30 novembro 2003

Se

Se os meus olhos te incomodam
quando te olho de frente
não me importo de arrancá-los
para amar-te cegamente.

Mário Sá-Carneiro

Sobre o escritor funcionário público - com um pedido de desculpa ao Robert Walser

1.Um escritor é um criador com menos dignidade do que um actor, um bailarino, um músico, um cineasta. 2. Receber um subsídio do Estado torna um ecritor funcionário público? 3. Um cineasta que é subsidiado pelo Estado, ou por um organismo do Estado, é por isso um cineasta de regime? 4. Numa lógica liberal, com todos os bens mercantilizáveis, também a investigação deveria ser apoiada apenas pelas empresas? Os investigadores que preenchem aqueles horríveis formulários para a FCT sentem-se funcionários públicos? Sentir-se-iam melhores apoiados por mecenas? Os formulários das Fundações, dos Bancos etc, são melhores? E os deputados? Aquela saudável pulsão representativa, aquele ardor de servir o povo não poderia ser realizado, benévolamente, à noitinha e nos fins de semana?
Também acho horrível a cultura subsídio-dependente; a cultura dos que obtêm benesses sem concurso nem avaliação. Mas dormiria mais descansado se soubesse que o dinheiro dos meus impostos iria para um libreto de ópera ou para uma trapezista de circo que para o motorista do gestor público, ou para as despesas de representação do subsecretário, ou para as viagens do deputado.

29 novembro 2003

Desgraça

Vinte e Quatro Fim

É cada vez mais difícil. Mais difícil, mas também mais fácil. Uma pessoa habitua-se a que as coisas fiquem mais difíceis; uma pessoa deixa de se surpreender que as coisas extremamente difíceis fiquem ainda mais difíceis.

Pensei que fosse poupá-lo por mais uma semana. Mas afinal vai deixá-lo partir?
Sim, vou deixá-lo partir

Desgraça

Vinte e Três

Está a gastar imenso dinheiro. Não importa. 222

Disgrace, a história de um homem branco


Um homem, um professor branco na África do Sul post apartheid, encontra-se no início da velhice, só. Seduz- ele sabia fazê-lo, uma aluna, trinta anos mais nova, negra. Acusado de abuso, é julgado por um comité de pares, presidido por um religioso, provavelmente negro, e constituído também por representantes da sociedade (tipo rtp 2 no contexto sul africano). Admite a culpa, mas não o arrependimento, e é expulso.
Durante o processo está sozinho. Nenhum amigo ou colega ou camarada ou ex amante. A comunicação social comporta-se como era de esperar. O moinho de condenação.
Sai da cidade e procura a filha. Esta tenta iniciar, no campo, uma vida de agricultora. Talvez tenha sido anbandonada: cultiva plantas e tem um hospício de cães. Um negro comprou a terra contígua e ajuda-a nessas tarefas.
Numa manhã, um grupo de três negros agride o homem, manieta-o e incendeia-lhe a cabeça; abate à queima roupa os cães presos no canil; viola repetidamente a filha do homem. Os pedidos de socorro não foram ouvidos, porque o colaborador negro da casa ao lado se tinha afastado, nesse dia, para só regressar quando a agressão, o roubo e a violação estavam consumadas.
A polícia não fez nada. A mulher não participou da violação.
O ex - professor ajuda, benevolamente, uma mulher feia que tem uma clínica de animais. Escreve o libreto de uma ópera sobre os amores italianos de Teresa e de Lord Byron. Procura reaver a sua filha. Talvez tenha visitado a família da jovem aluna que o expulsou da sua vida de professor branco da Cidade do Cabo, a quem teatralmente, ajoelha um arrependimento que não sente verdadeiramente.
De um lado para o outro vive os seus últimos dias de errancia ciente de que só aos jovens a errancia é permitida. A errancia, o amor, a paixão, o sexo.
Afastado do desejo da aluna por uma dupla interdição: a da idade e a da raça. Embora a interdição da raça não seja nomeável.
Afastado do amor da filha por uma incompreensão da nova realidade: a Àfrica do Sul é um lugar de negros, onde o gado voltará a pastar em Rondebosch Common, o assalto e o roubo representam apenas a normal circulação dos bens usurpados, os genes do homem branco se misturam, como sempre, pela violação.
Resta-lhe esperar que o dinheiro acabe, num quarto que alugou com um nome falso e onde não lhe é permitido cozinhar. A sua filha será a terceira mulher do vizinho negro. A sua ópera nunca terminará. Entrega à morte, numa das sessões de lösung que se vão tornando cada vez mais difíceis, o único ser que o amava verdadeiramente e ouvia com deleite a sua música.

28 novembro 2003

Desgraça


Vinte e Dois
As pessoas não se dividem em principais e secundárias 209

Um pai que não sabe que tem um filho. É assim que tudo vai terminar, é assim que a sua linhagem se vai extinguir, como àgua que se escoa para a terra? 210

Começar do zero. Sem nada. Não com alguma coisa. Sem nada. Sem cartas, sem armas, sem propriedade, sem direitos, sem dignidade.
- Como um cão.
- Sim, como um cão 216

Desgraça

Vinte e Um
O casamento entre Crono e Harmonia; antinatura. Foi para punir esta junção que ele foi julgado, assim que todas as palavras foram despidas de artifícios. Julgado pelo seu estilo de vida. Se os velhos perseguirem os jovens qual será o futuro da espécie? Grande parte da literatura trata disso: raparigas jovens tentando fugir à opressão de homens velhos, para o bem da espécie.

Embora sejam seus compatriotas não é bem como um forasteiro que se sente no meio deles, é mais como um impostor.

Mantenha-se com os da sua espécie!

Não é má pessoa, mas também nãp é boa. Nem quente nem frio, mesmo no momento mais extremo. Falta-lhe calor. Será esse o veredicto que recairá sobre ele, o veredicto do universo e do olhar omnipresente?

Desgraça (continuação)

Vinte

O campo está a mudar-se inexoravelmente para a cidade. Em breve haverá novamente gado em Rondebosch Common; em breve a história completará o seu círculo.

O fim da vida errante. O que se segue à vida errante?
A vida de um erudito obsoleto, sem esperanças, sem expectativas. Estará preparado para isso?

Pilhagem; compensações de guerra; outro incidente na grande campanha de redistribuição. Quem andará neste momento com os seus sapatos calçados?

MADALENA NO CABELEIREIRO

Chegam por fax, com pré-aviso telefónico, ordens premeditadas com prazos impossíveis, “para cumprir”. Logo chegam, embrulhados em papel de marca, consultores multinacionais com costas largas e muito apetite. Fingem vir por magia. Guarda-chuvas e muitas promessas a troco de anéis por enquanto, entretanto, Madalena distrai os dedos, anda nos dois maços e, pelo sim pelo não, marcou cabeleireiro – couro e cabelo.

André Bonirre

Desgraça


Dezanove

Não foi o castigo que eu recusei. Não me oponho a ele. Pelo contrário, vivo-o todos os dias, tentando aceitar a desgraça como o meu estado natural. 184

Desgraça

Quinze
Deveria prantear? Será adequado prantear a vida de seres que não praticam o pranto entre eles? 137

Desgraça

Catorze
O inglês não é um meio próprio para descrever a realidade da África do Sul. 127

quem diria que teriam um fim tão rápido e repentino. A vida errante, a paixão. 130

Desgraça

Treze
Sente que dentro de si, um órgão vital ficou ferido, foi abusado- talvez mesmo o coração. 116

A vingança é como um incêndio. Quanto mais devora, mais fome tem.121

Desgraça

Doze
Menstruação, dar à luz, violação e as suas consequências: assuntos de sangue; o fardo das mulheres, a salvaguarda das mulheres. 113

Nunca foi seguro e não é uma ideia, nem boa nem má. Eu não vou regressar por causa de uma ideia. Vou regressar e mais nada.114

Desgraça

Onze
Já não tenho valor no mercado. 97

A minha defesa apoia-se nos direitos do desejo. No deus que faz estremecer até os pequenos pássaros 95

Ele fala italiano, fala francês, mas o italiano e o francês não o vão salvar aqui, na África profunda. 104

Morto ou matado? 105

Está sempre a acontecer. A toda a hora, a todo o minuto, em toda a parte do país- diz para consigo. 106
Nada de maldade humana. Apenas um vasto sistema circulatório, onde a piedade e o horror são irrelevantes. 107

levanta-se e abraça-a. Ao abraçá-la sente-a rija como um madeiro, não se rendendo nada. 108

Desgraça

Dez
Não são meros sarilhos. Estou metido naquilo a que se pode chamar uma vergonha. 94

amor sáfico: partilhando uma cama, partilhando uma banheira, fazendo bolachas de gengibre, vestindo as roupas uma da outra. 95

Desgraça

Nove
Deita-se ao lado da cadela abandonada no cimento despido 86
A alma. Não reconheceria uma se a visse. 87

As mulheres atarracadas de vozes horríveis merecem ser ignoradas? 87

Desgraça

Oito

E tu? É isto que queres da vida? Serve. 77

Desgraça

Sete
A história repete-se embora de uma forma mais modesta. 68

Desleixou-se, é o que acontece quando uma pessoa se retira do campo do amor 71

Deita-se cedo. Os cães a ladrar 73 Lamento

Desgraça

Seis
Está a abordar a questão com a atitude errada. 53
Não quero ler a declaração. Aceito-a 55
Culpado do que me acusam. É essa a minha alegação. 57

A proibição da intimidade entre gerações? 58
Como caçadores que encurralaram um animal desconhecido e não sabem como matá-lo 62
O arrependimento 63

Desgraça

Cinco
O moinho das bisbilhotices 49
As ex mulher… Talvez os jovens tenham o direito a ser protegidos contra a visão dos mais velhos nos espasmos da paixão 51

Desgraça

Quatro
A aula, Byron, Lúcifer e o anjo caído.

Desgraça

Três
Wordsworth e as palavras do amor: que sabe este velho acerca do amor? 27

Já chega! O som da própria voz enoja-o e tem pena dela, que tem de escutar aquelas intimidades dissimuladas 28

Os velhos: Comer com os olhos Podemos culpá-los por se apegarem ao seu lugar no banquete dos sentidos? 29

Um erro, um enorme erro 30

Desgraça

Dois
Vinho e música: um ritual entre homens e mulheres. 18
Desactualizado, fora do contexto, será que apaixonar-se saíu de moda 19
As palavras da sedução 22

Desgraça


Um:
O crâneo e depois o temperamento: as duas partes mais duras do corpo. 8

“Nenhum homem é feliz enquanto não está morto” (Édipo) 8

deslocado ( na Escola onde ensina): a indiferença dos alunos 10

…aqueles que vêm para aprender não aprendem nada 11

Nenhuma emoção excepto a mais profunda…11

Até que um certo dia tudo acabou. Sem aviso prévio, os seus poderes deixaram-no. 13

…uma limpeza do convés para se poder concentrar no assunto que mais ocupa os velhos: prepararem-se para morrer. 15

Visões aterradoras: exercitando-se no corpo de uma mulher 15

Desgraça

Não se ouvem nunca violinos na noite do horror. Um homem, à entrada da velhice, seduz (?) uma jovem de vinte anos. Vai pagar por isso. Aceita a sua culpa sem mesmo ler a nota. Porque haveria ela de dizer outra coisa que a verdade? Perde tudo. Quando voltar aos lugares que foram seus, os livros e os discos terão sido roubados (por um espaço onde só cabia um corpo de criança). E o seu cartão não abre já a porta da biblioteca. À queima roupa verá os cães a serem abatidos (eles mereciam-no, ensinados que foram a rosnar ao cheiro dos negros). Entorpecido pela dor saberá que a filha está a ser violada, sucessivamente, por três homens a quem abriu as portas da casa.
A sua terra, toda a terra, está inabitável.

27 novembro 2003

Sophia

Alexandra Lucas Coelho anuncia a publicação pela Caminho, ainda este ano, dos primeiros sete livros de poesia de Sophia. Esta primeira série termina com a reedição do Livro Sexto, aquele em que começaram a ser explicadas algumas das evidências da vida, como agora a entendemos. Por exemplo, o motivo da tomada de Cacela.

26 novembro 2003

Turquia, este sábado

Vi-os em Istambul, Turquia. Iam de cara descoberta. Caminhavam contra o terrorismo e a agressão americana. Vou dizer outra vez: o terrorismo e a agressão americana. Tinham por trás a ameaça do islão integrista na sua própria pátria em crescimento. E pela frente o ocidente cristão, tão hipócrita, que ora os convoca ora lhes bate com a porta. Zé Mário, já disseste para pararem de chatear. Aí está, no sítio mais exacto, feita pela nossa gente, a manifestação que eles pediam.
Carregadas de dedos e de pálpebras
avançavam para mim
do canto escuro e de outros sítios
improváveis
à luz fria de novembro
o mais terno dos meses
afinal

25 novembro 2003

Dicionário

É difícil escolher uma palavra que não me escape. A palavra mais próxima entre apreensivo e tranquilo era, estranhamente, a palavra imponderável.

Conversa

Foi na Gótica, da Maria do Rosário Pedreira, que eles publicaram aquela poesia de que falámos. O Zé Mário, o José Miguel Silva, a Maria do Rosário, a Ana Marques Gastão e os outros. A conversa inacabada, Hugo, Rita.

O Diário de um Fescenino é um diário, um diário.

Diário de um Fescenino, de Rubem Fonseca, não é um livro de contos, Francisco. É um diário mesmo, forjado por um homem que gosta de mulheres e expia esse pecado.
Digo isto com alguma tristeza. Não por o Francisco José Viegas não ter ainda tido tempo de ler o Rubem Fonseca, mas por o Aviz não ler a Natureza do Mal.

Meia Noite e o Princípio do Mundo

Hoje, nos livros do Francisco José Viegas, foi Meia Noite e o Princípio do Mundo, do Richard Zimler, editado pela Gótica. Pretexto para uma viagem ao judaísmo, com Zimler brilhante, na entrevista mais inspirada a que até agora lhe assisti . A idéia de que a escravatura é, para os negros norte americanos, o mesmo referencial de pesadelo do holocausto para os judeus. E, quase a acabar, uma bela frase: aquele que persegue o Mal persegue-o até à sua morte.

Penedo da Saudade

Hoje, quando percebo que são as cinco e meia da tarde, pretextando uma indisposição, saio da sala onde trabalho deixando alguns um pouco atónitos. Vou ao carro e sintonizo a Antena dois, à procura da Alexandra Lucas Coelho, da Maria Gabriela Llansol e de música, encontro vagamente prometido. E, apesar do local ser o mais propício, são as ondas hertzianas que traem. Não ouço nada senão o silêncio. Naquele e nos outros comprimentos de onda. Mesmo depois de tirar e repôr a antena. À medida que os minutos passam_______ uma calma vem instalar-se na exasperação_____afundo-me no banco do carro, ao olhar espantado de pais que recolhem os filhos nas creches em redor_______e imagino_______ que me foram_________dedicados, dela, os underscores.

24 novembro 2003

É bom que não se saiba...

No começo de uma nova semana: o poema de Novembro é o da Cláudia C. no Tempo Dual, sobre os estranhos caminhos do desejo.
A Natureza do Mal encontrou o Hugo. Atingido pelo síndrome de Zuckerman, abrimos-lhe a porta do Mustang. A prova de contacto, e o grande decifrador de afanias, trouxeram-nos à realidade. E desta vez a realidade era pelo menos tão boa como o mundo imaginado.

Três síndromes recorrentes na literatura ou onde se volta a encontrar Vila-Mata, agora com Roth e Eça de Queirós

1.Síndrome de Bartleby: síndrome de inspiração melvilliana que paralisa os escritores, fazendo-os renunciar à literatura (ver Vila-Matas)

2. Síndrome de Zuckerman. Atinge os leitores. Os leitores confundem o personagem de um livro com o seu autor. Os autores que escrevem na primeira pessoa, facilitam, nos seus leitores, o aparecimento deste síndrome(ver Philip Roth).

3. Síndrome de Bulhão Pato. Atinge igualmente os leitores, que se acreditam retratados ao ler determinada descrição. Bulhão Pato quis processar Eça por se julgar caricaturado no Tomás de Alencar de Os Maias.( cunhado por Rubem Fonseca)

23 novembro 2003

O que eu sou é terem vendido a casa

Fernando Pessoa disse: o que eu sou é terem vendido a casa. Isso é parte importante da biografia completa de Pessoa, terem vendido a casa. Ele era poeta. Os poetas, esses grandes filósofos, falam verdades. Nós, ficcionistas, falamos verosimilhanças. (DdeF, p121)

A demagogia dos anjos

Aqueles que consideram o diabo partidário do Mal e os anjos guerreiros do Bem estão aceitando a demagogia dos anjos: as coisas são mais complicadas.
(Kundera citado por Rubem Fonseca, DdeF, p119)

Diário de um Fescenino (máximas)

Todas as verdades são clichés. As mentiras é que conseguem às vezes ser originais.(Rubem Fonseca ele próprio)

A man's face is his autobiography. A woman's face is her work of fiction. (Oscar Wilde)

Deixemos as mulheres belas para os homens sem imaginação. (Proust)

Dicionário de O Mal : palavras de Diário de um Fescenino

ebuliente: fervente, em ebulição ou que possui a possibilidade de entrar nesse estado. ex: Lucia (diz-se Lucía), Henriette, Clorinda, Vilna, Elisabeth- não falemos de Elisabeth, são todas mulheres ebulientes.

vascas: convulsão, estertor, agitação que precede os últimos momentos, paroxismo. ex: Lucia gemia como se estivesse nas vascas da agonia.

suruba: sexo em grupo, partouze, threesome, bacanal, orgia, poliamor.

afania: obscuridade, desaparecimento, ruína.

empulhar: enganar, escarnecer, mofar, ludibriar.

broxar: a evitar, perder o entusiasmo. E broxura, a evitar, será a falta de entusiasmo, a indiferença.ex: dizer que está broxa é o melhor de todos os recursos, porém nenhum homem é capaz (de o utilizar).

Diário de um Fescenino (1)

Enquanto elas não caem em Desgraça, aqui vai o prometido.

Leituras não partilhadas

Peço desculpa às meninas. Gosto de coisas fortes. Já vi que ninguém mais lê, por aqui até onde enxergo. Leio durante a tarde e logo, prometo partilhar.
A Seta Despedida: gosto de quem tem a coragem de escolher um nome assim. Do outro lado do mar o Paulinho Assunção dedica-lhe um texto muito lindo. Outro, que me lembro, não fosse este sexismo envergonhado da blogosfera, merecia linha a linha as palavras do de Belo Horizonte
Tornei-me escritor para ficar alto e bonito (Montálban, citado por Rubem Fonseca no Diário de um Fescenino (DdF)

Oh glórias do passado!


Aos jornalistas daqui que chamam criminoso ao presidente da AAC em nome das glórias passadas do associativismo coimbrão gostaria de responder com um grafitti que ainda não limparam na Faculdade de Letras.
Reza assim:ISTO JÁ NÃO É O QUE NUNCA FOI, IMBECIS!Assina Tótó.

Adivinha


Os que viram a àgua da ribeira sabem o lugar que tem o mocho como totem?

Inteligentes, à saída do King

No fim dos fimes saímos calados até à mesa do café onde se desatam as coversas. Quando os que vão comigo me pedem opinião, respondo sempre: I would prefer not to. Pelo menos até ler, aqui, os diálogos entre o Repórter Lírico e o Escrivão Bartleby.

Triste-Feia

(...)
Como dizer-lhes, de pé, que
não consigo gostar deste cemitério?


(Manuel de Freitas in Periférica 6, Tectos Falsos (1))

Periférica de Outono

A revista literária de Vilarelho anuncia o seu número sete. Só pelos tectos falsos já vale a pena. Entre números, infelizmente, a oeste nada de novo.

22 novembro 2003

First date

Ela trazia prendas para todos: A música de India Song, filmes do Lynch. Nós de mãos vazias, fiéis à obsoleta máxima do PC: não se beija no primeiro encontro.

Zazie no Metro de Almourol

Vamos os quatro depois de uma noite mal dormida. A de A Natureza do Mal, toda de preto e saia curta. O André, o PC e eu de óculos escuros e gravatas azuis celestes ilustradas a pássaros. Chegamos cedo a Almourol e temos quase uma hora para esperar, como convém numa peregrinação. Tiramos fotografias na estação quase deserta. A preto e branco, com vento e um ameaço de chuva. Parece um filme de Wim Wenders. Quando faltavam dez minutos a de A Natureza do Mal ficou imponderável e começou a subir contra as catenárias. Atámos as gravatas ponta a ponta a ponta para a manter junto de nós o mais possível. Parecia um filme de Jim Jarmusch. Ela chegou no horário previsto. O PC e eu estávamos nos Homens, aflitos, como antes dos exames. Não era preciso cartaz porque a de A Natureza do Mal ainda não tinha descido e os olhares dos passageiros, ao sair das carruagens, convergiam no braço esforçado do André, ao baraço. Trocámos de identidades, quando ela se aproximou para as apresentações. Foi ela quem disse o nome da de A Natureza do Mal. O André passava bem por mim. Mas eu nunca estive em Los Álamos nem tenho a vida toda pela frente. Foi aí que a Zazie desconfiou. Parecia um filme do David Lynch.

21 novembro 2003

Pacheco é o fim da História

Fui dirigente estudantil, participei e tive responsabilidade directa por greves e confrontos com a polícia, e tive a minha dose de desacatos e "ilegalidades", só que num Portugal em que não havia legalidade, nem liberdade, antes de 25 de Abril. Nessas lutas, conquistou-se aquilo que os cadeados de Coimbra estão a pôr em causa.
É J.Pacheco Pereira quem o diz, em mais um artigo em que apela aos responsáveis universitários, governador civil, operários da Marinha Grande ou do Vale do Ave, vizinhos e fregueses, para chamarem a polícia e reporem a liberdade de circulação de estudantes, professores, fornecedores e empresas com contratos.
Quando Pacheco era dirigente estudantil os desacatos e "ilegalidades" eram libertadores. A luta de Pacheco deu-nos uma sociedade que tem em si todos os meios legais de protesto e reforma, e uma polícia lavadinha para dar cassetada. Pacheco é o fim da história (os argumentos não funcionam ad orbe e Pacheco esquece-se que instigou a intervenção dos Estados Unidos num estado soberano à margem da legalidade internacional, mas também não se pode pedir coerência total a ninguém). Em lugar da Assembleia Magna os estudantes devem dirigir-se á missa da sic para pedir estratégia e táctica adequada. Mas não se esqueçam de comunicar ao governo civil o ajuntamento.

20 novembro 2003

Valvulina (Fragmentos)

(...)
Cada próspera cidade tem no seu meio
uma cidade de subnutrição, crianças mortas,
desalojados, desemprego. E em cada cidade
das mais pobres há, num aro de metralhadoras,
uma cidade de tecnologia, rara
costura, sobre finança, e medo.
(...)
Às vezes penso que me sinto muito velho,
a caminho de ficar endoudecido.
Um desses homens de fronteira,
fechado na empena do mundo
com todo o esquecimento da vida
a esfaqueá-lo por detrás.
Um desses a quem apenas falta
que despachos governamentais lhe mijem na cama.
Joaquim Manuel Magalhães

Alta Noite em Alta Fraga,Valvulina
RelógioD'Água, 2001

Tpc: Dicionário de O Mal

Entretido a ler o Ivan a fazer um obituário sem saber que a essa hora se tramava o croché com que iria pagar a ironia.
Cumpro o teu pedido, António, sem outra paga que desejar que voltes:

lérias: com lábia, fala astuciosa; também usado para significar conversa oca, fiada, sem resultados práticos; designa ainda sequência de trabalho feito à mão com agulha terminada em gancho e que produz um trançado semelhante ao da malha ou da renda. ex: de lérias se faziam também os nossos dias.
fim: momento em que se interrompe um fenómeno, ou acção; epílogo; conclusão; limite. ex: não há fim nem princípio para ti, António.

19 novembro 2003

Cadeados

Detesto cadeados. Reais e simbólicos. Mas espanta-me a indignação de Vital Moreira a invocar a lei, a constituição e as regras democráticas. Talvez a direcção da A.A.C. só tenha sido eleita por 2% dos estudantes, como ele diz. Mas quantos portugueses elegeram a Assembleia da República, as Câmaras Municipais, as Juntas de Freguesia, os deputado europeus? Os eleitos estudantis fazem assembleias com os seus eleitores onde as decisões podem ser discutidas e sufragadas. Quantos dos eleitos da nossa democracia representativa se podem orgulhar do mesmo? Esquecidos da sua juventude os professores queixam-se de não poderem continuar a sua vida normal. A lógica dos estudantes radicais é precisamente a de pôr em causa a normalidade da vida universitária. A resposta institucional só pode ser política e continuada e não policial e contingente. Vilaverde Cabral chamava, na passada sexta-feira no DN, atenção para o facto de estar em curso uma grande operação ideológica que consiste em criminalizar a actividade oposicionista. Os estudantes são hoje, neste país de gente económica, política, social e culturalmente atemorizada, o único grupo social a fazer oposição sistémica.
A minha simpatia, que vai para os estudantes radicais, às vezes tem oscilações. É então que vejo a Professora não me lembro do nome, com face corpo e roupa de onde todo o brilho para sempre se arredou, a fazer queixa para as câmaras de que não a deixam trabalhar e lhe puseram uns aparos de madeira na fechadura. E a luta dos grevistas volta a ter sentido.

Explicação

Talvez não tenha explicado bem. Mas, e estou pronto a ver as coisas de outro prisma, a GNR é no Iraque uma tropa mercenária, chamada porque o invasor (a administração americana) está agora preocupado em retirar-se o mais depressa possível sem perder a face.

uuufff2

Maria José Nogueira Pinto, José Luís Saldanha Sanches na sic-notícias. É preciso é gente inteligente.

uuufff

Para este espaço que é a blogosfera sempre esperei um ânimo, um desassombro, uma clareza que não se confundissem com a prosa triste dos que parecem estar sempre à espreita de um lugar na próxima administração. Admiro os que ostentam aqui, desde o início, o emblema da esquerda mas não me preocupo em procurar nos outros (tantos) que aprecio os sinais, patentes ou ocultos, com que se dizem de direita ou de esquerda. Detesto o ataque vesgo, o que cita e não linka, o que treslê. E enquanto puder e me apetecer hei-de indignar-me e considerar intolerável que um qualquer (diga-se do que quer que seja) distribua, à esquerda ou à direita, atestados de democrática ou totalitária. Em nome do ar que respiramos.

PROBABILIDADES DA FÉ

Encontrei um amigo entusiasmado. Uma raridade, acaba de se iniciar em obscuras artes de adivinhação, alheio à eficácia das ciências exactas das probabilidades e estatística. O entusiasmo, apesar do ganho ter ficado aquém da aposta, vem do 4 que tirou no totoloto. É que conseguiu este 4, segreda, sem jogar ao acaso e ainda sem aprofundar os estudos. Já está a frequentar o módulo de nível 2, com propina mais pesada, recuperável, diz e, adivinhando-me a argumentação, antecipa “percebes agora porque é que há sempre vários totalistas?”.. eu também estou quase a adivinhar quando é que vou recuperar o empréstimo que lhe dei.

André Bonirre

Mundana

Ivan, (um excelente blog), foi escolhido para obituário ventriloquo de Cristóvão de Moura. Ficamos todos mais pobres. Não será por ali que a plebe recolherá os ecos da polémica que se prometia num alpendre das Beiras.

Fé não partilhada

De António Lobo Antunes na sic-notícias fica uma grande serenidade e algumas frases. Quero ficar com esta, que matiza a grande certeza que às vezes declara no seu destino literário: (o meu lema era) "não desiludir as pessoas que tinham em mim uma fé que nunca partilhei"

Jaz morto e arrefece

Um dali já começou a matar os voluntários da GNR no Iraque. Declaro a minha solidariedade às famílias e o meu repúdio dos que não compreendem que a presença americana no Iraque e onde quer que seja, sobretudo agora, não se discutem. Que isto me poupe uns posts num futuro de ondas mais exaltadas.

17 novembro 2003

MADALENA E AS PROMOÇÕES DO OUTONO

Com o outono as semanas são mais curtas e, rapidíssimos, os fins de semana desaparecem sem que ela consiga recuperar da sua nova actividade de mergulhadora profissional de alta profundidade. Cada amanhã é logo já hoje, com novas iguais toneladas de buRRocracia a submergi-la. Diz que recomeçou a fumar, sempre é mais saudável.

André Bonirre

MADALENA EM PIANO

Madalena já falava francês quando comprou um piano. Se lhe perguntassem, respondia que não dava. Nem o piano era de cauda, nem ela trapezista.

André Bonirre

ETIQUETA E BOAS MANEIRAS

Viemos à vara enroscados num tronco escavado. Serviu sete anos de morada a deuses da selva e a irãs protectores. Abandonada, está agora ocupada por uma das tabancas da ilha grande e já desbravados a fogo e catana foram os campos.

Avistamos o fumo antes de chegar. A palhota são 6 varas com cobertura de palma, como nas estâncias de sonho. Não se grelha marisco, é uma única panela de ferro num tripé à fogueira e uma anciã sozinha num saiote de palha. Discursa em bijagó e gesticula, destapa a papança e aponta-nos a boca. Pedimos ao Xico que traduza, agradecemos mas não temos fome, mentimos. O Xico explica, a mãe está zangada, viemos em visita sem uma oferta, um saco de arroz ao menos..

Depois das chuvas, acabada a safra, os deuses vão regressar ao ilhéu e vão repetir-se outros sete anos em pousio sagrado..

André Bonirre

Lérias

Já somos vários na velha Alta de Coimbra. O Sérgio, dos Aba, também veio. Vemos a ruína do Colégio de Portugal. Em contrapartida os pátios traseiros do Colégio Progresso estão cheios de vida. A Lena, do Bota Abaixo, vai explicando: aqui é uma residência de rapazes, ali são quartos de raparigas. Passa um grupo e ouve-se uma voz: sim adoro esta cidade, mas o que é que me havia de dar para vir para esta merda de Jornalismo?
Agora chega outro ao nosso grupo. Se o tempo der ainda subiremos à Casa dos Mortos.

Não batam com os dedos no tampo das mesas, por favor

Não consegui acabar o que escrevi sobre a entrevista que António Lobo A ntunes deu a Alexandra Lucas Coelho porque dentro de mim não estava claro o que sentia, o que era ambíguo ou contraditório no que sentia. Ele fecha-se para escrever. As primeiras horas gasta-as, diz, em prosa de escriturário (prosa de puta há muito a não permite, embora seja de presumir que seduziu muitos de nós com livros de puta, como esse Cus de Judas, que vá-se lá saber porquê, continua a vender-se, em breve ne varietur. (A teoria do Mating Mind explicaria que as putas que escrevem - nós, leitor hipócrita - têm mercados diferenciados, e é sempre prosa de puta a que ele escreve). O objectivo é atingir o cansaço, e com ele o lugar onde a escrita se liberta, a natureza vence a cultura e se solta através de uma escrita irreprimível, que o escritor não vê, não controla. Outros chegaram aí pelas substancias que levam aos paraísos artificiais, pelo cansaço do corpo que as grandes caminhadas trazem, pela fronteira da razão. É desses lugares intermédios que escrevem. Um dia perceberemos - sem metafísica, quem escreve por nós e porque o faz. Talvez neste momento já haja gente em condições de o fazer. Gente da área das neurociências, da biologia, da psicologia evolucionista, da primatologia, da literatura por exemplo. Gente tão criativa como o escritor, o pintor, o músico. Gente simples, que trabalha contra a parede, com infinita modéstia, e que olha com perplexidade para os seus resultados, sabendo que terá de os cruzar com o de outros, numerosos, que noutros sítios, por outras formas, puseram questões semelhantes e estão a obter outros resultados. Isso não lhes confere nenhum estatuto de revelados. Sabem-no, quando afixam posters que não serão lidos, quando escrevem, pesando cada afirmação, um artigo que um conselho de leitura talvez recuse, fragmentos do nada que os ocupa. Esses não dirão nunca “estava tão seguro de tudo tão seguro tão seguro e ainda estou”. Não baterão com os dedos na mesa “pan pan pan pan”. Sobretudo isso, não batam com os dedos no tampo das mesas, por favor.

Porque chora o escritor na garagem

António Lobo Antunes é entrevistado aqui por Alexandra Lucas Coelho. Na garagem onde agora escreve 16 horas por dia Lobo Antunes fala sobretudo da sua arte poética. O miúdo que queria ser escritor confessa-se, desde o primeiro livro, muito seguro do que queria.
Para mim, o momento mais interessante da entrevista é quando ele relata um momento de emoção, um dia, não mais do que um dia, em que escreveu com lágrimas que lhe escorriam pela cara. Uma felicidade como nunca teve outra assim. E a felicidade , revela ele, é pela perfeição da escrita, pela sensação de que a palavra é certa.

Um flâneur e um fabbro.

António Guerreiro analisa os traços fundamentais da poesia de J.M.Magalhães para dele separar Freitas, Mexia , Miranda e os outros. A caracterização é interessante:
Manuel de Freitas seria diferente de Magalhães não apenas no tom, no ritmo e na sintaxe mas sobretudo do ponto de vista: escreve a partir de um modo de habitar a cidade enquanto que Magalhães o faz de um lugar inabitável
Pedro Mexia seria, pelo olhar e pela pose, um flâneur.
Jorge Gomes Miranda individualiza-se pela procura da harmonia.
José Miguel Silva é um fabbro excepcional.

Voltar ao real.

António Guerreiro assina em Telhados de Vidro, nº1, Averno, Novembro 2003, um ensaio intitulado Um pouco de vida, um pouco de poesia sobre o conjunto de novos poetas portugueses a quem é atribuída uma filiação em Joaquim Manuel Magalhães, nomeadamente na declaração que este formulou em 1981 e na qual alguns vêm intenções programáticas. A citação é empolgante: "Voltar a contar de si. Voltar ao coração, voltar à ordem das mágoas por uma linguagem limpa, um equilíbrio do que se diz ao que se sente, um respeito pela tradição da língua e dizer a catástrofe pela articulada afirmação das palavras comuns, o abismo pela sujeição às formas dirctas do murmúrio, o terror pela construída sintaxe dos compêndios. Voltar ao real, a esse desencanto que deixou de cantar, vê-lo na figura sem espelho, na perspectiva quase de ninguém, de um corpo pronto a dizer até às manchas, a exacta superfície por que vai, onde se perde. No fundo" (J.M.Magalhães, 1982)
O grupo nem se auto reconhece, as diferenças entre os presumíveis membros são enormes, mas em torno deste voltar ao realforam-se construindo cumplicidades.
António Guerreiro resume assim os fundamentosde uma polémica de que aqui se deu breve nota: " De um lado temos os que acham que, na exposição da poesia ao quotidiano e à prosa banal do mundo, é a poesia que sucumbe a uma pobreza que lhe retira elevação. Do outro, temos os que recusam aquilo que consideram ser um poetismo idealista e sublimante, que torna a poesia uma relíquia anacrónica, sem qualquer efeito e por conseguinte, suspeitam do discurso poético baseado predominantemente na metáfora,(...)"

Telhados de Vidro

Publicação não periódica editada na Averno com direcção de Inês Dias e Manuel de Freitas. Antes de maisinformam-nos de que a poesia não interessa(T.S.Eliot) mas temos que nos distrair da morte. Depois podemos ler poemas de Fátima Maldonado, Fernando Luís Sampaio, João Miguel Fernandes Jorge, Jorge Gomes Miranda, José António Almeida e Manuel de Freitas. Joaquim Manuel Magalhães traduz Diego Doncel, poeta de Cáceres já conhecido pela inclusão nos Trípticos Espanhóis, Nº 2, da Relógio D'Água. António Guerreiro, José Miguel Silva e Silvina Rodrigues Lopes assinam ensaios.
Ilustração de Luís Manuel Gaspar

Tpc:dicionário de O Mal

cutucar: tocar ligeiramente em alguém ou em algum objecto, principalmente para fazer uma advertência que não se quer ou não se pode fazer de viva voz (é um termo popular brasileiro; leia-se advertência ou qualquer outra palavra)

devesa: alameda que limita um terreno; arvoredo ou terreno cercado ou murado
ex. “espalha-se a luz da lua / pela poética devesa” (Gonçalves Crespo, Obras Completas); se fores ao Porto encontramo-nos nas Devesas.

epígono: discípulo ou admirador, quase sempre utilizado como imitador.ex: estes epígonos fazem uma leitura empobrecedora do mestre (Ant. Guerreiro)

áscuas: qualquer coisa incandescente, em brasa; tição; brilho do olhar de quem está enraivecido. ex: Alguém devia tocar-me para sentir que estou vivo, que sou uma estaca atravessada pelo sangue, e dela rebentam por exemplo: áscuas.





15 novembro 2003

Foi por ela

O Amor Acontece. E acontecem algumas coisas divertidas, recuperando a receita de 4 casamentos e um funeral e de Notting Hill. Lucia Moniz divertiu-se e é divertida. O momento em que o primeiro ministro britânico recupera a sua dignidade face à arrogância do Presidente dos Estados Unidos é reconfortante. O velho rocker que regressa aos tops faz sorrir. E sobretudo, ah sobretudo, há Emma Thompson. Não importa que as rugas comecem a marcar-lhe o rosto, que esteja a engordar um bocadinho e o marido pareça fascinado por aquela jovem de política sexual agressiva. Emma Thompson é sempre admirável. As virtudes que o seu rosto espelha são incorruptíveis. Por ela troco qualquer dos filmes em cartaz.

14 novembro 2003

Primeiro percurso. Nocturno.

Rua do Corpo de Deus, Rua do Colégio Novo, Couraça dos Apóstolos, Travessa da Esperança, Beco de S. Marcos, Rua dos Coutinhos.
Tudo muito estranho. Tudo muito estranho, nesta primeira perambulação, sobretudo as casas, quase todas, terem sido abandonadas pelos legítimos propietários.

François Ozon

Também confirmo que François Ozon é um cineasta desinteressante. Não vale a pena revisitar Charlotte Rampling. Aquela Swimming pool é tempo desperdiçado.

Ken Loach

Não tinha dado conta mas o Alexandre de Umblogsobrekleist chamou a atenção e hoje fui ver e confirmo: o DN tem um crítico cinematográfico de nome Eurico que acha que India Song é para os indefectíveis de Duras. Hoje acha mais: Ken Loach, autor britânico de onze minutos sobre o 11 de Setembro, é apelidado de repugnante. Vão ver e percebam porquê. Não tem nada a ver com cinema. O que temos que sofrer para ler João Lopes explicar o logro fundamental de todas as formas de hipocrisia

Fica Cerveira sem cervo

No Norte de Portugal um homem é acusado de 116 (!!!) casos de abuso sexual de menores. Passa-se isto numa aldeia de Vila Nova de Cerveira. Durante anos a fio, pasme-se, ninguém deu conta. Cento e dezasseis famílias viram os seus filhos seviciados e não se aperceberam, passou-lhes ao lado, calaram. O homem era propietário de uma quinta luxuosa, figura pública e benemérito dos bombeiros locais e de outras agremiações cívicas. Agora anda a monte. O Presidente da Câmara de Cerveira foi já pressionado para retirar da praça pública uma estátua que o presunto abusador ofertara à população: um orgulhoso cervo.

Actividades primárias e secundárias

A Conferência Episcopal produziu um notável documento sobre o Euro 2004, o futebol e o desporto em geral. Insondável é a ingenuidade dos nossos bispos. Transcrevo uma das pérolas episcopais:"O desporto é a actividade secundária mais bela do mundo."Pois. Uma pena é os nossos bispos continuarem obrigados a absterem-se da actividade primária mais bela do mundo.

Todos sem excepção. Mas eu não.

Luís Delgado, hoje com ar ameaçador diz aqui de dedo no ar:"Vamos lá a ver se nos entendemos". Temos de estar todos, todos sem excepção, com os nossos homens que foram para o Iraque. Olhe, Luís Delgado. Vamos lá ver se nos entendemos. Eu estarei sempre de fora da sua unanimidade.

13 novembro 2003

Declaração

amofinamos/discutimos/polemizamos/cortamos relações/insultamos/indispusemos/irritamos/importunamos/enfadámos (com) a Glória Fácil. Isto é, uma de nós polemizou.
admirámos/ empatizámos/ concordámos/invejámos/ sorrimos/vibrámos (com) a Glória Fácil. Ambos. Ambos e ambas como diz aquele.

A comédia biológica das poetas

Escrevem poemas excelentes. Palavras limpas, que vêm das zonas profundas a que só elas acedem verdadeiramente, que nos dilaceram as vísceras com que sentimos, que nos deixam sem fôlego. Mas um dia a sua paixão é correspondida e, inundadas em prolactina, ficam felizes e ágrafas para sempre.

Não compro!

Sonho de um curioso é o livro de Anabela Mota Ribeiro reunindo entrevistas publicadas no DNA. Eu não compro por duas razões. Primeiro porque gastei o dinheiro todo a comprar bons livros. Segundo porque não compro um livro que termina com uma entrevista ao Pedro Santana Lopes.

Oliverio Macías Álvarez

José Agostinho Baptista edita Anjos Caídos na Assírio, o seu décimo livro desde que se estreou em 1976. José Agostinho Baptista é também um excelente tradutor. Numa noite, "quis o destino que encontrasse numa esquina dos bairros altos da solidão o poeta mexicano Oliverio Macías Álvarez", nascido em 1972 (ano bom para os poetas nascerem). Dele se publica aqui o primeiro livro, Um Mundo Estranho.
Há dias em que as canções da rádio parecem dizer a verdade, já ouvi dizer. Outros, como hoje, em que o acaso me pôs nas mãos um livro que acreditamos poder ter sido escrito para nós, um livro que me chama como gosto: irmão obscuro da minha obscura voz. Um Mundo Estranho este, o nosso mundo, onde é possível ainda ouvir frases como esta: Eu já não sei se tudo isto existe, ou se a tudo o que existe, minto

12 novembro 2003

Era o verão a única estação

Editado pela Assírio e Alvim/Sons um livro de Poemas de Ruy Belo ditos pelo Luís Miguel Cintra, que assina o prefácio, e com um granito na capa, cujo grão o Duarte Belo fotografou. Há anos a Presença fizera o mesmo, numa edição muito cuidada, que talvez não esteja disponível. Agora é motivo para ouvir de novo a voz que nos diz
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação

Ruy Belo

As crianças desenham a giz no asfalto e já quase só lhes resta o asfalto para desenhar. Não é o sável o peixe da enxurrada. Sim, ainda há o mar a oeste. O país que sonhaste não se cumpriu. Mas quando toca o sino da matriz, neste portugal que não é o do teu futuro, lembramo-nos sempre de ti, meu poeta.

O Portugal Futuro


O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será lá e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
e ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro.

Ruy Belo

the vanishing blog

A espuma dos dias é agora uma página evanescente. Por um estranho capricho da memória, tudo o que a Sarah escreve, tem agora como fundo o som de lindíssimas canções francesas.

umbloginteligente

A blogosfera é como a literatura. E como a vida. Às vezes desesperamos, ficamos fartos, tudo parece banal e já dito. Depois, quando tudo parece perdido, há alguém que nos salva das águas. Hoje, quando tudo parecia perdido, foste tu quem me trouxe à razão.

Repartição

Naquela repartição a Secretária deve ser uma pessoa temível e com poderes especiais. Em lugar de destaque está um cartaz intimidatório: SE ESTÁ GRÁVIDA AVISE A SECRETÁRIA. As mulheres olham-no com respeito e atiram os ombros para a frente como as adolescentes na telarca.

Isenção

Ia um senhor à minha frente na fila. De vez em quando rodava um pouco sobre si próprio, com graça, como se se desculpasse de estar de costas e de estar tão à frente dos restantes condenados da fila. O seu rosto e postura espelhavam as mais altas virtudes morais. Quando se aproximou da Secretária ela disparou em tom ameaçador:
- O senhor é isento?.
- Não minha senhora, não sou.
E reforçou-se em mim a sensação de ter encontrado um homem de qualidade.

O melhor post de ontem


O melhor post de ontem escreveu-o JPH, não aqui, mas ali. Catalina, Miguel, Otelo, Bagão a mesma luta! Já temos um grito para as manifestações das camisolas brancas.

Pacheco Pereira: o canivete suíço


José Pacheco Pereira vive provavelmente o melhor momento da sua vida. Realizaram-se os seus ideais, não direi de juventude, mas de matura idade. O partido do qual é ideólogo destacado e quase solitário está no poder. O país que incarna o que de mais prodigioso a natureza humana conseguiu ao longo de um milhão de anos de atribulada história instalou no planeta um reinado duradouro. O povo de Portugal elegeu-o para a instituição democrática que simboliza o poder do continente Europa e ele é, aí­, como gosta, a um tempo maioria e crí­tico dessa maioria. Aos domingos, sem a presença incómoda dessas carraças que o apoquentavam no Flashback (a despropósito, passa hoje o centésimo décimo quarto dia sobre o momento em que, solene, declarou que ia falar sobre o fim do Flashback) celebra uma liturgia através da qual o povo recorda, e finalmente organiza num todo coerente, os acontecimentos fragmentários da semana. Para públicos mais restritos e exigentes escreve crónicas nos jornais (residuais) de referência.
Invejo-lhe a bibioteca que, ao arrepio da reserva com que acertadamente proteje a sua vida mais privada, deixou fotografar parcialmente, em momentos de guarda descuidada. E, como disse a Zazie, ainda bem que ele está aqui, e é aqui o número um. É nesse local abrupto, que parcialmente se humaniza e houve até quem o visse a sorrir e a olhar para fora.
No passado domingo passei pela SIC. Ele explicava ao povo, com a ajuda de sofisticados meios audiovisuais, o sem sentido de uma frase menos feliz do senhor Manuel Monteiro, dessas que ele agora usa para posicionar o seu partido no brejo. Veio à  baila a questão da democracia. A actriz que faz de discípula socrática questionou-o então sobre se não era a demagogia o cerne da polí­tica actual. Ele nem a deixou acabar a questão. Com aquele tique irritante de começar a dizer umnão categórico, com os olhos baixos, antes de perceber a pergunta, lançou-se imediatamente na resposta. Irónicamente, ao caracterizar o demagogo, ele estava impiedosamente a auto flagelar-se.
Talvez um dia Pacheco sossegue. Ouça as perguntas. Tenha dúvidas. E o seu magní­fico cérebro não funcione como Cosmides e Tooby dizem que a mente humana adaptada o faz. O canivete suíço, com diferentes lâminas, cada uma programada para um propósito adaptativo.

Paramos para te escutar

É da natureza do Mal saudar quem vem de onde este veio e assim sussurra.

Um castor diferente

Não gosto do castor, da sua pelagem macia, a cor castanho-cinza, a cauda em remo. Não gosto do óleo do períneo. Não gosto da mulher que foi Castor nem do estrábico que lhe deu o nome. Mas há aqui um castor de mármore que visito e recomendo.

Ataraxia, as limitações do cepticismo

A esfera de metal parou
Há alguns dias que os ladrões
não são vistos a rondar
O pó não se deposita nos móveis
O tumor parece estacionário
O homem que aguarda um sinal
apercebe-se de que o faz
sem angústia nem esperança
Os dias as semanas parecem iguais
Só ele percebe a contagem decrescente
Uma procissão de carros ilumina as pontes
As crianças partem e algumas vão felizes
As mães vigiam como os cães de guarda
e os pais têm um olhar perdido
Os foguetes rebentam sem ruído
Um deles leva o peito e as mãos
de um miúdo de onze anos distraído
O homem suspende todos os juízos
Epoché
Mas isso não lhe traz tranquilidade

Vila-Matas y la sombra de Tabucchi

No último livro do Tabucchi (Está a fazer-se cada vez mais tarde, ed Dom Quixote) há uma carta dedicada ao Vila-Matas que se chama Estranha forma de vida. A história que liga estes dois caíu-me do céu com um preâmbulo de um jornal:

Vila-Matas y la sombra de Tabucchi
El reciente libro de Antonio Tabucchi trata sobre la soledad, el amor, los
malentendidos y las casualidades. "Las casualidades son importantes en las
vidas y perviven en mi literatura", manifiesta. Una anécdota, relatada por
Enrique Vila-Matas, ilustra cómo las coincidencias plenan la vida de este
autor. En 1983, Vila-Matas compró uno de los primeros libros del italiano,
La dama de Porto Pim. Le cautivó tanto que comenzó a escribir su primer
cuento: Recuerdos inventados. "Plagio a Tabucchi, creyendo que podía
utilizarlo impunemente", rememora Vila-Matas. La dama de Porto Pim se
convierte en una pequeña Biblia literaria para mi obra de creación. El
relato constituye, según asegura en su momento, un homenaje a Tabucchi. La
madre de Vila-Matas, al leer esa "dedicatoria solapada", le dijo que no le
extrañaría que ese autor fuera el hijo de los vecinos que tuvieron en
Cadaqués, cuando el niño Vila-Matas, de cinco años, subía al muro que
separaba las casas para decirle a su vecino Tabucchi, de diez años:
"Antonio, ¿me escuchas Antonio? Los adultos son estúpidos".
Pasó el tiempo y Vila-Matas siguió sin conocer a Tabucchi. Un día, cuando ya
Vila-Matas ha publicado algunos libros, lo invitaron a un bar de Lisboa,
donde él había leído, en un relato de Tabucchi, que un barman preparaba un
fantástico cóctel, llamado "llaneras verdes dreams". En la barra no estaba
el barman, sino dos mujeres de Mozambique, y, por supuesto, tampoco existía
el trago. En ese bar, conoce a Tabucchi. Vila-Matas le preguntó si él era el
niño aquel que veraneaba en Cadaqués en 1953 y Tabucchi le respondió que sí,
y al saber que se encontraba con su antiguo vecino recordó con nitidez la
frase que el niño Vila-Matas repetía parado sobre una silla para verlo por
encima de un muro.

e como o Vila-Matas a conta

Todos los recuerdos eran inventados, tal como rezaba el título. Con el paso
de los años, Dama de Porto Pim iba a convertirse en una pequeña faro para mi
obra de creación. Allí estaba, en aquel libro tan pequeño, todo lo que yo
deseaba hacer en literatura: la construcción de miniaturas literarias
perfectas, el tinglado moderno de la voz fragmentada, la evocación de
recuerdos inventados para poderme hacer paradójicamente con una voz
literaria propia... Cuando publiqué esos recuerdos inventados, no sabía que
algún día viajaría a las lejanas Azores y vería ese tablón de madera o
soporte visual de "las voces traídas por algo, imposible decir por qué".
Mi madre, al leer ese homenaje solapado a Tabucchi, me dijo que no le
extrañaría nada que ese escritor al que yo tanto citaba fuera el niño de los
vecinos de Cadaqués en el verano del 53. Me reí, me parecía inverosímil, muy
>mprobable. Qué vecinos, recuerdo que pregunté.
- Los Tabucchi -dijo mi madre.
Cuando conocí a Antonio Tabucchi, le pregunté si había veraneado alguna vez
en Cadaqués y me dijo que sí y pronto vimos que yo era el niño que
encontraba estúpidos a los adultos. Poco tiempo después de descubrir ese
gran recuerdo verdadero que parecía unirnos más allá de la vida y del
tiempo, yo leí que Tabucchi se consideraba la sombra de Pessoa y decidí
convertirme en la sombra de Tabucchi para así tratar de ser la sombra de la
sombra de una sombra. Hoy, que ya sólo soy la sombra de mi vecino, voy
delante en una expedición fantástica al mundo misterioso de las voces. Voy
solo y perdido, aunque imagino ser el adelantado de esa expedición fantasma,
de ese recuerdo inventado. Y cuando pienso en los recuerdos verdaderos que
Tabucchi y yo compartimos me acuerdo de inmediato del día en que visité, sin habérselo dicho a nadie, el Museo de las Janelas Verdes de Lisboa y descubrí
que alguien, en la sombra, me perseguía y que yo no era más que la sombreada
sombra de una sombra que seguía a una sombra en el espacio verdadero de un
recuerdo veraniego que hoy es sólo pura y simple bella letra, tal vez una
canción napolitana que alguien un día cantará para siempre. Se lo digo a
veces a mi madre. Y ella entonces quiere saber cómo se canta una canción
para siempre. Son canciones que hablan de un tiempo que ya no existe, le
digo. Y añado: Por eso nadie las oye, sólo tú y yo, madre. Ella entonces
quiere saber dónde las podemos oír. Porque yo no las oigo, dice mi madre. En
la casa de al lado, le explico. ¿En verano?, pregunta mi madre. Sí, le
respondo. Ya están llegando, le digo, porque empieza el verano y cada vez se
hará más tarde. Más tarde, repite mi madre. Y luego pregunta en casa de
quiénes.
- ¿En casa de quiénes más tarde? -pregunta.
Sólo la entiendo yo.
- De los Tabucchi, madre.

Créditos

Os livros referidos da Angelus Novus são: de Eduardo Pitta Persona, ficções e Fractura A condição homossexual na literatura portuguesa contemporânea ; de Eve Kosofsky Sedgwick Epistemologia do Armário tradução de Ana R. Luís e Fernando Matos de Oliveira.
O livro de Rubem Fonseca onde se pode ler a perambulação atrás aludida é O Buraco na Parede, contos, editado pela Campo das Letras em 1995. A gravura que acompanha o post da negociação com os Abas mostra um pormenor da espantosa instalação do catalão Muntadas que se chama exactamente assim: Mesa das negociações
Hoje, à mesa das negociações, dois Abas e um do Mal com a Armanda a coordenar. O projecto é fazer O Roteiro das Ruas da Alta de Coimbra mais ou menos como o Rubem Fonseca fez com aquele personagem peripatético que também se chamava Epifânio e que alfabetizava as prostitutas enquanto perambulava pelas ruas do Rio de Janeiro. Aviso à Isabel e ao Sérgio: já comecei. As ruas estão semi desertas. Abriu um bar chamado A Bigorna em frente à casa onde devia estar, houvesse justiça toponí­mica, uma lápide evocativa da Cona de Aço. Quase só se houve castelhano de Erasmus. Com os portugueses recolhidos a penates ou acantonados nos jardins da Associação, os espanhóis não perdoam. Mais abaixo reabriu M Joana com nova gerência e o mesmo mau aspecto berrante, anunciado em azulejos explí­citos com um excesso à porta. A sondagem arqueológica das traseiras do Museu Machado de Castro foi beneficiada com um oleado protector. O cheiro envolvente não prenuncia descobertas excitantes. A Sé Nova está embrulhada numa tela Christica. À hora tardia da minha passagem soltava-se do interior uma melodia latino americana. Os participantes na liturgia sublinhavam com olés os trechos mais entusiasmantes. Lamentávelmente para o meu projecto não havia putas para alfabetizar. Mas a procissão ainda vai no adro.

11 novembro 2003

Não te prives!

Um fim de tarde destes, no foyer do TAGV, a associação Não Te Prives organizou uma reunião com Eduardo Pitta sobre Fractura, A Epistemologia do Armário e temas correlativos. A Não Te Prives é uma organização LBGT contra a discriminação pela orientação sexual. O presidente é um jornalista no desemprego, geógrafo de formação, o Paulo Vieira. A vice-presidente é a Cristina Santos, que tem meias altas da cor do arco íris e uma cabeleira de cometa em festa. Na mesa estava um responsável da editora Angelus Novus, o Paulo Vieira, que comentava o livro da Eve Kosovsky, e o Eduardo Pitta que resumiu a tese de Fractura e apresentou um livro de contos sobre a experiência gay na guerra colonial. Parece que a guerra colonial não foi apenas o que dela (não) se sabe. No meio do milhão e quinhentos mil mancebos recrutados para os sobressaltos da nossa África havia alguns gays, que aproveitaram a oportunidade para se divertirem como nunca tinham sonhado fazê-lo. Pasolini escreveu sobre a solidariedade homosexual das prisões. Faltava este bem humorado relato da solidariedade gay na nossa despedida das savanas.
Em Fractura Pitta fala de Al Berto, António Franco Alexandre mas também de Vitorino Nemésio e de Jorge de Sena para distinguir entre literatura homossexual e literatura gay e concluir que não existe literatura gay em Portugal. Os jovens que estão agora a sair do Armário prometem.

A working class hero

Hoje, sei lá porquê, tive muitas saudades dele. Voltei a ouvir aquele tiro em New York City e A Working Class Hero esteve a dar todo o dia na minha cabeça.

Pontualidade natural

Dizem-nos. Temos sorte. Amanhã há barco, sai às 9 horas e 18 minutos e é pontual, muito pontual. O piloto não espera. Os atrasados que voltem daqui a 3 dias, não há discussões. Não, depois já não será às 9 e 18, não pode ser, mas a pontualidade será sempre implacável, sempre. A que horas parte, é simples, não há que enganar, Bissau-Bubaque tem que ser na vazante e o regresso faz-se com a enchente.. é fácil cumprir a pontualidade das marés.

André Bonirre

Engordar pardais

Dizem-nos. Já é o tempo mas por agora só vamos semear a fingir. “O primeiro milho”, proverbializo com ar de citadino entendido. É isso, mas é mais do que isso, que os pardais só se enchem aos dois milhos. Semeio então eu primeiro, por enquanto a faz de conta, e o vizinho, enganado, semeará a sério a seguir. Enchem-se assim os papos a grão e grão e eu, no fim, terei todo o meu milho na leira e pombos gordos no pombal. Conclusão moral, quem semeia por último é que ri melhor.. só não percebo de que se ri o vizinho.

André Bonirre

10 novembro 2003

Nas ruas

Nas ruas da cidade somos servidos ao natural e pagamos uns e outros o tributo que devemos à natureza. Mas devemos desconfiar dos que amansaram as palavras.

E O Lugar Da Amêndoa
já depende de Cronos
já não há deuses nem virgens
nem patos mitológicos
apenas tempo
e a flor da amendoeira
ameaça o Inverno
é uma flor suicida morta
antes que a salve a Primavera
nem sequer espera Abril
- o mais cruel dos meses
já se sabe-
a amendoeira antecipa a mentira
da regeneração o ciclo
de toda a vida conduz a toda a morte
e pelo caminho não é certo
-nunca foi certo-
que o fruto seja a noz
quando a casca encerra mesmidade
e é duradora condenada a noz
a fazer-se pó mentir a vida

Manuel Vasquéz Montalbán (poema para a exposição do pintor de Lérida, Benet Rossell)

RE:(grande demais para um) Epitáfio



A minha mãe escrevia poemas
com uma parker 21
o meu pai adoecia com o álvaro de campos

foi a minha herança explosiva

Em segredo chamaram-me david
saltei do wagon num país ocupado

Disse-me um que também acabou mal:
"c'est tellement bon, les femmes"

Detestei os poderosos e os seus lacaios
e os fracos os derrotados
por falta de comparência

Um dia inesperadamente
fiquei sem poder falar (em público)
Também não era grave
eu nada tinha já para vos dizer

Quando encontrei os meus iguais
era tarde de mais

Diário de um Fescenino

Fescenino: o que tem carácter obsceno, licencioso, libelista, devasso.

Último livro de Rubem Fonseca, o nosso (quase) desconhecido Prémio Camões, agora editado na Campo das Letras. Merecia melhor capa que aquela flor horrenda. O que teve a coragem de afirmar o programa do Don Juan de Molière: "(...) manter um olhar atento para os méritos de todas as mulheres, render homenagem a cada uma e pagar a cada uma o tributo a que nos obriga a natureza."

09 novembro 2003

Una rodilla que no me pertenecia...

Se querem ler António Lobo Antunes procurem no El Pais. A crónica desta semana, A pie de pagina, chama-se No hay peor ciego que el que no quiere verme e conta a história de uma mulher que, finalmente, foi vista. No melhor castelhano, felizmente ainda não fixado definitivamente.

Zero

No El Pais de sábado, o número de linhas dedicado à cimeira ibérica. Posso ter visto mal. Eu só leio o Babelia.


Que ave se levanta, à noite, no carso?
Quando o vento se cala,
no caminho dos lapiás?

Procellaria


Obrigado Raquel. Por teres como o outro, ali, lembrado a Sophia.

Dicionário de O Mal (versão materna)

exânime: que desmaiou, que aparenta estar morto ex:quando a luz exânime cair no Azul profundo (Pascoaes)

ostensório: m.q. ostensível, que se pode ou deve ostentar, tornar evidente, patente.ex: as ordens ostensórias que lhe deu (Frederico Lourenço)

grácil: fina, frágil, elegante ex: nenhuma sombra tolda o mistério fecundo da luz grácil, nua, quente (idem)

pascer : apascentar ex mas teu passado pastora/que ali foras a pascer (ibidem)

inulto : impune, não vingado ex Baçus conta a inulta afronta (Gonçalves Crespo)

minaz: que ameaÇa, intimida ex: chefe minaz de bárbara pujança (idem)

choutar: montada que anda devagar, irritando o cavaleiro ex: Portugal é um corcel impaciente condenado a choutar nesta praia do Ocidente (Miguel Torga)

De Torga ela deixa uns versos que penso terem destinatário:
...Nesta luxúria da morgue/ há todo o atavismo que nos foi prometido no final/ São os gestos parados/ os olhos vidrados/ os ouvidos tapados/ e por cima de tudo o silêncio das bocas.
Ela sublinhou atavismo que é como se sabe uma característica psicológica hereditária, que surge num descendente e era reconhecível num antepassado. Mas acho que ela quis chamar a atenção para a luxúria da morgue.
A mim, no meio da página de papel costaneiro, deixou esta frase de Herberto Helder: Se olhas a serpente nos olhos, sentes como a inocência é insondável e o terror é arrepio. Obrigado, mãe. Não tenho feito outra coisa, estes anos, senão tentado olhar a serpente nos olhos. Confirmo: a inocência é insondável.

Toda a vida conduz a toda a morte

No Babelia de ontem (viram?) Manuel Rico passa em revista a poesia de Manuel Vásquez Montalbán e escolhe para a Antologia de Babel dois poemas inéditos, de um ciclo que ficou inacabado com o título genérico de Teoría de la famosa almendra de Proust. Trata-se um pouco, explica Rico, da procura da palavra mítica que encerra em si todas as outras- o aleph de Borges, ou abre para o mistério de uma vida- rosebud, do Citizen Kane..

Y El LUGAR DE LA ALMENDRA
ya depende de Cronos
ya no hay dioses ni vírgines
ni patos mitológicos
sino Tiempo
y la flor de la almendra
amenaza el invierno
es una flor suicida muerta
antes de que la salve la Primavera
ni siquiera espiera abril
-el mes más cruel
ya se sabe-
el almendro anticipa la mentira
de la regeneracion el ciclo
de toda vida conduce a toda muerte
y por el camino no es cierto
-nunca fue cierto-
que el fruto sea la nuez
cuando la cáscara encierra mismidad
y es duradera condenada la nuez
a hacerse polvo mentir la vida


Ponham na Agenda: encontro em Coimbra

Jacques Derrida em Coimbra, na Sala dos Grandes Actos, a 16 de Novembro, pelas 10 horas.

07 novembro 2003

Bom fim de semana

O EPC vai trabalhar para o Brasil e estará ausente duas semanas. Maria Elisa será substituída por Ribeiro Cristóvão. Cunhal abandona o hífen. Correia de Campos irá às feiras com o Paulinho. Em 2006 se não for antes. Norte e Centro fora do TGV. Só boas notícias. O fim de semana vai ser radioso. Em Castelo Branco pelo menos.

O anonimato dos recém-nascidos

O ciúme é um diospiro verde, escreveu o André Bonirre, e desses sabores ele saberá. O ciúme masculino tem como explicação evolutiva a incerteza na paternidade que persegue os homens e o drama que, pelos vistos, é investir parentalmente num ser que, afinal, não transporta nenhum dos nossos genes. Históricamente, a incerteza na paternidade combate-se com a vigilância da sexualidade feminina: a clausura das mulheres, as restrições vestimentárias inspiradas na modéstia, o enfaixamento dos pés e o chaperonamento público, por exemplo.
No Canadá e no México ouviram as conversa nas maternidades em torno dos recém-nascidos. Todas as visitas, com relevo para os avós maternos, se esforçavam por achar parecenças com o pai. As frases mais ouvidas eram: -É a cara do pai! Este não esconde de quem é filho! Tem a mesma covinha no queixo. Franze o sobrolho como o paizinho. Como se todos, concluem estes investigadores, estivessem a pressionar os pais oficiais para investirem nos filhos.
De facto os recém nascidos não se parecem com ninguém. Os genes de parecença paterna foram reprimidos, dada a fantástica ameaça que prefiguravam. Foram seleccionados genes que dão aos bebés um seguro ar anónimo. As verdadeiras parecenças ficam para mais tarde.

O amor livre

Na manifestação dos estudantes em Lisboa uma automobilista, identificada como médica, protesta ruidosamente pelo facto de não poder circular. Insulta os manifestantes gritando-lhes: - O que vocês querem é festa e copos. Vão trabalhar. Um manifestante aproxima-se e, pedagógico diz-lhe : - Não fale assim. Já nas manifestações dos anos setenta o governo dizia que os estudantes o que queriam era o amor livre. Não vê que é uma forma de atirar areia para os olhos da população?
O governo tinha razão, disse a Matilde, que ontem tinha vindo jantar e assistia, num dos canais, a esta cena. E acrescentou orgulhosa: E mantemos bem vivos os nossos ideais.

Prestige

Letizia Ortiz conheceu o príncipe Felipe na Galiza quando estava a fazer a reportagem do Prestige. Podia ter-se apaixonado por um dos esforçados voluntários que se sujavam de pez nas praias das Rias Bajas. Ou por um pescador de olhos perdidos no mar. Ou por um ambientalista a distribuir panfletos denunciando a desatenção de Aznar. Mas ela apaixonou-se pelo príncipe. Não se pode ter confiança nas jornalistas.

06 novembro 2003

Constância é um sítio assim

Constância é uma coisa assim. Levamos às vezes o tempo a coleccionar meios momentos, sabores num garfo, aromas que passamos a carregar numa caixinha de cor impossível, palavras, emoções, imagens só fotografadas de memória. Fazemos isto com o máximo de cuidado e zelo, parecemos guardar tudo isso até ao momento em que terá um sentido maior, quando encontramos o album que reclama e dá uma cor possível a todas as memórias. Ou guardamos mesmo sem fazer sentido porque isso é a vida, ou guardamos até fazer sentido ou não, ou só por guardar. Constância é um sítio assim. Tem a junção de dois dos maiores rios portugueses – promete encontros, tem o tamanho de
vila – pode-se caminhá-la, tem ruas de pedra, cal e flores – pode-se inspirar sem nunca expirar, tem Almorol eternamente separando as águas que se juntaram – e ternamente as juntando de novo. São assim as coincidências sublimes, é assim o amor à primeira vista, mas que eu acredito, só se revelam mais tarde, muito mais tarde, no futuro das coincidências.

PC

Mummy you're a blogger!

Ela viu, ou ouviu falar de o dicionário de o Mal.Hoje tinha uma surpresa para mim: oito folhas com mais de duzentas palavras. Nos últimos dias vinham-lhe versos à cabeça, versos dos poemas que sabe de cor, e ela ia registando as palavras preferidas, naquela letrinha impecável com que aprendi a ler.
- Acordei, às duas e meia, com palavras na cabeça. Acendi a luz para as escrever.
Foi assim que descobriste, mãe, o prazer febril de um post.

Madalena e os cromos

Madalena, tagarela praticante, “troca mazelas e achaques como quem troca cromos, à espera que ainda falte muito para a consulta”. Eu, para troca, só tenho uma rótula direita amolgada e um tendão renitente, que, a avaliar pelo nome - teno-sinovite - deve ser valioso.

André Bonirre

Madalena e as compras

Madalena escreve “a ferrugem das palavras não deixa nódoas” (NB - comprar skip!), “o ciúme é um diospiro verde” (NB – e açúcar).

André Bonirre

05 novembro 2003

TpC: o dicionário de O Mal


benefício de inventário: faculdade concedida aos herdeiros de
promoverem o inventário antes de aceitarem ou renunciarem a herança, não se obrigando por encargos derivados de dívidas ou obrigações do falecido, além dos valores dos bens que lhe hajam sido atribuídos (huuuff). "a benefício de inventário" significa "com a concessão desse direito". ex "deixou
(Castilho) arcas de riquezas filológicas; mas há pouco quem não renuncie à 
herança a benefício de inventário" (Camilo Castelo Branco, Serões de S. Miguel
de Ceide). é também o título de um livro de Marguerite Yourcenar.

acroático: cuja compreensão necessita de explicações. ainda : que diz respeito a um leitor. m.q. acroamático ex: Eduardo Pitta está sexta feira no TAGV, às 18.00h a apresentar o seu último livro, convida a Não te prives. Vou mas preciso de guia. Pitta é para mim um autor acroático.

acrisolado: purificado (como o metal, no cadinho ou crisol perde as impurezas).ex: no ponto a que chegaste, não há cadinho que te acrisole.

tenho mais palavras hoje (poucas). gosto do chão a significar querença ou querencia( o lugar a que os animais se afeiçoam e de onde vêm. e onde voltam. e que procuram . gosto de
fazer chão.

Comer os bebés das porcas

Estava no Stalag Um afundado numa malga de sopa, com o Gustavo em frente, e dezenas de pessoas a cercarem-nos, quase todas afundadas em malgas semelhantes. Que nojo! Que promiscuidade! Ele leu os meus pensamentos e disse, pensativo: Nojo é ir à Mealhada comer os leitões.

As portas do Metro

Gostei muito da coluna assinada por José Vitor Malheiros, ali, ontem: No metro ideal ninguém conseguirá entrar, o que garante a fraude zero. Também no sítio de onde saí irão construir portas electrónicas, o que garante o grau zero nas listas de espera.

Babelia

Mas no Babelia deste sábado o que mais me impressionou foi essa idéia perversa da Penélope ter dormido com os cento e vinte e nove pretendentes. Ah, uma mulher poliândrica... Ulisses que suspeitasse e não se retardaria tanto naquelas ilhas imprecisas do regresso.

Perdi os vossos contactos. Perdi-me!

Perdi a minha direcção electrónica. No último instante enviei aos meus amigos um endereço e estava errado. Tinha um underscore_ a mais. Quando dei conta criei um novo. Com underscore, mas sem números. Infelizmente já não tinha os endereços. Leio-vos e escrevo estes posts de um ciberkiosk adorável, no Quebra-Costas.
Gostei muito do novo livro da Sandra Costa e do Paulo Gaspar Ferreira. Trago-o sempre comigo, Nada se sabe das profundezas, num bolso a que chamo bolsillito. Também gosto do Bruno, e do Avatar, já tinha dito e a Sofia linkou-o, será mau como nós? E do Terras do Nunca. Que inveja, todos na Sociedade de Geografia e eu tão perto, a trabalhar, interdito ao prazer de os conhecer.
Digo que sim ao Mundo Imaginado. Mas só para colaborar. Organizar não nunca jamais.

High Windows


Eram quatro da manhã. Voltara à Rua da Matemática, mais uma vez espantado com a ruína da Casa dos Inkas. A minha missão era descer à couraça, espiar a casa que se debruça sobre o Colégio dos Òrfãos. Vi o medalhão de estuque na fachada sul, o muro circundante, a nogueira que invade o quintal, a escada semi privada que leva à couraça. Tenho que voltar, de dia.
No regresso vi a janela indiscreta e a janela iluminada da Maria José. Sim, li sobre o Robert Artl (não me apetece escrever o nome do outro gajo desde que foi laureado). Não, o mundo não me parece um brinquedo furioso. Não, não me sinto outro, de manhã, ao acordar. Mas acredito que, para ti, seja uma imagem muito forte, essa, de entrar no jornal e ver o colega descalço, em frente à rosa murcha, respondendo a quem lhe pergunta porque chora: Mas não dão conta de que ela está a morrer. (vê como evitei o gerúndio)

04 novembro 2003

A Alta de madrugada

Decrépitos, imponentes, Os Inkas dominam o Largo da Matemática. À Rua das Flores chegaram uns italianos que organizam festas. A primeira não teve o êxito merecido, porque choveu. Para a próxima convidem o Bruno, por favor. Na rua do Cabido há uma porta amiga dos gatos. O gato Diógenes não precisa, tem casa própria e mordomias das meninas. A casa do professor Costa Pimpão ainda se espanta com a Faculdade de Psicologia. A casa do poeta J.J. Cochofel está à espera da escrita. Os jardins escondidos sussurram uns para os outros: Tens quartos vagos? Não, só pra rapazes. A traseira do Sousa Bastos estremece o camartelo. O centro geográfico da Alta é a Boa Bay Ela. Um que eu conheci escava túneis de madrugada. Ainda esta semana entrará no Criptopórtico.

03 novembro 2003

Política

Andam muito activos a preparar o come back do engenheiro Guterres. Entendo ser este o momento oportuno para fazer uma declaração: não votarei no engenheiro em nenhuma circunstância. Só vejo duas pessoas com perfil para PR. O José Miguel Júdice e o prof. Freitas do Amaral. Não sei se teriam condições para derrotar o candidato da direita. Mas isso é outra história.

Na janela do pequeno almoço

Insonorizada pelos vidros duplos, a zaragata em frente é sobretudo uma tumultuosa perseguição cheia de cor. Indiferentes a mim, asas azul esmalte em peitos de ferrugem estardalhaçam-se pelas ramagens mais altas do sobreiro. Indiferentes aos gaios, um bando de penugem amarela debica minucioso a folhagem. Indiferentes aos chapins reais, vultos de negro veludo saltitam rente ao chão. Indiferentes aos melros, duas alvéolas rabudas dão passinhos apressados. Indiferentes a tudo isto, medonhas cegonhas mecânicas regurgitam ameaçadoras papas de cimento. Está pronto mais um piso das novas gaiolas de luxo, já em venda com garantia de vida climatizada e isolamento total do exterior.

André Bonirre

Good Bye Lieber Genossen

O texto Ich bin, posted by Luis, e assinado André com a minha permissão, obriga-me a uma brevíssima nota, pois contém, pelo menos, uma quase mentira, uma não mentira e uma verdade parcial. Mas o meu André também se aproxima deste André do Luís. É verdade que viveu numa rua que mudou de nome na capital de um país que já não há e continua a só gostar de pássaros em liberdade.

André Bonirre

Re: Dívida

gosto de gatos, de pintura, de poesia [cada vez mais]; apenas a arte contemporânea me interessa verdadeiramente; amo a música; de vez em quando apetece-me cantar o fado; nada me liga aos bens materiais, nem ao progresso pelo progresso, nem ao poder; prefiro as flores, os frutos, o que eu própria cozinho; sou francófona e bilingue mas escrevo melhor em português; nasci na Holanda, por acaso; sinto-me muito bem na Grécia; tenho uma obsessão misteriosa por Portugal; muitas vezes gostava de ser outra pessoa; tenho a íntima convicção de que para mudar de vida basta deitar fora o telemóvel; tenho sentimentos contraditórios em relação a muitas coisas; não defendo a coerência nem nenhum princípio pelo princípio; julgo que teria sido mais feliz se tivesse vivido nos anos 30; respeito o suicídio; penso que a Educação é a única grande missão política.

Obrigada, Sarah.

Livre Arbítrio.

Uma mulher holocénica, de lindos olhos fumados, ovulação escondida e uma relação cinta-anca de 0.7 encontra um jovem macho pleistocénico. Ela é monogâmica serial embora se julgue monogâmica a ultra-longo-prazo. Ele é poligínico filândrico embora se julgue monogâmico serial. Os olhos cruzam-se durante cinco segundos, falam, bebem juntos. Ao fim de alguns milhares de palavras têm um contacto físico casual e saem juntos do bar. Têm contacto íntimo e repetitivo durante um mês. Depois separam-se. Algum tempo depois a história repete-se com outros parceiros. Não houve sucesso reprodutivo porque usavam métodos abortivos precoces. Ainda hoje não perceberam porque é que aquilo não resultou.

02 novembro 2003

Susana Paiva

Foi preciso passar por ali para a encontrar. É incrível como ainda não falei dela. Mas devo-lhe muito- por motivos que ela conhece e que não são para aqui chamados. A Susana não é só uma grande fotógrafa de teatro e de jazz.

Os sinais desonestos, ah!


O pavão desenvolveu aquela assombrosa cauda como um ornamento sexual. Custou-lhe imenso. Tanta energia, músculo, tantas penas desviadas para aquela exibição. Uma enorme exposição aos predadores. O que um pavão fez para demonstrar a excelência dos seus genes ao olhar oblíquo das pavoas suas contemporâneas. Os riscos que gerações incontáveis de pavões correram para seleccionar um resultado tão medí­ocre, que parece hoje espantar mais a nossa espécie, sem evidente vantagem reprodutiva. A habituação das fêmeas aos ornamentos sexuais dos machos é o resultado de uma luta genética sem quartel entre genes femininos no cromosoma X, seleccionados sempre que contrariam os efeitos especiais de sedução promovidos pelos genes masculinos. Como se biológicamente as fêmeas favorecessem sempre formas de resistência à  sedução, obrigando os machos a uma espiral de espectacularidade.
A cauda do pavão, a crista do galo, a juba do leão, são sinais honestos.
O Ferrari, as tatuagens, os músculos inchados de esteróides são sinais desonestos.

Os meus genes, felizmente, continuam fáceis de enganar. Adoro os lábios com gloss sobreposto a bâton star red. E o blush poudre de douceur. E os smudgy eyes. E o lash extra lenght.

Acédia

Uma das primeiras palavras do dicionário de O Mal foi a palavra Acédia, enfraquecimento da vontade. Acédia é o título de um livro de poemas de Fernando Pinto do Amaral, editado na Assírio em 1990 e hoje encontrado naquelas caves soturnas das feiras que anunciam o Natal e onde amontoam livros com o preço unificado como nas lojas dos trezentos. O livro abre com uma citação de Blanchot:
Dans son rêve rien.
Rien que le désir de rêver.

Ich bin André. André Bonirre.

Vivi três anos Unter den Linden. Sei escrever em html. Cozinho a minha comida e a que ofereço aos meus amigos no sítio que agora habito. Não tenho web em casa nem outras comodidades essenciais. Sou secretivo- sei que a maior parte do que me revelam não deve ser contado, e talvez essa regra que a mim próprio impus de nada dos outros revelar, me faça passar por tímido. Danço tango, paso doble e outras danças de salão e sei que aí posso ser co-criativo como em outros lugares não. Sou engenheiro, racionalista. Nada me apega aos bens materiais. Os únicos objectos de valor que detenho são peças que amigos meus criaram. Gosto, verdadeiramente, de banda desenhada. Visto a roupa de um irmão mais novo e talvez isso me dê um ar juvenil. Entrego o que escrevo à Sofia de A Natureza do Mal com a invariável recomendação de enviar o material directamente para o lixo. Às vezes ela publica- deve ter necessidades editoriais e eu compreendo. Mas tudo tem um limite. Sou prestável. Não me importava de ir aos Açores procurar a Ana Paula Inácio. Gostava de a encontrar e era boa, a companhia que levava. Agora por favor: não me confundam com os gajos da prosa enjoativa. Não tenho a cara redonda e gosto de pássaros, mas à biologia digo daahhh!

André Bonirre

01 novembro 2003

TpC: o dicionário de O Mal

fogem-me as palavras de que gosto. desisti do B. e fui à procura de alento, uma
daquelas (lugar de travessão à llansol, que eu não consigo usar porque me sinto
a usurpá-lo). descobri que também quer dizer alimento e que o padre antónio
vieira disse nos sermões que a aurora é o alento do mundo (as delícias do
aurélio! (ainda não vos disse mas não aguentei tanta traição e também peneiro o Aurélio).
segui para aurora. desta comecei a gostar quando a associei definitivamente ao
calor, ao sabor, ao cheiro da cozinha da dona aurora, ao olhar perspicaz e
difícil da senhora que, à distância, me observava como mãe. e aurora é tudo. é
oriente, é princípio, é origem, é luz difusa, é "período antes do nascer do
sol, quando este já ilumina a parte da superfície terrestre ainda na sombra
".

estive quase a desistir, mas pelo meio descobri que bátega
também significa uma espécie de bacia (não tem muito interesse, mas achei-lhe
piada), que barulhar é confundir, que se diz fazer boa ausência quando se diz
bem de alguém na sua ausência e mais umas quantas que vos deixo à escolha, como
sempre. não são particularmente aliciantes.
foi pelo balceiro que cheguei a sáfaro.



sáfaro: agreste (é sáfara uma terra estéril); pode dizer-se do animal bravio, difícil de amansar (soa a liberdade); em sentido figurado, escolha-se entre esquivo, estranho, intratável, alheio, distante, apartado, desconfiado

bátega: em dia de chuva, dê-se-lhe um outro significado – espécie de bacia metálica antiga: “Esses tipos principais de vasilhas portuguesas são a talha, o pote, o cântaro, o caneco, o tenor, a tarefa, a púcara, o gomil, a escudela, a tigela, a infusa, ... a bátega, a pichorra, a botija, a cabaça, a malga, etc.” (Ramalho Ortigão, O culto da arte em Portugal). tantas!

barulhar: fazer barulho; confundir (uma outra forma de baralhar)

albardar: vem de “pôr albarda” e talvez por isso signifique também oprimir, dominar; mas quer ainda dizer cobrir com ovos para frituras (fatias, peixes , carne ou outros), vestir mal e... enganar, burlar, lograr, intrujar (barulha, não barulha?)

balandrau: diz-se de pessoa ou coisa grande e desajeitada (mas começou por ser opa usada por algumas irmandades em cerimónias religiosas; capa ou casaco largo e comprido; antiga vestimenta de capuz e mangas largas; roupa ampla e sem cinto. na gíria, os brasileiros, usam-no para sobretudo, o que diz muito da forma como vêem os sobretudos)

bauleiro: fabricante ou vendedor de baús


Silves, séc X

Silves, no século dez. Ali escrevia Ibn Al Il e talvez ali tenham passado Ibn Sarah e Rumi. Escreviam coisas magníficas:

Sou como o arco
e o meu verbo é a flecha
(...)

Foge do amor o coração apaixonado.
Deixa expirar o amor
e respira livre à luz da manhã.

(...)

Que noiva o tingiu do açafrão da tarde?

(...)
O nosso universo é um caramanchão de rosas.

(...)

O que pareço
Qual o meu preço
no mercado do Mundo?

Com gente que assim perguntava, , no século X de uma era que talvez não se contasse só assim, com dois deuses benignos e distraídos na igreja e na mesquita coexistentes, deve ter sido, Silves, um bom sítio para se viver.

Eunice

No comboio vão sentados frente a frente. É ela quem fala:- E pensar no que disse de ti à Eunice há menos de um mês. Se ela me visse agora aqui contigo. .. Ele sorri, divertido. Tem uma cara longa como o Nicholas Cage, um brinco, barba em desalinho. Vão sentados frente a frente e ela apoia-se com os antebraços na mesita amovível, projecta a face na direcção dele. Está apaixonada. Acontece frequentemente às raparigas. Mas hoje, neste comboio também ele parece apaixonado e devolve-lhe o olhar e a proximidade. Ficam os dois muito próximos até se encontrarem as bocas e longamente se provarem, ali, na carruagem 31 do comboio descendente, fim de tarde de sexta feira. Ela trabalha na Terceira secção da Primeira Vara Criminal, sai às cinco, apanha o Intercidades em Santa Apolónia até ao Entroncamento. Conheceram-se nas estações e amam-se. Disso a Eunice ainda não sabe.

Cinzas que o tempo esmaga. Cinza

Anfiteatro da Reitoria da Universidade de Coimbra, manhã de sexta-feira, decorria o conjunto de conferências sobre Oriente-Ocidente e falava Cláudio Torres. O Anfiteatro tem aquele ar anos oitenta desconsolados. É tudo grande demais, longe de mais, desconfortável, descuidado. O pior de tudo é a assistência. Muito velhos e muito novos. Os muito velhos estão de costas, impassíveis. Adivinho-os atentos. Os muito novos são quase todos mulheres recém desembarcadas em Coimbra-B, feias e com excesso de peso, cabelos sem brilho, tirando apontamentos como se uma avaliação lhes estivesse iminente. Quando Cláudio Torres acaba de falar, um dos organizadores, dirigindo-se aos estudantes, saúda-os e diz-lhes que aquela iniciativa só teria sentido com a sua participação. Parece que entretidos com a latada só agora aparecem. O organizador passa a apresentar Ohmar Kayan, o poeta da Pérsia muçulmana que viveu de 1048 a 1123 e foi uma presença da cultura grega, quando o ocidente cristão ainda gatinhava, entretido na "ruminação da palavra divina". Estava o professor a dar estes dados, quando, à uma, as estudantes se levantaram, e saíram, primeiro para o átrio , onde acenderam uns cigarros, e depois sabe-se lá para onde.
Foram já só os velhos a ouvir a Natália e o Jorge Fragoso, que diziam:

"A vida escoa-se
Que resta de Bagdad?

O menor toque é fatal à rosa
desabrochada.

Bebe vinho
evocando as civilizações que já viu
extinguirem-se
"