No voo 1823 de Atenas para G. deram-me a janela. Não gosto da janela. Tenho claustrofobia e prefiro a coxia das filas de emergência. Como tento ser o último passageiro no embarque, o que chamam depois do last call, os meus companheiros de fila já estavam sentados e sem vontade de se levantar. Pedi-lhes licença em francês, sugestionado pelo lugar de destino e pela roupa. Era um casal. A mulher olhou para o jornal que eu trazia debaixo do braço e disse-me, num espanhol perfeito, que
quienes lee El Pais no necesita de permiso. A viagem prometia conversa mas nenhum dos meus companheiros voltou a dirigir-me a palavra durante as duas horas e meia de voo. Liam. Ela, o que parecia um caderno de exercícios de respostas múltiplas, ele, um livro brochado, espesso que desencadeou imediatamente a minha curiosidade. Os livros de ambos estavam encapados em papel kraft, meticulosamente, como pensava que só a minha mãe era capaz de fazer aos livros escolares. O livro dele era profusamente ilustrado e pude ver um quadro de Durer representando a Fortuna, tendo aos pés os vales da Europa que atravessávamos, uma bolha enorme como as que dizem que se soltam na deflagração das bombas de hidrogénio e moedas cunhadas durante o período de César. Sentado à minha direita ele fazia pausas, durante as quais abria um pequeno bloco de tiras autocolantes, destinadas a assinalar um parágrafo especial. Olhava longamente para as tiras alinhadas no kit, amarelo, rosa, laranja, azul e escolhia sempre a mesma, a de cor laranja. Depois desenhava com precisão um diagrama no bordo livre da tira autocolante. Círculos e semi-círculos, atravessados por um traço oblíquo, por um S alongado, sinos deitados, cruzados, com um ou dois pontos de exclamação. Finalmente colava-a, de forma a que ficasse alinhada com as das páginas anteriores, ou da própria página, pois o livro estava densamente comentado, ostentando uma marginalia exuberante. Cada página remetia para extensas notas finais, algumas assinaladas pelos marcadores translúcidos, segundo o mesmo demorado processo decisório que, neste caso, terminava com a escolha sistemática da tira de cor azul.
Para o desenho dos símbolos o homem utilizava uma esferográfica de ponta fina da Faber-Castell, tal como a mulher, com a diferença que a dele era verde e a dela bordeaux. Eu escrevia furtivamente estas notas com um pequeno lápis da mesma marca. Em tempos usei lapiseiras da Caran d’Ache, das que se vendem no serviço de bordo, em estojos vermelhos, conjuntamente com uma esferográfica. Mas agora prefiro os lápis pequenos da Faber-Castell, de madeira macia, forma arredondada, de 12,5 cms,, com uma pequena borracha negra numa extremidade suportada por uma peça metálica de oito nervos e oito cravos, cor preta ou avermelhada, com as letras elegantes seguidas de um pequeno símbolo de dois cavaleiros em duelo. Três passageiros unidos pela Faber –Castell, pensei. Depois vi o glaciar da Planície Morta, o Tungergletscher e o Spitzhorn, Corbetta e a Ponta de Aveneyre e a seguir a entrada no Lago Léman por Montreux, a travessia do Lago em perda de altitude. Geometria na imensidão, o projecto da globalização metafísica, era o título do capítulo do livro quando voltei a olhar cima do ombro esquerdo. O homem escrevia agora numa página de um bloco encabeçada pela palavras Octubre 03. Escrevia com uma letra miudinha parecida com a minha. Pretextando apertar o cinto voltei-me para ele, e ao guardar no saco o meu bloco debrucei-me, o bastante para ler o que ele escrevia:
O homem escreve num caderno. Escreve numa letra miudinha com um lápis preto, onde em letras elegantes Arial Narrow se lê Faber-Castell. Esteve com os olhos perdidos no curso do Reno, talvez tenha visto os pés da Fortuna ...(Esferas II, Peter Sloterdijk)
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