrei-me então que no 11 de Setembro, ao contrário, havia em mim, incógnito, um sentimento que me dava força e me mantinha alerta, bem diferente deste torpor actual. E foi com espanto que percebi que nesse verão eu estava à espera dos capítulos seguintes, da descoberta dos culpados lá onde eles estivessem, e do seu castigo. Partilhava do espírito de vingança. Como o público das salas de cinema de Dogville, tudo em mim estava pronto para aplaudir a execução sumária dos que tinham retirado a dignidade da vida à mulher que a menina Kidman representa.

Seu
Silvano

(recebido nA Natureza do Mal), mail, devidamente identificado.

Armas, germes e aço. Guns, germs and steel

Nas ilhas Chatham, a 800 quilómetros para leste da Nova Zelândia, séculos de independência do povo moriori terminaram brutalmente em Dezembro de 1835. A 19 de Novembro desse ano chegou um barco que transportava 500 maoris equipados com armas de fogo, cacetes e machados, seguido a 5 de Dezembro por mais 400 maoris. Grupos de maoris começaram a andar pelas povoações morioris, anunciando que os morioris eram agora seus escravos e matando os que se opunham. Uma resistência organizada por parte dos morioris podia, nessa altura, ter derrotado os maoris que estavam em desvantagem numérica de um para dois. Contudo os morioris tinham uma tradição de resolver as disputas pacíficamente. Decidiram numa reunião do conselho não ripostar, mas propor a paz, a amizade e uma partilha de recursos.
Antes de os morioris poderem apresentar a sua proposta, os maoris atacaram em massa. Durante os poucos dias seguintes mataram centenas de morioris, cozinharam e comeram muitos dos corpos e escravizaram todos os outros, matando-os nos anos seguintes, conforme lhes dava na gana. Um sobrevivente (moriori) recordou: "(Os maoris) começaram a matar-nos como ovelhas. Ficámos aterrados, fugimos para o mato, escondemo-nos em buracos no chão e em qualquer lugar para escaparmos aos nossos inimigos. Não adiantava nada; éramos descobertos e mortos- homens, mulheres e crianças, indiscriminadamente."
O resultado brutal dessa colisão podia ter sido previsto. Os morioris eram uma população pequena e isolada de caçadores-recolectores, apenas equipados com as mais simples tecnologias e armas, totalmente inexperientes na guerra e sem liderança forte ou organização. Os invasores maoris (da ilha norte da Nova Zelandia) vinham de uma densa população de agricultores, crónicamente envolvida em guerras ferozes, equipada com armas mais avançadas e actuando sob uma liderança forte. Claro que quando os dois grupos entraram em confronto foram os maoris quem chacinou os morioris e não o contrário.
(..) O que torna a colisão maoris-morioris singularmente sinistra é o facto de ambos os grupos terem divergido de uma mesma origem, situada menos de um milénio antes. Estes dois povos eram polinésios. Os maoris modernos são descendentes de agricultores polinésios que colonizaram a Nova Zelandia, cerca de 1000 DC. Pouco depois, um grupo desses maoris, colonizou as Ilhas Chatham e transformou-se nos morioris. (...) As duas sociedades perderam o contacto e desenvolveram-se a partir da mesma sociedade ancestral mas por linhas muito diferentes. As duas sociedades perderam até consciência da existência uma da outra e não voltaram a entrar em contacto durante cerca de 500 anos. Finalmente um barco de caça às focas que visitou as Chatham no trajecto para a Nova Zelandia levou a notícia de ilhas onde "existe abundância de peixe e mariscos, os lagos estão replectos de enguias e é uma terrra de bagas de karaka...Os habitantaes são numerosos mas não sabem lutar e não têm armas". Estas notícias chegaram para levar 900 maoris a velejarem para as Chatham.

Jared Diamond in Armas , germes e aço, Relógio D'Água, 2002

A outra globalização, por favor


Eu não quero esta globalização. Não mais melões regados com água glicosada, laranjas em agosto não, marmelada pré-congelada, marmelos só em setembro, castanhas em novembro, a maçã será o elemento comum todo o ano, espera as cerejas em junho, apalpa os pêssegos de julho, não tragas andorinhas no inverno, o kiwi o elemento nulo — leva-os todos&mdash, e pior que tudo leva as pipocas de microndas 100% estalidos garantidos e aroma incluídos, dá-me a fruta com bicho, des-envernizada, des-calibrada, se esta sabe mal morde-seoutra à pressa, mas dá-me sabor porra. Esta globalização que é homogeneização, omo-geneização, omo lava mais branco, não quero, mas podem deixar-me a máquina de lavar louça, Tragam a outra, a certa, por favor.

PC (não ponhas em bold, escrivão, o meu nome)

percebo que és tu por agora o escrivão solitário, não sei como conseguirás porque baralhas o mail. imagino o template a esboroar-se e tu numa cadeira a escrever tranquilo sem ligar que fazes mais pó de cada vez que publicas. só páras quando já não vês as teclas. levantas-te e vais para as smss.

abraço,
PC.

15 março 2004

Oh, o beijo-borboleta

Sous les pavés é um blog imperdível: os descalceteiros, o manifesto que anuncia Sousa Franco e o elogio do beijo-borboleta, por Tawzeeto. O que era um prazer para a inteligência é agora também um gozo para os sentidos.

Grande Coligação

A matança de Madrid, e a resposta eleitoral subsequente, colocam questões que têm de ser debatidas de forma alargada e para lá do quadro habitual. As necessidades de combate ao terrorismo, e as limitações das liberdades que pressupôem, implicam um consenso de tipo novo. Os sectários de direita de que fala a Praia têm que ser derrotados eleitoralmente, nos USA e na Europa. A esquerda tem igualmente que rever conceitos e estratégias que o actual confronto tornou obsoletos. Para levar a cabo uma política de segurança interna e externa e respeitar os direitos e liberdades exige-se um governo mais representativo do que aqueles que as democracias ocidentais têm gerado, um governo saído da cidadania e onde os eleitores se revejam e confiem. Um governo de grande coligação, englobando os partidos com assento parlamentar, à semelhança dos que se constituíram nos países democráticos depois das grandes hecatombes civilizacionais.

14 março 2004

O Escrivão Bartleby na Encruzilhada

Hoje à tarde quando bati à Janela ninguém abriu. El@s tinham postado e saído para o chá. Como conservei a chave desde a ocupação do carnaval, fui à volta e preparei-me para entrar. Ao rodar a chave, ela resistiu e ouvi um restolho no interior. Quando me preparava para bater em retirada a porta abriu-se. Era ele, o escrivão. Muito pálido, cabelo em desalinho e uma T-shirt preta que dizia NO. Reconheceu-me, mas não mostrou grande emoção. Tentei entabular conversa. Disse-me que estava sózinho. Atirei-lhe com aquelas banalidades com que se rompe o gelo. Tenho gostado muito do blog, sabe. Você deve estar a fazer um excelente trabalho... invisível. Então logo à noite vemos o ARTE. Ele interpreta a Pina Bausch divinamente, não acha. - Coisas delas. São tudo coisas delas, foi tudo o que lhe consegui arrancar.
Ocorreu-me de súbito que talvez ele gostasse de vir até à Natureza do Mal. -Temos um biombo, uma escrivaninha, ginger-nuts. E muito livros. Olhe, Moby Dick por exemplo. E a obra completa do Vila-Matas, El Mal de Montano lido em vários lugares, Ele y Compañia, París no se acaba nunca. Podíamos fazer leituras partilhadas... Venha, vai ver que não se aborrece.- Preferia não o fazer, foi o que respondeu.
Talvez fosse da luz fraca do corredor. Mas pareceu-me ver-lhe nos olhos uma hesitação.

Porto Pim


A praia de Porto Pim com araucária ao fundo. Enviado pela Cristina.

Nada

Uma Hárpia houve que viu o Mal e a pior face do Mal, a nota de Culpa que Ele apresenta às vítimas para ilibar os algozes. Outros viram no silêncio comprometedor que o governo de Aznar guardou sobre a marcha das investigações uma manipulação intolerável, e vieram para a calle Genova, gritar contra o PP. Havia algo de patético na sua coragem e eu percebi que era o seu modo de chorar os mortos e a impotência para modificar o curso do mundo. A Ana queria as palavras de alguém que lhe restituísse a vontade de viver. Mas esses, os poetas das tascas de Madrid e Barcelona, estavam mortos.
Sobre tudo isto escrevo nada.
Wittgenstein: Um nada servirá tão bem como uma coisa acerca da qual nada se pode dizer.

O arrumador do Estádio do Dragão

Insuportável o tom com que o opinion maker se referiu a Ana Drago. Se os directores dos jornais onde ele escreve lhe pagassem ao mês, independentemente da obrigação de apresentar trabalho, talvez fôssemos poupados a coisas como esta. Que me interessa o que é que os seus amigos chamam, nos salões, à Ana. Há, no opinion maker, um lado fútil que provoca náuseas. Desde que o vi a fazer stand-up comedy na festinha do Moniz que fiquei esclarecido sobre as suas potencialidades de comediante. E já agora: quando quiser invocar a Natureza em defesa das suas opiniões, faça um pouco mais de trabalho de casa, por favor.

Una nueva era de pesadillas

Si el atentado de Madrid fuera obra de Al Qaeda, los ciudadanos, quizás, tardaríamos mucho en asimilar esa información porque todo el mundo se siente más seguro pensando que se ha tratado del zarpazo de despedida de una organización, ETA, que está en sus últimas, por muy terrible que haya sido el golpe, que creyendo que se trata de la tarjeta de visita, y de presentación, de una organización nueva, potente e muy cruel, que augura una nueva era de pesadillas. Incluso ha dado la impressión de que esta era la actitud del gobierno y que se resistia a aceptar la idea de que España podia enfrentar-se ahora, ademas de a ETA, a otra organización terrorista todavia más infame y mucho más secreta.

Soledad Gallego-Díaz (El País)
Tren 17305
Tren 21431
ESTACIÓN DE ATOCHA


Tren 21435
ESTACIÓN DE EL POZO


Tren 21713
ESTACIÓN DE SANTA EUGENIA

13 março 2004

ábaco de Suan-pan

A soma é a melhor das operações, se as parcelas agradam. É mais complicado se temos de multiplicar, trabalho por números, tarefas rotineiras. Subtrair alivia o corpo e liberta o tempo. O pior mesmo é dividir quase nada por por muitos ou se um delicioso excesso fica uma simpática atenção. Da raiz quadrada e cúbica não digo nada mas fica o ábaco de Suan-pan.

PC

uma alternativa fiável

- olá, então?...
- pois...

Pois é, ainda não há uma alternativa fiável ao comentário do boletim metereológico. Quem saab, com termómetro de exteriores, ajuda ao degelo matinal.

- tá-se?
- tudo!
- pois...

PC

SOU DE LÁ FORA

“.. depois o açor elevou-se mais alto, já ponto indistinguível”

A luz aconselha o regresso à estrada que larguei junto à casa do Museu do Vulcão dos Capelinhos. Uma seta sinaliza o trilho. Volteia a tracejado pela encosta arborizada num percurso aberto pelos caixeiros viajantes dos serviços de turismo. Vou mais rápido pelo sulco das águas, puxado pela gravidade, e já no último raio de luz piso o alcatrão. Da falésia chega-me uma canção, um canto, uma melodia, primeiro baixa e lânguida e depois aguda, chamamentos, presságios. Faróis intermitentes seguidos do motor trazem um automóvel, que recebo de polegar esticado a tentar a sorte.
Entro para o banco de trás, uma mulher magra ao volante sorri-me imprecisa. Ao lado outra mulher, uma mulher apanhada por um mal que reconheço, sussurra – “tem de haver uma certeza: se não de amar, pelo menos de não amar”. Mas eu sou pobre de certezas e também de incertezas destas, entreguei as pratas na tabacaria, solitário no veleiro azul, o meu cão e as brumas é o que me resta, e algum gin, liso, em noites de sorte. Não sei que dizer, a mulher magra diz-me com convicção que as palavras inúteis devem desaparecer. Concordo inexpressivo, sem perceber se é um sinal para que fale (afastei-me há demasiado tempo do mundo dos homens, trago em suspenso o mundo das palavras, o meu grito não é o grito do açor desde que saí, quase sem esperança, em busca da mulher a quem direi uma única frase). “Sim, sou de lá fora”, fui sempre, em cada sítio, em todos os sítios. Calo-me, por vezes cruzo vagamente o olhar no retrovisor, parámos mais de uma vez.
A mulher de cabelos pretos despede-se- despede-me. Elas caminham juntas com o passo natural de quem vai entrar sem notar o porteiro brutamontes que dobra reverente a espinha. Eu fico ainda a ver a praça, as árvores, o cintilar do mar e o cigano que toca realejo. Tropeço na hesitação de um homem de smoking. Terá outra sorte que eu, sigo para o cais (continua talvez)

André Bonirre

As fontes de Furnandes

No editorial de ontem de manhã o sor zé manel furnandes discorria sobre o atentado de Atocha e a sua autoria dizendo que as características do explosivo apontam para a ETA. Ao fim da tarde (20H) o director de El Pais fazia uma declaração pública aos microfones da antena Um interrogando-se sobre alguns aspectos inéditos no comportamento do governo no que diz respeito à investigação. Um deles, que segundo ele nunca aconteceu anteriormente, é o de ainda não ter sido revelado que tipo de explosivo foi usado. Furnandes recebeu seguramente informações dos que lhe mostraram as armas de destruição massiça do Iraque, antes da invasão.

Manuel António Pina

Agora mesmo na antena um, um Pina em grande forma assegura-nos que o mundo está melhor que na sua infância, melhor que há dez anos.

O que o Pina quer ser
quando for grande e crescer
é voltar a ser pequeno

e nascer e desnascer

Continuar


Não enfraqueceu o pudor de falar de outras coisas sem que nos gele o riso a memória do sangue derramado, ainda quente; a dor dos que cairam em Madrid. Indiferente às grandes tragédias o sol da primavera surgiu grandioso. Nós sabemos que isso significa nada, mas vamos continuar, porque é assim que está escrito na natureza do mal.

12 março 2004

Não nos misturemos demasiado

Eu vi, há um ano em Madrid, a mais comovente de todas as manifestações com que os povos da velha Europa se opuseram à guerra. E os que nesse dia ocuparam as ruas da cidade eram os mesmos que ontem caíram, quando de manhã iam para o emprego, sem se lembrarem que uma guerra não declarada está em curso. Não são os senhoritos que hoje vão falar nas manifestações, com uma lágrima em Atocha e a atenção já toda virada para as eleições do próximo domingo. Eu hoje quero estar com a minha gente, que não percebe nada de geoestratégia, nem de cálculo político, nem do funcionamento dos serviços secretos, nem dos grandes negócios do século. Aqui ou no Iraque, resta-nos alguma coisa mais do que sermos o exército eleitoral de reserva, as vítimas inocentes? Eu sei que nestes dias é grande o apelo para nos juntarmos e acreditar que que o que sentimos pode salvar-nos, e à humanidade. Mas devíamos manter a lucidez suficiente para não nos misturarmos com os negociantes de armas e de gente, os apóstolos das ideologias salvíficas, os prosélitos de religiões.
O vosso silêncio é demasiado ruidoso. Se é o silêncio a reacção mais adequada quando não se pode acudir ao sangue, porque insistem em falar.

11 março 2004

Mortos em Madrid

A ETA é uma organização repugnante. Politicamente repugnante. Ideologicamente repugnante. Os países bascos, sejam lá o que forem, vivem em democracia. O que a ETA faz é matar, amedrontar, intimidar, assassinar.

Vago, impreciso, brumoso

O meu pai sobreviveu a uma hospitalização animado por um pensamento salvador. Quando tivesse alta da enfermaria mergulharia numa piscina de águas frias que lhe dialisariam o sangue entrando pelas axilas e saindo pelas virilhas. Eu saí da Penitenciária de Coimbra, este Verão, cego para outro projecto que não fosse procurar uma pessoa. A que escrevera palavras que me tinham dado a força necessária para não enlouquecer, na iniquidade da cela solitária e do balde higiénico. Alguma certeza deve existir, repetia. Se não de amar, ao menos de não amar. E essa certeza, que se confundia com a resposta a questões decisivas para poder voltar a existir, olhar-vos nos olhos, pedir um emprego, passava por saber o que tinha levado a mais promissora das vozes a procurar a invisibilidade da sua escrita e assim selar, simbolicamente, o fim da literatura.
É mentira que André Bonirre tivesse ido, a meu pedido, aos Açores. André e o que restava dos meus amigos, a minha irmã, e mesmo ela, a mulher a quem tanto julguei amar, tinham ido a banhos, à medida que o calor, os fogos e as férias judiciais tornavam cada vez mais improvável a concessão da minha precária.
Cheguei sozinho à cidade da Horta nos finais de Agosto, antes das festas do Mar, a tempo de alugar um quarto na pensão que fica por cima do Café Internacional. No voo tive febre, suei muito e ao sair do avião as condições metereológicas pareceram-me pouco adequadas à época . Não conhecia ninguém, ninguém me esperava. Fiz o trajecto para a pensão em silêncio, tremendo ao lado do motorista do táxi. Enfiei-me na cama, talvez tenha dormido. Ao acordar escrevi algumas notas de um desespero brando num caderno de capas pretas que ainda guardo. Saí para a rua e ainda era manhã. Nesse dia que me pareceu sem fim caminhei junto ao mar até Alagoa. Na praia um grupo de gente puxava para terra o cadáver de um peixe grande, cinzento, luzidio. Voltei ao Castelo e desci as escadas para a praia de Santa de Cruz. Os iates dos navegadores solitários alinhavam-se no porto e um barco grande exibia a bandeira da Áustria, o que me pareceu espantoso, porque desconhecia que esse país tivesse frota. Tinha frio e reparei que quase ninguém tomava banho. Depois subi ao largo e entrei nos Bensaúde. Pediam homens para a Companhia Inglesa de Cabos Submarinos, mas pagavam mal e não especificavam o tipo de tarefas exigidas. À saída, um rapaz disse-me qualquer coisa que não entendi imediatamente: Ao pé da Capitania estão homens a contratar pessoal para a Companhia Alemã. Pagam melhor. Não lhe liguei e continuei a caminhar até Porto Pim. Não havia nenhuma mulher em Porto Pim, só sangue, sangue de baleia e as vísceras ocas da baleia inchando no mar calmo de Porto Pim.
Voltei a tempo de ver a chegada do barco do Pico. Era sempre manhã, com vento e nevoeiro. O barco tinha uma vela gigante e vinha carregado de crianças esverdeadas, arrastadas pelas mães, de doentes de maca ou apoiados em familiares, tantos que não pensei que o barco do Pico tantos comportasse, e carros, pipas de vinho, sacas, caixotes selados, arcas. O desembarque fez-se em silêncio, como se o nevoeiro recomendasse uma solenidade absurda e abafasse todos os sons. Tropeçou em mim, sem me ver, uma mulher magra que se voltava para se certificar que os acompanhantes a seguiam. John, ouvia-a chamar. E vi um homem com ar de holandês desabituado ao sol a ajudar um rapaz a equilibrar-se no pontão.
Depois, ao fim da tarde, o sol apareceu e com ele o mar e a ilha do Pico. Esquecera-me da minha missão. A prisão, a falta de dinheiro, a deserção dos amigos, a morte iminente da literatura pertenciam a um passado que não era bem meu. Duas pessoas passaram ao meu lado e surpreendentemente falavam uma língua conhecida e era a minha.
À noite subi a rua Cônsul Dabney até à messe dos ingleses e fiquei vagamente a olhar a ilha defronte, as luzes da Madalena e da zona de fronteira, junto à costa. Um homem veio sentar-se à minha mesa. Disse-me que se chamava Thiers de Lemos e que tocava nessa noite no baile do Amor da Pátria. Fui lá, a seu convite. Barbeei-me, tomei banho e vesti o smoking que me emprestou. Dancei com uma mulher chamada Margarida. Desabituara-me do ópio, da doçura das mulheres, do perfume e da loucura das mulheres. Ainda não tinha acabado a primeira varsoviana e já ela me segredava que queria partir.
Eu tinha acabado de chegar. E havia duas coisas que sabia. Não era homem para ela. E alguma certeza deve existir. Se não de partir, pelo menos de não partir.

10 março 2004

Tombs

A Cristina não é quem eu pensava. Fartou-se do Escrivão Bartleby e quer matá-lo. O Escrivão é um homem de quem as pessoas fácilmente se fartam. Conheci-o no Dead Letters Office, em Washington, antes de arranjar emprego na Janela. Por comiseração a Cristina propôe que seja entregue à justiça e A Natureza do Mal a sua prisão.
Já somos quatro aqui. Não chega? O senhor Cutlet vê-se aflito para nos arranjar comida. Mas eu sei que não desistes e me vais entregar o fardo do teu Escrivão. Sabes o que te respondo (acentuando o não):
- Eu preferia não o fazer.

LOST IN TRANSLATION (3)

A Sofia escreveu assim “podia não ser um filme, se a câmara não estivesse ali”, mas a Sofia é, sabemos, uma incorrigível lírica compulsiva (vd. Zé Mário). O Luís escreveu que é uma história verosímil e sabe do que fala (vd. os 6 argumentos). Eu, reservado e secretivo, dizem, enquanto vou à pasta dos mails antigos, passo por uns lábios primaveris esquecidos com sabor a morango, e, agora que o encontrei, faço copy-paste de um relato que não foi escrito por mim:

“.. as margens eram só ribanceiras levantadas sobre o manto do rio e o único ruído era o das pagaias entrando docemente e depois parando por acordo tácito para que o silêncio do tempo geológico pudesse ser ouvido.”,

“.. mas os dias apagavam os fantasmas da noite e lá íamos, maravilhados com o grande rio, os grifos, as águias de bonnelli, os abutres do egipto, o zimbro e as zambujeiras das ravinas, os braços e os ombros bronzeados de algumas remadoras.”

André Bonirre

A gargalhado do fan Número Um

Hoje, às 21H30, no TAGV, Stand Up Tragedy com Tiago Rodrigues e Nuno Costa Santos, das Produções Fictícias. A história de um rapaz que era o palhaço da turma a quem diziam: "Conta lá uma piada!".

À ROSINHA, NO RASTAFÁ

O Tobias, como um filho, ressona no sofá, esbraceja e esperneia corridas de pássaros e cheiros, lambe-se e engole em seco, sonhos imundos, sacos do lixo e peúgas, o rafeiro está bêbedo de sono, eu também (Isabel, boa noite, beijos às meninas).

André Bonirrre

09 março 2004

PODIA SER EU

Provavelmente podia ser eu: precária educação, esse olhar, podia bem ser eu. Mas desminto, eu não vi o touro a cair à água.
Bravura, uma queda, confiança, tudo junto, pode ser o meu amigo F. que me contou a história do tripulante que caiu do andaime e que foi abençoado com o mijo do leão da jaula do circo e as sete noites que guardaram em vinho o resto da história.. mas o F., sim, para além de ser de confiança, tem muito mais que os rudimentos, tem o que se pode chamar uma esmerada educação.
Não, não foi o F. o rapaz desiludido no Cais do Pico. Outros meus amigos, provavelmente não foram, todos más companhias, nem eu mos recomendo (sem contar com o Luis, de total confiança; aqui todos perdemos logo a confiança quando o metem na Penitenciária).

(..) Mas vi-a naquela única mesa de onde se vê o pico do Pico. Fui eu? Serias tu, Luis ? [continua]

André Bonirre

Antologia de O Mal: Maria do Rosário Pedreira

Nunca soube o teu nome. Entraste numa tarde,
por engano, a perguntar se eu era outra pessoa-
um sol que de repente acrescenta cal aos muros,
um incêndio capaz de devorar o coração do mundo.

Não te menti; levantei-me e fui levar-te à porta certa
como um veleiro arrasta os sonhos para o mar; mas,
antes de te deixar, disse-te ainda que nessa tarde
bem teria gostado de chamar-te outra coisa- ou
de ser gato, para poder ter mais do que uma vida.


Maria do Rosário Pedreira
Nenhum Nome Depois
Gótica, Lisboa 2004

Maria do Rosário Pedreira

Em 2001 foi um dos meus livros preferidos. Se teve algum êxito de vendas julgo ter contribuido modestamente. Acho que todos os meus amigos o leram. Na noite em que André Bonirre encheu a casa amarela e me sentei num canto a ler, O Canto do Vento nos Ciprestes era um dos livros da bagagem. Li em surdina
a noite é um poema
que conheço de cor e vou cantar-to até adormecer
.
e
A voz sem palavras, um livro lido
às escuras, um bilhete cifrado deixado nnum hotel,
um velho calendário cheio de desencontros. Não,

não há memória deste amor.


e outras das mais pequenas histórias do mundo.

Lembro-me do dia em que encontrei o livro e de como o li no café da Foz, ao almoço cheio de sol e vento quando nalgumas mesas confraternizavam os que, dois anos depois, iriam fundar os blogs do norte.
Maria do Rosário Pedreira compunha um personagem assustador: uma mulher que permanece fiel ao homem que a abandonou e prepara a casa, a mesa, os lençóis da cama, para um regresso que percebemos não virá a acontecer. Os poemas eram perfeitos, alinhados num gume de extremo risco mas mantendo o mesmo fôlego e a mesma coerência. Poemas para serem ditos como a Duras aconselha que seja o texto de India Song. Com o tempo afastei-me da poesia de Maria do Rosário como de uma doença, uma fraqueza, um lado mau de mim. Há tempos estive à beira de um sacrilégio: aconselhar a sua leitura como elemento curricular obrigatório da Educação Sentimental para o uso dos rapazes que porventura lêm os blogs. Eles devem aprender a não abraçar as mulheres que vão deixar. Ou serão para sempre perseguidos pelas que não sabem esquecer. Felizmente parei, à beira da injustiça.
Hoje, como já noticiou a Sandra, Maria do Rosário Pedreira editou Nenhum Nome Depois. Os nomes inúteis- os nomes dos que podíamos ter amado; Os nomes interditos- os nomes que são ditos no sono, em vez do nosso; Os nomes de família- belíssimos poemas aos pais; Nenhum nome depois- porque esta mulher só encontrará corpos a quem dará o nome que esconde, o nome do amado, o único nome.
A evitar absolutamente, esta poesia que pode envenenar 2004.

08 março 2004

Contributo para a compreensão do encerramento do DL (1991)

"Que saudades! Foi um ano, o último, mas ainda fui a tempo."

6+2 razões que explicam a superioridade do Público sobre o DL

Alexandra
Ana
Graça
Isabel
Leonete
Maria José
ass: Luís, André, PC

PS: Luciano
João Pedro
ass: Sofia

ENCONTRO DE PRONÚNCIAS

Velas, Madalena, e fósforos também. Velas, Madalena para ir à bolina. Velas, Madalena, é só na revisão dos 25 mil. Velas, Madalena, logo ao jantar (ou na lição de lingerie). Velas, Madalena, olha, que Cais! Velas, Madalena, cuidado que cais (é o queijo no cais). Velas, Madalena, cancelado, mau tempo no canal (alguém salve o lastro sentimental). Velas, Madalena, e os mares do sul, ohhh, eu nunca fui lá.

André Bonirre

CONHECIMENTO E CRENÇAS

Eu, André, não sou Luis, sou Carlos. O Luís, que não é André, é Carlos. Eu, Carlos, não sou André, e sou. Alto e pára o baile, lá me estou a baralhar com as malditas lógicas...

André Bonirre

Re: O cheiro das ruas

A primavera está sempre pronta para as mulheres. Os homens percebem a sua chegada no descuido ponderado do corpo das mulheres.

Genesis

O momento em que tudo pode começar é quando, num elevador, uma mulher sorri.

O meu nome é Luís

André Bonirre é um amigo meu. É o meu melhor amigo, mas não sou eu. No Verão, estando eu preso na Penitenciária de Coimbra por tráfico de droga e assim impedido de participar na euforia dos blogs, pedi-lhe que acompanhasse a minha irmã aos Açores à procura de uma mulher que não queria ser encontrada. Ele acedeu sem pensar duas vezes. André Bonirre é generoso e disponível. Bastou-lhe ouvir que a literatura estava ameaçada de morte. Que as pessoas que a poderiam salvar tinham, por motivos vários, rumado às ilhas e começado um processo de desvanecimento. Quem ele encontrou no Faial, na Madalena ou no nos canais que atravessam o Pico, é algo que espero vos possa vir a contar. Mas o que ele fez- e a minha irmã presenciou- foi ele que o fez, embora me agrade pensar que o fez por mim.
O André tem formação em ciências mais exactas do que as que aspiro a dominar. As mulheres acham que o André é de confiança. O André cozinha e faz compras para a casa, deita-se cedo e acorda o mais tarde que pode, não sabe o nome da lingerie feminina, tem a cara rapada. É ele quem vê a salamandra na sua toca e conhece as aves pelo vôo. Embora o modo como descreve os seus dias úteis pudesse ter sido escrito por mim eu não seria capaz de o imitar. Mesmo que quisesse eu não saberia imitar o meu amigo André Bonirre.

Trilho dos Prados (Gerês)

Eu dissera a Rosa Montero que o passeio começava na Portela do Homem. Chegámos tarde, por problemas técnicos, e o percurso iniciou-se, de facto, em Leonte. Subimos ao Vidual e depois à Portela do Vidual e voltámos para Norte ao longo da Lomba-de-Pau. Depois avistámos os dois Prados do Conho, onde a moreia se adoça. Ocupado com o caos de blocos rosados que caíam atá o circo fui o último a chegar. Os meus amigos ocupavam uma mesa de pedra improvisada e repartiam as comidas. O André Bonirre, comedor insaciável, estava uns metros acima, sentado como um camponês, a comer a carne que as meninas, nas vésperas, tinham amorosamente assado. Ficámos a ouvir as gargalhadas do grupo, exageradas pela excitação das alturas e do cansaço dos corpos. Depois andámos pelos charcos de altitude até ao Prado da Messe, o maior dos prados do Gerês, onde el-rei D. Carlos caçou e edificou uma construção precária. Descemos a Costa da Saborosa até ao destino, a Albergaria. Era o fim do dia e o céu abriu-se naquela cor tranquila. E vimos as torres de granito, os inselberge, as medas e os borrageiros, os caprichosos tor. Acabámos de noite, fraccionados, segundo as afinidades e a qualidade das botas.

Lost in Translation (2)

Não é apenas um filme muito lindo entre um homem perdido e uma mulher esquecida. É uma história de amor intergeracional. Sabe-se que histórias destas acabam em punições exemplares (cf. Disgrace de Coetzee). Aqui a história é verosímil porque 1. Tóquio é um ponto de passagem 2. Tóquio é o estrangeiro onde quase ninguém fala a nossa língua 3. o jet-lag opera uma diminuição da consciência e da vontade 4. a rapariga confronta-se com o erro da sua escolha natural-aquele fotógrafo ressonador meio-anormal 5. o homem percebe que a cor do sobrado do escritório, a bem dizer, não lhe interessa 6. o beijo em que se encontram é simultâneamente o beijo de despedida.

07 março 2004

Oh as raparigas árabes

Resisti muito tempo em escrever sobre as burkas. Não será hoje ainda que o farei. Mas o post de Claire lembrou-me duas histórias que devo contar. O Islão actual não é uma longa noite de tédio e repressão, um cruzamento entre a idade média europeia e a repressão sexual vitoriana. Uma amiga que visitou Teerão garantiu-me que, discretamente, protegidas dos bairros populares, as mulheres sofisticadas usavam maquilhagem pesada debaixo dos lenços. E este Inverno, em Londres, entrei numa loja do Agent Provocateur para escolher uma pequena surpresa. Sentei-me num canto, sem alarde, enquanto me decidia. Havia poucos clientes, o suficiente para mobilizarem as empregadas e eu passar despercebido. Entraram duas raparigas árabes de rosto tapado e roupa escura, que lhes apagava as formas como mandam os preceitos dos imãs a que obedecem. Deus é único e escreve por linhas tortuosas. A mente humana não suporta noites tão prolongadas e a sabedoria das mulheres árabes é discreta como um regato de montanha. Eu tomei nota do que elas provaram, escolheram e mandaram embrulhar: Soutiens de modelo Abigal Soft Cup Bra e Leila Peep Bra; Tangas; Strings; um corpete Babette Basque de cor fucsia e outro modelo Diva; briefs, tops e cintas de ligas.

DIAS ÚTEIS

Ligar o computador todos os dias ler a Sofia, descobrir se a minha vida não é a minha vida, entreabrir a janela, respirar a espuma do mar, dar uns passeios de esquerda e uma volta no metro, rir, ouvir o catano da pronúncia do norte (e os sorrisos de monalisa, viva a glória vanessa), terças, sintonizar a dois, às 17H15.

André Bonirre

05 março 2004

CARIDADEZINHA

Acabei de chegar de uma reunião. Aprendi imensas palavras novas.
O Sr. Pinheiro não abriu a boca, concentrado em tirar o resto da graxa que usou nos sapatos da unha do dedo, abriu só para dizer: "Óra Béim, isso bai das pessouas, num é?"
A Nini ensinou-me um rol de vocábulos: "eziquivél", "purmuver a auto-estima das crianças negrinhas", "ser o arauto das minorias", .. "varreusseme da ideia".
A Dra. Albina, "eu tenho um fascínio grande pela política", resumiu tudo na despedida: "As camadas mais desfavorecidas da população necessitam de nós, que nós pensemos por elas e lhe deiamos as soluções que a vida, muitas vezes ingrata, lhes renegou".
Quando for grande quero ser uma camada desfavorecida de um bolo de bolacha qualquer, só para me entregar, rendida, às mãos papudas e caridosas do senhor pinheiro, da dona nini e da dra albina.

Filipa Bonirre

TRABALHO ARTÍSTICO, SOB UMA PERSPECTIVA REDENTORA

Fui em trabalho de campo com ares de observador neutral e uma chapa na lapela – “em trabalho” – bem visível para evitar confusões. Levei os dois olhos na cara, atenção, concentração até, e recolhi testemunhos interessantes, reveladores do que pensam aqueles jovens que se acotovelavam no espaço. Ballet artístico, Arte, Mecenato, Negócio de Arte, foram as palavras mais escolhidas (jovens optimistas, seguidores de Adorno, pensei). “Adorno? Só se for das Caldas.”, responderam-me, e, Luis, por esses e outros motivos, não empilhes mais calhaus, o que os pais conseguiram foi só dar cabo dos passeios à procura da praia.

[ Casa de Strip em novo pobre, putas finas em rico antigo, e, em PS (salvo seja), declaro ainda que, também eu, numa perspectiva redentora, tenho alguns calhaus de reserva ]

André Bonirre

Rosita

Que bem que estavas, que linda. Como me tenho esquecido de ti, que injustiça. Não comprar o El Pais de 3ª feira (à 4ª não tem o mesmo sabor a tua crónica), passar pela Louca da Casa e pensar que te podia deixar para mais tarde, como se o que tu dizes não fosse urgente. Estavas tão bem que até o Francisco descontraiu. Rosa Montero, filha de Canibal, mulher de biografias e de paixões, jornalista que sabe a necessidade da clareza e do "registo notarial ", que quando é jornalista “escreve do que sabe” e quando é romancista “escreve do que não sabe que sabe”. Tu, que ainda viveste sob Franco, falaste do valor da Velha Europa: um espaço de liberdade, de cultura e de tolerância. Uma terra de exílio e de acolhimento. Disseste tantas coisas importantes. Tão bem ditas. Imperdoável o Francisco não ter aproveitado até ao último minuto a tua presença rara, filha de Conrad e de Borges, filha de Quevedo e de Proust. Disseste: “Ler é a parte mais rica da minha vida”. Disseste:” A vida imaginária é real- toda a imaginação que usamos para viver”. As tuas mangas de malha preta em cima da blusa estampada do Custo ficavam bem. Não vás nos conselhos do Francisco. Passeios portugueses de automóvel? A pé, no Gerês, que é uma serra ibérica. Começamos já amanhã na Portela do Homem. Às nove e meia, combinado.

Rosa Montero
A Louca de Casa
ASA

04 março 2004

FECHAMOS ÀS 23

Hoje fechamos às 23 horas e só reabrimos no fim - NTV, hoje, 23 horas, o Livro Aberto do Francisco José Viegas, com Rosa Montero, autora de A Filha do Canibal e Histórias de Mulheres.

LINK

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André Bonirre

Chamem a polícia

Ivan Nunes escreve sobre a incomodidade que sente quando os que têm outra razão que não a nossa chamam a polícia. Também me incomoda que invoquem o santo nome de deus. Mas pior do que isso é que julguem falar em nome dele e não o revelem. E incómodo mesmo é que não tenham percebido uma grande lição do século passado: se nos preocupamos excessivamente com o homem futuro e fechamos os olhos às mulheres e aos homens reais e ao seu sofrimento abrimos a porta aos grandes monstros da Razão.

Sous les pavés la plage

Este grafitti, em tempos incendiário, perdeu-se provávelmente para o imaginário actual. Mas o blog que o foi buscar é uma leitura obrigatória. Tiago Barbosa Ribeiro anima o debate em torno da IVG e faz um comentário justamente indignado ao lamentável debate parlamentar. Rui Bebiano, Cristina, CaOs, Tawzeeto e A. Gonçalves são inteligentes, bem humorados, cultos e tentam lançar sobre esta realidade o tal olhar redentor de Adorno. Tentaremos ver todos os dias a praia que está sous les pavés . À cautela vou empilhando os calhaus.

Via Latina

Hoje estará à venda nas bancas Via Latina, agora editada pela secção de Jornalismo da A.A.C., tendo com director Mário Guerreiro e directores adjuntos Emanuel Graça, Lurdes Lagarto e Gustavo Sampaio. O tema deste número que, treze anos depois, retoma um título da imprensa académica, é ]Globalizações no plural[ Um dos artigos mais interessantes é assinado por Rui Bebiano e propôe um desafio: a integração no imaginário actual, de práticas e códigos capazes de integrarem, para além da predisposição solidária, a atitude crítica e criadora. A capacidade de pensar o mundo inteiro, no diferente e no semelhante, com a convicta interferência desse olhar pessoal que é capaz de "contemplar todas as coisas como se elas se apresentassem sob uma perspectiva redentora" (Adorno).
Outros artigos de interesse: Gustavo Sampaio- o Forum Social Europeu, notas sobre exposições de Isaque, o caso Prestige narrado por Miguel Oliveira com belíssimas fotografias de André Cepeda (da série Finisterra), um relato da iniciativa "Rota dos Escritores do Séc.XX" por Ana Saturnino, uma alocução de Ana Cristina Santos, activista da não te prives- Grupo de Defesa dos Direitos Sexuais. Alguns dirigentes políticos assinam artigos de interesse desigual e duvidosa adequação ao tema.

03 março 2004

Aristides Sousa Mendes: (mais) um estudante de Coimbra

Há pouco na TSF: Mário Nunes, na qualidade de presidente da Comissão de Toponímia da Câmara de Coimbra recusou a proposta de Aristides Sousa Mendes para uma rua da cidade. Os argumentos terão sido: 1º) Não há de momento rua, beco, viela, travessa, largo ou praça disponível.(Haverá em breve uma Avenida junto ao novo Estádio mas, com naturalidade, receberá o topónimo do mais recente benemérito coimbrão, o senhor Américo Amorim). Esta justificação constitui, só por si uma limitante absoluta, mas o presidente quis-lhe juntar uma outra:2) "Aristides Sousa Mendes foi só mais um estudante que passou por Coimbra".
Mário Nunes é um simpático edil a quem foi distribuído o pelouro da cultura popular e que se tem destacado na perseguição aos canídeos. Geralmente não é lhe é concedida a palavra em temas complexos que ultrapassem o âmbito das suas competências. Publicou recentemente o livro O Brasão de Coimbra (estás a ver Alex?) e mais recentemente ainda As Ruas de Coimbra, onde não previra tamanha honra para o nosso cônsul. Foi certamente para que o seu livro não se desactualizasse rapidamente que tomou agora esta fundamentada atitude. Aguardamos atentamente a reacção dos Mostrengos.

Rilkiana para a Sandra

Se tu gritares, nós ouvir-te-emos, entre as hostes dos anjos do Mal.

Tendencioso

Gosto demais de cinema para escrever sobre os óscares da indústria. Se eu fosse da Academia já se sabe. Miss Kidman só não ganhava o óscar dos efeitos especiais.

No país

Como podia voltar ali se tinha estado noutro sítio.

02 março 2004

DELÍRIO PARANÓIDE by MAIL

Estou a acabar de mudar a arma e a bagagem para um sítio até ontem desconhecido para mim...Descobri que esta minha dificuldade de controlo dos impulsos agressivo-terroristas e aquela pitada histriónica que de vez em quando me faz espirrar, podem ser, ao cabo e ao resto, promotoras de um maior bem-estar sócio-económico individual e colectivo. Passo a explicar. Vou para Marco de Canavezes, a terra com rei sem rock. Quero sentir-me segura, isenta e verdadeiramente integrada. Já estou farta de olhares de censura e de diagnósticos psicopatológicos negros. Vou para a capital da anti-psiquiatria. Vou para a comunidade terapêutica de Marco de Canavezes, onde a livre expressão verbal e não-verbal não tem, de facto, grilhetas castradoras!!! Só me falta pedir um subsídio de alimentação e transporte à autarquia.

Filipa Bonirre

QUE IMPORTA

Eles exportam aviões e porta-aviões. Ele importa minas (para o porta-minas). Que importa que nenhum guarde as luvas no porta-luvas?

André Bonirre

Cultura

"Cultura es aquello que el hombre usa, por ejemplo, el petróleo; y aquello que el hombre nombra, por ejemplo, una estrella. La Vía Láctea es parte de nuestra cultura; no es un valor de uso, como el petróleo, pero es un conocimiento, un saber sobre el cielo y es una imagen: fue un mito en la Antigüedad y ahora es una metáfora que usamos diariamente". Octavio Paz,1979

Bontempo

Em grande perigo

Fez um mestrado em escrita criativa (diz o Mestre). Deixou as más companhias, o blog, e quase só escreve nos jornais. Agora o Mestre iniciou o seu processo de beatificação. Em grande perigo está Pedro Mexia.

Antologia de O Mal: Helder Moura Pereira

Pela cidade ouvem-se vozes easy listening
e num ritmo que não sou capaz de transportar
sinto o mar que me transporta devagar
para um momento, o meu pequeno happening.

Queres tu saber a grande novidade?
A música é sem dúvida imortal.
Pode-se dizer isto assim com gravidade
ou evitar a conversa, dizer que não faz mal.

Vou escrever o destino do meu ser.
Mas é tudo contrário a um livro
que mesmo agora tiro da estante e abro
com as pontas dos dedos magoadas.

Serão daquelas palavras vulgares
e ninguém há-de vê-las, são só para ti.
É bonito serem só para ti. Se não achares
diz-me depressa que eu escolho outras.

Helder Moura Pereira, in Um Raio de Sol, Assírio e Alvim, Lxa 2000

Alexandra Lucas Coelho

Hoje, depois das 17H15, sintonize a antena 2.

Jemima Stehli

Um estudio em Londres, uma tela, uma cadeira e um homem sentado na cadeira. Esse homem é um escritor, um crítico de arte ou um dealer. Segura o disparador de uma máquina fotográfica que pode accionar quando quiser. À sua frente (à nossa frente), virada para ele (de costas para nós), está uma mulher. A mulher é alta, sofisticada, veste roupa desportiva e sapatos altos. A mulher é a anfitriã, a dona do estúdio, a criadora do cenário e das regras do jogo. Talvez atrás da máquina exista um espelho. Certamente que existe um espelho, através do qual o homem sentado na cadeira se vê, e vê o outro lado do corpo da mulher.
A mulher começa a despir-se. Despe a sweat-shirt cruzando os braços à frente do peito, tira os jeans, desaperta o soutien preto e fica nua em frente do convidado. A mulher não tira nunca os sapatos e nós percebemos que não sorri.
Que imagens captou cada um dos convidados? Como se sentou na cadeira? Para onde resvalou o olhar? Cada sequência de imagens lê-se primeiro no corpo revelado da anfitriã, depois no corpo e na cara do convidado e finalmente somos nós que olhamos, e olhamos por detrás do espelho.

Jemima Stehli está no cav, Pátio da Inquisição, de terça a domingo das 10H00 ás 19H00
O Catálogo foi ontem vendido com um jornal diário ( a tiragem limitada não chegou, como acontece, aos quiosques da cidade)

01 março 2004

Educação Sentimental

Aqui e ali (não disponível on line, mas procura o debate na Última Página do público de ontem), duas páginas para a tua educação sentimental. Sei que não aprendes mas estás atento. O texto do jornal copia-o e distribui às raparigas. Pode ser que nos seja útil. Em relação ao post vou-te dizer uma coisa que elas sabem e outra que desconfiam, mas não por esta ordem: Não há redenção para os rapazes maus. A virtude de Tim Robins chama-se Susie Sarandon.

SMS:SOS. A nova visualidade de Coimbra

Reposição da exposição. Até 2 de Abril (das 9 às 17:30h). No Colégio das Artes, organizado pelo Departamento de Arquitectura da FCTUC.
Vivamente aconselhado sobretudo se conseguir saltar a pirosada que evoca a crise académica de 69.

Cozinha Vegetariana

Hoje das 19:00 às 22:30h e até ao dia 4, na Cantina das Químicas (Coimbra), o Curso de Cozinha Vegetariana (10 Euros de inscrição).

Falar de Souad

Na semana passada aqui, Maria João Guimarães publicou algumas reportagens sobre Israel e a Palestina. Soubémos que existem organizações agrupando árabes e judeus cujos familiares foram assassinados pelo inimigo, que há mulheres de Israel a vigiar o comportamento dos soldados israelitas na fronteira, que há organizações que denunciam o que se passa em Israel com os objectores de consciência. Nós gostamos deste mundo em que as coisas não são a preto e branco. Eu gosto dos homens e mulheres que em Israel e na Palestina tentam contrariar a lógica do ódio, da vingança, do confronto religioso ou civilizacional.
É por isso que é bom encontrar pessoas como Alexandra Lucas Coelho, que ouviu falar de Souad, há muito tempo que ouviu falar de Souad, mas também ouviu falar de Nawal Al Saadawi e sabe que Souad não é um episódio da guerra israelo-árabe, nem sequer da guerra esquerda-direita, mas de uma outra guerra, mais global, muito mais antiga.