31 janeiro 2004

Um livro para a tarde de hoje

Le Cornet à Dés, de Max Jacob. O primeiro prefácio data de 1916. As edições da Gallimard são de 1945 e 1955, respectivamente para o tomo I e II. A primeira edição portuguesa, traduzida pela Luiza Neto Jorge, é de 1974 (O Copo dos Dados, Editorial Estampa). Encontra-se a 5 Euros, nas feiras de livros. Pois não consigo seleccionar um pequeno poema em prosa, com medo que pensem que se trata de alguma alusão à pior contemporaneidade.

Afinal arrisco. Aqui vai: "Agustina era criada numa quinta quando o Presidente reparou nela. Para evitar um escândalo, conferiu-lhe títulos e diplomas de professora primária, a seguir um "de" para o seu nome, algum dinheiro, e quanto mais ele a dotava mais ela se mostrava digna dele. Eu, pobre camponês bretão, conferi a mim mesmo o título de duque, o direito a usar monóculo, e também me elevei em estatura e pensamento, só que não consigo ser digno de mim próprio."

Razões para não aceitar um prémio

Foi atribuído um prémio a Jorge Silva Melo. Ele recusou. Nem Deus, nem Mestre, nem prémios do Estado. O premiador declarou: pode-se recusar um prémio por ser pequeno, ou por ser grande demais.
Eu nunca aceitaria ser premiado por um premiador que pudesse fazer tais declarações.

Editorial Penélope

É sempre assim ao sábado. Ela acorda tarde, está imenso tempo no banho, pinta-se de vermelho absoluto. O perfume dela cheira a pó de arroz. Chega à livraria a pedir desculpa pelo atraso. Espera-a sempre um jovem escritor. Quando é de história, ela recebe o original, folheia-o com angústia, arranja pretexto para se levantar, dar passos largos entre as estantes como se empunhasse um espanador. Cem páginas de texto e trezentas de notas de rodapé, repete baixinho, até se acalmar.

O suicídio nos professores

Os professores suicidam-se quando jovens. Ou começam a beber demais. Para recuperar a autoridade perdida nas escolas, falam alto em casa. Estão longe das famílias. Divorciam-se.
Os professores de trabalhos manuais escapavam a este destino trágico. E as mulheres, nos conselhos directivos.

O suicídio nos polícias

Os polícias suicidam-se quando jovens. Ou começam a beber demais. Para recuperar a autoridade perdida nas ruas, falam alto em casa. Estão longe das famílias. Divorciam-se.
As mulheres polícias escapam a este destino trágico. E os homens, em serviços administrativos.

30 janeiro 2004

Maria Eugénia Varela Gomes, Contra ventos e marés

A mulher que num dia dos anos sessenta, frente a uma carga de polícia, disse às filhas: "meninas, da polícia não se foge", e enfrentou a carga de cabeça descoberta, tem as suas memórias publicadas. É na Campo das Letras, uma entrevista de Maria Manuela Cruzeiro, no âmbito do Projecto de História Oral do Centro de Investigação 25 de Abril da Universidade de Coimbra.

Síndrome do senhor Palomar

Queria falar de mamas. Adorava. Passei o dia a pensar no tom exacto. Andei às voltas entre a comoção, o espanto, o apreço, a recolhida homenagem, o sobressalto ou a gratidão. Mas não consigo. Sinto sempre na cara o rubor de uma estalada talvez merecida. Silvano, talvez tu, com tesão sem vergonha, conseguisses. Chamo a esta inibição o síndrome do senhor Palomar*. Talvez um dia, depois do divã, eu consiga. Estou curiosíssimo.


*de Palomar (O seio Nu), Italo Calvino, editorial Teorema, 1985

Outro outro eu

Nunca me conformei com a minhas origens neerdentalesas. Eu sempre quis ser um homem estrangeiro.

Outro eu

Entre a cupidez e a incompetência, nenhuma.

29 janeiro 2004

Outro almoço

Outro almoço, mais árido, muito tecnológico, deixa-me saudades das iguarias de ontem. JKOZ, OLEP, TTIC, REPEC. Afivelo um ar de inteligência artificial que ensaiei para estas alturas em que me falam por siglas. Saco de umas quantas, das que trago sempre de reserva. TRATEP, RELOP, OLAP. Disparo e, pelo ar do interlocutor, não preciso de corrigir a pontaria. Nova rajada e assim por diante. Acabou o almoço e só me vem à memória “essa valente litrada servida pelo Nuno”. “Uma forte razão”, não, não podemos parar, temos de escrever!

André Bonirre

Que o diabo nos junte

Sim, caro PC, afinidades. Como tenho contigo, frequentemente. E não apenas pela qualidade da escrita. Sobre o diabo devo dizer-te: foi, durante uma noite muito longa, uma das poucas manchas de liberdade. Benvindo seja quem, por via dessa herança, se juntar a O Mal. Só posso prometer que não irá a lado nenhum mas a muitos lugares.

28 janeiro 2004

A blogosfera é uma festa

Sous les pavés, la plage: pedras certeiras. Pode ser que desta vez valha a pena ( que frase tão sibilina). E essa loucura cheia de cor e fúria, essa vida inconfundível, a tua vida. Vão ver.

Saudação

Um novo blog cheio de nerve, gosto de polémica e boa escrita. Os mostrengos. Benvindos.

Mamografias

As novas mamas mais novas da mana mais velha, as mamas fotografadas da noiva, as mamas decotadas da apresentadora parva, as mamas empinadas da modelo de silicone , mamas distintas de fato e gravata, as mamas pujantes de fato macaco, as funções múltiplas de mamas canivete suiço, mamas especializadas chave de fendas, mamas de desmame, mamas de leite, mamas, hoje, mamas ao almoço, ao sabor da Máxima, o vendedor a oferecer catálogos de mamógrafos.

André Bonirre

Câmbio

Janeiro despede-se com fulgor. Os céus estão limpos e a serra da Lousã. Toda a esperança volta a ser possível. Dia de redenção. Apetece escrever como na Máxima ou Pais e Filhos e combinar: este sábado, granito ou calcáreos? Escuto.

Declaração

Gosto de ti.
Sem exageros.

Não dava um post
hoje
a minha vida.

Guidelines

Ponham quatro desfibrilhadores em cada estádio. Um por cada bandeirola de canto. E uma equipa do INEM nos jogos da Primeira Liga. Treinada em Suporte Avançado de Vida. Na Divisão de Honra basta alguém com noções de Suporte Básico de Vida. E nos jogos de basquete um bombeiro. Homens com três ou mais factores de risco devem ser identificados à entrada e acantonados num sector com meios de reanimação adequados. Façam pausas compensatórias depois de cada jogada de emoção. Apoio psicológico às claques. Espaço para estender as pernas entre as filas, e ao intervalo, massagens nas varizes .

Hanna Arendt

Mas até nos tempos mais sombrios temos o direito de esperar ver alguma luz, e é bem possível que essa luz não venha tanto das teorias e conceitos, como da chama incerta, vacilante e muitas vezes ténue, que alguns homens e mulheres conseguem alimentar em quase todas as circunstâncias e projectar em todo o tempo que lhes foi dado viver neste mundo.

O Caso Morel

Nada temos a temer
excepto as palavras.

Rubem Fonseca , no Caso Morel uma história de uma moça morta, urubus, policiais distraídos e..., publicada pela Bertrand em 1976 e hoje com o Público.

Ontem, tanto medo tive das palavras, que não escrevi.
Um demónio do Mundo Antigo tinha sido chamado, e quando vem, fica tudo deserto à sua volta. Não fui eu a convocá-lo, ao que julgo. Trago o anel comigo, mas nenhum mago que me proteja. Eu sei o fim da história. E não quero palavras nenhumas para a contar.

27 janeiro 2004

O SONHO E O NÍVEL ZERO

Relatório:
Na qualidade de inspector da PIDE/DGS foi-me incumbida a missão de conduzir os interrogatórios a efectuar a um indivíduo com nome de código Abrupto suspeito de pôr em causa a eficácia e o bom nome das instituições prisionais destinadas à retenção de indivíduos que pelo seu comportamento ponham em causa a segurança do Estado.
O referido indivíduo afirmou publicamente que os métodos de tortura praticados por estas instituições não incluíam queimaduras, nem desnudamentos (no caso das mulheres) em desrespeito absoluto por um artigo publicado no jornal oficioso do Estado, que afirmava serem essas práticas correntes e necess ..............
Abruptamente toca o despertador, dou um salto na cama, o coração bate descontroladamente:
Primeiro a angustia, depois o alivio, afinal eu não era inspector da PIDE.
Um pouco mais tarde enquanto tomava o pequeno almoço e lia nos jornais on-line algumas noticias relacionadas com o julgamento de Aveiro e ainda não completamente refeito pensava para comigo: As vezes este Abrupto comporta-se como um autêntico abrupto.

Escrito por Jota

Antologia de O Mal: Ana Luísa Amaral

Quarta Metamorfose

Por isso precisara
da metamorfose,
de construir um pêlo fulvo
e rente,
em vez de pano largo
tecido a solidão


Era mais fácil enfrentar o sol,
era mais fácil lidar com as estrêlas
que haviam construído um ninho
de ternura,
e depois desabado
da árvore mais larga,
no atónito
de tudo

Era mais fácil
a arte de ser
tigre

Ana Luísa Amaral in A Arte de Ser Tigre, Gótica, 2003

26 janeiro 2004

Câmbio, escuto

Telefonou-me quando saía do trabalho. “Então não trabalhas?” A chamada caiu antes da resposta, o costume, problemas de bateria ou rede. Teclei uma mensagem SMS. Não a enviei. Nunca repara nas mensagens e, quando as lê, não responde. Vou comunicar antes por Post e Comment (lembras-te como lhe chama a Zazie?). É fácil e não falha. Tu nunca falhas a leitura d’A NM, eu sei. Podes responder. Escuto.

André Bonirre
Vamos baixar o nível: há dias em que o Abrupto é um vermiforme. Quando o tema é a tortura nos campos de concentração, devia meter a erudição no bolso e calar-se, respeitosamente.

Resistências culturais e políticas...

A ti, meu visitante de testa alta cheia de gravidade, obrigado pelo livro. Ele desperta outro grave silêncio: o da menina para quem, nesses anos tão longe, essas palavras eram ameaças que se viriam, todas, a concretizar.

Eu não estou aqui prás encomendas

Nenhuma fidelidade. Nenhuma encomenda. Aqui escrevo apenas o que não pode deixar de ser escrito. Enganam-se os que me julgam reconhecer. Eu não sou esse. Não estou aqui para falar dessa coisa a que chamam os valores. Não sei o que sejam. Nem da memória. Não me convoquem para nenhum grémio, corporação, conselho, comité. Aceitasse, e havia de vos trair.
Eu estou aqui para falar de comboios. Onde tu fosses, e na volta do Porto para Trofa escrevesses poemas sobre o mar atlântico, esse mar. Para bater latas como pano de fundo às palavras douradas da Sofia. Para esperar- o teu marido que se lixe Madalena- um post raro do André. Eu não sou de confiança. Estou aqui para escrever sobre o púbis orgulhoso das mulheres, na primavera, antes de haver guerra. Das gargalhadas tão perto dos soluços. Da nobre função da literatura.

Os novos gladiadores

A arena, não era circular

o imperador, que vestia de preto
não usou o polegar

o gladiador sorriu ....

o seu corpo!!! saiu sob os gritos
da multidão

....tinha 24 anos

Escrito por Jota


A próxima estação

Chove, enfim. Como deve chover no inverno. Desconsoladamente. Sem esperança de sol no horizonte. Nas serras, escreve-se em silêncio a próxima estação. Vamos deixar que chova, aqui, também.

Eles são assim

Isadora escreve comovidamente. Francisco redimiu-nos da xenofobia. De vez em quando o Pedro reabre O Dicionário e sentimo-nos sempre mais inteligentes. Concordo tanto com jmf, invejo tanto aquela lucidez serena que chego a desconfiar da sua existência. Quem escreve como eles tem á espera uma glória fácil. Por favor Ana, nem o iberismo merece um sacrifício assim.

A cultura para os estúpidos

Ontem na sic-notícias, talvez o espaço mais plural da informação televisiva, uma das manas Avilez entrevistava três amigos, como jmf também viu. Eu até acho adorável que se encontrem, num branching da Quinta da Marinha, ou num fim de tarde no T-club. A senhora, habitualmente tão acutilante com qualquer dos seus convidados que mantenha uns laivos de esquerda, derretia-se com os amigos. Pedro Lomba estava à vontade. É muito melhor assim, não é? Sem aquele chato do Daniel Oliveira à perna, a morder-nos cada opinião. Sentimo-nos muito mais inteligentes, entre admiradores. Um dia destes, Pedro Lomba deixa É a cultura para os estúpidos e fala-nos só dos altares da comunicação social. Que tenha a lucidez suficiente para perceber que essa graça não lhe chegou por um dom especial com que a natureza eventualmente o bafejou. Os plutocratas reconhecem-se. E são reconhecidos a quem, pelas disciplinas nobres, os legitima.

Miklos Feher

Um rapaz louro da Hungria que jogava futebol. Um rapaz que marcava golos. Um rapaz que sorria, no momento preciso em que qualquer coisa, incrivelmente necessária, dentro de si se desligou. Um rapaz a morrer em directo em frente a uma câmara.
Era suplente. Entrou perto do fim. Fintou quanto pôde e fez uma falta para ganhar tempo. Mas a morte não se enganou.

25 janeiro 2004

Declaração

Este blog é o nosso blog. Da Sofia, do André Bonirre, do PC e meu. Gostamos de ti, Natureza do Mal. Nunca renegaremos a tua autoria. Sim, é verdade que muitas vezes eu não tenho razão. Sim, podíamos estar mais bem dispostos. Sim, o P.C. abandonou-nos. Sim, Madalena, o André Bonirre é de entusiasmos. Sim, podíamos ser mais cultos, mais tolerantes, mais confiantes nas mulheres e homens da nossa espécie, no progresso e no contrato social. Mas é o que temos. Orgulhamo-nos de ti, Natureza do Mal.

Ver este, este, este e outros.

Newton abusado

Tem, em Cambridge, a cátedra que foi de Newton. O seu cérebro é prodígioso e parecia incólume à doença que o foi tornando mais e mais frágil. Os seus livros, e os livros que contam a sua história, venderam-se aos milhões. Orgulhamo-nos dele. É, de certa forma, um símbolo da nossa humanidade. Ontem acordámos com a notícia envergonhada que as enfermeiras da urgência de Cambridge há muito partilham com a polícia local. Queimaduras, feridas na face sem explicação plausível, fracturas. O cortejo, que os alunos de medicina aprendem a identificar como sinais diagnósticos de abuso, nas mulheres dependentes, nas crianças e nos velhos internados em instituições. Como eles, negou-se a prestar à polícia declarações que identifiquem o agressor.

Mulheres: Meg Ryan/Jane Campion (2)

É espantosa a frequência com que me encontro em discordância com EPC. Escreveu sobre In the Cut. No meio da prosa lembrou-se de miss Kidman para a contrapor a Meg Ryan. Concerteza que miss Kidman estaria bem naquele como em qualquer outro papel. Mas é uma maldade, que não subscreveria, diminuir Meg Ryan no momento em que se liberta do esteriótipo de actriz bonitinha da comédia americana, para ser uma mulher de Jane Campion.
In the Cut é sobre o desejo feminino, corrijo. A coreografia do primeiro encontro com o detective, a forma como ele conta a sua aprendizagem amorosa e evoca a mulher mais velha. A suspensão do olhar na cave. A coragem com que se frequentam os lugares do perigo. A posse do homem hemi-algemado.
Mas é também sobre a forma como as mulheres vêem o desejo dos homens. Pois não é ela (professora, e de inglês) quem convoca o aluno para um terreno minado? Não se envolveu com um outro, claramente perturbado? Não escreve a palavra desarticulado , e, avisada dos perigos, insiste? O sonho é esclarecedor: a paixão do pai traça na neve uma ameaça mortal.
No amor, a mulher só repousa nos braços do amante algemado. Para lá chegar a sua irmã foi sacrificada. E o seu corpo está manchado com sangue. De outro homem, em tudo semelhante e diferente do seu.

A leitura eterna

Para quem procurava fantasias úteis ao fulminante coração foi reconfortante encontrar a imagem do Abrupto, a prometer que poderemos ler, depois de mortos.

O Blog de Esquerda II

O Zé Mário está de parabéns. Janeiro é generoso para quem o merece. No mesmo dia acontecer tanta coisa. E todas merecidas. Quem assim fala de Robert Artl. Quem como ele falou de Rulfo. Merecia citação outra. Logo que possa, será para ele que escreverei sobre Roberto Bolaño, o chileno, El gaucho insufrible.

A servidão e a pobreza

Os servos fiéis serão sempre servos e os homens bons serão sempre pobres. Da servidão só escapam os infiéis e os audazes, e da pobreza só os rapaces e os fraudulentos.

Nicolau Maquiavel , A Revolta dos Ciompi, tradução de Luís Nogueira, Mareantes editores, Lisboa 2003

Antologia de O Mal: Hélder Moura Pereira

Meu coração igual ao meu
outro coração, vive comigo,
vive e faz do meu viver
o teu viver. Fui várias vezes
o mesmo, aceitei a primavera,
descontei contas por ti,
ó meu outro coração. És o centro
da minha atenção, pareces-te
tanto comigo, acompanhaste-me
nas fases do meu corpo, fiel
coração. És tu que me recordas
quem eu fui, tenho umas imagens
que toco de longe, vozes, sê
generoso meu pobre coração.

in Um Raio de Sol, Assírio e Alvim, 2000

24 janeiro 2004

Victor Klemperer

Victor Klemperer, nasceu em Landsberg em 1881 e morreu em Dresden em 1960. Filólogo, anotou a vida quotidiana do Terceiro Reich, e a forma de como o nacional-socialismo utilizou códigos linguísticos que eram inicialmente grupais para se tornarem depois de toda a nação ( (Lingua Tertii Imperii, LTI). Afastado de todos os lugares académicos e impedido de trabalhar pelas leis de depuração racial, o facto de ser casado com Eve, uma não-judia, poupou-o da deportação. Resistiu às perseguições redigindo, com grande risco, um monumental diário, Os Diários de Victor Klemperer, Testemunho Clandestino de um Judeu na Alemanha Nazista, traduzido por Irene Aron para o português (do Brasil) e editado pela Companhia das Letras. Em maio de 1942 depois de uma humilhante busca domiciliária feita pela Gestapo ele escreveu: "Continuarei a escrever. É esse o meu heroísmo. Prestarei testemunho, testemunho preciso."

Mulheres: Meg Ryan/ Jane Campion

In the Cut, de Jane Campion, é um filme de mulheres, sexo sem amparo, Nova Iorque e memórias. Meg Ryan está soberba. O cabelo e o corpo em desalinho. Um apartamento tão exposto ao exterior, a uma chuva de pétalas ou a um agressor inominável. É quase sempre de noite, ou o dia é visto de um ponto incomum e com uma luz ambígua. Os homens espreitam, perseguem, cercam, enviam mensagens. Os homens são confundíveis nos seus sinais, mesmo naqueles em que parecem ser únicos. Ela não tem medo. Não tem medo do escuro, do aluno, do bar, do jardim deserto da periferia, de abrir a porta onde o inferno a pode esperar.
Adoro nela o tornozelo fino, que a câmara tão sábiamente mostra na sequência em que, descalça do pé esquerdo, espera na esquadra que a levem a casa. E é por aí que o seu agressor a agarra, quando sobem as escadas. Mas quando ela se vira e o olha nos olhos, ele larga-a e titubeia: tem uma pétala na perna. É assim que elas vêem o desejo masculino. Entre a máxima delicadeza e o pesadelo do desmembramento.

Novos públicos

João Maria André, director do TAGV, fornece números de bilheteira, do ano em que decorreu a Capital da Cultura e de um período de 2002 imediatamente anterior.
O TAGV teve, no último trimestre de 2003, 171 espectadores/ sessão ( em igual período de 2002, antes da Capital de Cultura, tivera 316 espectadores/ sessão). A percentagem de ingressos gratuitos no último trimestre de 2003, no TAGV, foi de 51%.
O SITE, um fascinante festival internacional de Teatro por onde passaram companhias do Reino Unido e da Austrália, teve, nas suas 11 sessões, 98 espectadores por sessão. 61% destes espectadores tiveram direito a bilhetes gratuitos.
No Museu dos Transportes (capacidade para 150 espectadores), decorreram 76 espectáculos. Assistência média por sessão: 55 espectadores.
No Convento de S. Francisco (ruinas) a capacidade é de 180 espectadores. O número médio de espectadores por sessão foi de 67.
O Convento de Celas, como espaço de eventos, alberga 100 pessoas. O número médio de espectadores por sessão foi de 57.
A Cena Lusófona compôs-se de 23 espectáculos. Teve 87 espectadores por sessão (74,5% de entradas gratuitas).
O espectáculo que assinalou o Dia Mundial do Teatro (estreia) teve menos de 150 espectadores. O do Dia Mundial de Dança 271. O do Dia Mundial da Música 105.

Na direcção das serras

Coimbra 2003: E depois da Festa? Com toda a admiração e respeito pelas pessoas que estão reunidas na Oficina Municipal do Teatro, Vale das Flores, Coimbra ( e que continuarão a partir das 15 horas), só me lembro de um acto de cultura: vir para a rua, para o imprevisto sol, e caminhar na direcção das serras. Por um capricho do destino que não previ, e acredito não merecer, encontro-me sózinho nesta disposição e o meu manual diz que é perigoso, não se deve caminhar sózinho.

23 janeiro 2004

23 de Janeiro, Arnaldo

Foi preso em casa, na Travessa de Montarroio. Os jornais noticiaram com relevo a sua prisão. Foi lá que a filha, de 12 anos, leu a biografia contada pela polícia. Anarquista, leu ela. Bombista, leu ela.
Mais tarde, quando o juiz o condenou a 20 anos, ouviram-no dizer : Sou novo hei-de voltar.
Foi o seu maior engano. A fascíola hepática, e o médico do Campo, pago para matar, haviam de trair o seu optimismo.

Dissolvido o Comité de Apoio a Pedro Dias

Foi um erro promover um comité de solidariedade para o Pedro Dias. A folha do sôr zé manel furnandes deu-lhe ontem justo relevo entrevistando-o (bela foto). Fica assim reposta a justiça que, pelos vistos, a cidade natal negou ao Pedro nos últimos anos . O comité, esse é que não podia funcionar. No primeiro dia recebemos dezenas de mensagens. Muitas mulheres. Madalena, por exemplo: "O quê? O Pedro disse mesmo que era de direita e heterossexual? Que é de direita eu confirmo. ". Mas a mensagem mais emotiva foi a do vereador Mário Nunes, responsável pelo pelouro da cultura popular na Autarquia Conimbricense, que segundo a crónica, estava na mesa onde as polémicas declarações foram produzidas. Diz ele: "O Senhor Professor (Pedro Dias) entendeu criar um facto que ensombrasse o impacto que a minha intervenção teria, não fora a sua brincadeira, refira-se com pesar, totalmente despropositada". O vereador esclarece em seguida que anunciou a captura e abate, com meios tecnológicos novos (uma carrinha celular insonorizada e impermeabilizada), de 274 canídeos e 54 felinos que incomodavam os munícipes e constituiam um perigo para a saúde pública.

O Micro-ondas

Por falar de mulheres, Madalena sempre comprou o micro-ondas e quer pôr outro anúncio – “garagem aluga-se”. Não é que na máquina dos descongelamentos vinha um brinde agarrado ? - um automóvel público exclusivo, só para Sociedades Anónimas.

André Bonirre

As mulheres

Escrevi sobre a religião e não tive nenhum comentário. Pode-se afinal escrever sobre tudo, impunemente. Vou começar a escrever sobre as mulheres.

22 janeiro 2004

Outra vez à janela

O esbracejar de asas em ritmo de queda iminente daquela pega rabuda na madrugada levou-me os olhos do pequeno almoço para o céu cheio de azul. E do céu para os ramos do pinheiro em frente, onde saltitam, animados pelo ar primaveril, os melros de veludo. São quatro ou cinco, entretidos em jogos de namoro. E mais um, que os fita de longe, especado, não ousa participar.

Pela pinta, deve ser melro de direita, do PSD e heterossexual. Solidariedade com essa tripla minoria, sempre!

André Bonirre

21 janeiro 2004

Que livro será ?

Em cima da mesa está o livro de capas vermelhas. Um livro. De viagens. Do autor. De viagens do leitor. De viagens dos leitores. Um livro viajante - viajante por certas mãos (e dedos e olhos), por tempo incerto, regressou sempre. E parte.
Um livro de viagens, viajante, viajado (foi até e veio de um país que já não é), que livro será ? Será um livro ?

André Bonirre

No Iraque ou em França a mesma luta.

No Iraque eram 5 quilómetros de gente agrupada pelo chefe religioso chiita. Gritavam contra o ocupante. Vi imagens. Não havia nenhuma mulher. As mulheres chiitas só têm direito a manifestar-se em França, sob o enquadramento dos seus legítimos proprietários.

As invasões francesas

Quem delira com esta questão é o senhor Mário Pinto. Maila-se com Chirac e vem-nos fazer queixa. Chirac disse-lhe qualquer coisa como: "devemos viver a nossa fé na intimidade dos corações". Em francês isto é ainda mais bonito. Foi assim que desde o senhor D. Manuel I até quase aos nossos dias os judeus da península viveram a sua fé. Ele, Mário Pinto, vê nessa frase uma ameaça ao direito de celebração pública dos cultos. E remata: "Devemos deixar de fazer as nossas procissões? De deixar de tocar os sinos?..."
Um dos meus poetas, um homem de palavra(s), escreveu um dia sobre o Portugal Futuro. Era um tempo escuro em que o Cardeal benzia um poder ditatorial. E ele disse: "Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz/ mas isso era o passado e podia ser duro/ edificar sobre ele o Portugal futuro." Hoje essa questão é pacífica. Os párocos encarregaram-se de substituir os sinos da minha aldeia por horríveis gravações de um badalo sempre-o-mesmo. Mas a questão, a horrível questão é esta: tempos houve em que os sons do catolicismo não eram apenas os das práticas benignas que Mário Pinto enuncia. De vez em quando, as nossas praças enchiam-se com os cânticos dos condenados e a crepitação da carne nos autos-de-fé. E sabem quem é que acabou com estes brandos costumes? Não, não foram os nossos reformadores. Foram as tropas francesas.
Digam-me que estou enganado, por favor.

O rosto oculto pela religião

Que questão difícil a da lei Stasi. Corajosos os que a têm abordado. Não gosto da burka. Tenho medo das mulheres que ocultam o rosto com lenços. Sobretudo dos lenços negros. Já me disseram que por debaixo podem ter lingerie Versace. Deus, ou Alá acolha esta hipótese. Mas raramente acontecerá. A ocultação do corpo das mulheres é uma forma brutal da dominação masculina nas sociedades atrasadas. As mulheres que desfilaram nas ruas de França são vestidas por homens desprezíveis. Virá o tempo em que o fundamentalismo islâmico se reformará. Atendendo à experiência acumulada pelas nações ocidentais faço votos para que os cientistas laicos do Islão reformado não meçam as cabeças dos ayatholas caídos em desgraça. O problema é que o fundamentalismo islâmico substituiu, nos povos deserdados, as ideologias libertadoras do século 20, ou as suas vulgatas, adaptadas pelas elites locais como fonte de legitimação. Que conversa. Já estou cansado deste post e ainda não saí do lenço islâmico.

Visão

" Tal como Bush, Durão está protegido pelas estrelas: a recuperação chegou no ciclo político ideal." Luís Delgado
Delgado que se cuide. Com ou sem retoma, nas estrelas começou já a derrocada de Bush e de Durão. O tempo está pronto para o que vai render Paulo Portas.

Teresa

Já fixaram, seguramente, este nome: Teresa Simões Ferreira. Ou Teresa Heinz. Ou Teresa Kerry.

Seis vezes

Tinha prometido a mim próprio assinalar os primeiros (?) sinais de degenerescência. Aí estão. Este sábado vi-me, pela sexta semana, a concordar com a Helena Matos. Consecutívelmente.

Gelados

Madalena preocupa-me. Administradora hospitalar anónima quer pôr um anúncio. Troca promessa de carro novo por um micro-ondas. Congelaram os gestores públicos, coitados.

André Bonirre

20 janeiro 2004



O Professor Pedro Dias tentando entrar nos meios intelectuais conimbricenses (imagem de arquivo)

Solidariedade com Pedro Dias

Ao apresentar a programação do Pavilhão Centro de Portugal (que Siza Vieira construiu para Hannover e é agora uma herança machadista transplantada para a margem direita da várzea do Mondego ) o Prof. Pedro Dias explicou porque é que não tem feito nada em Coimbra nos últimos anos (assinado por GBR e sem link porque a Local/Centro da folha do sor zé manel furnandes não tem dignidade para estar on-line, ao contrário do Local Lisboa, Porto ou Minho ):" Não sou fácil de aturar; em segundo lugar sou do PSD. E sendo de direita e heterossexual, há grandes dificuldades em entrar nos meios intelectuais conimbricenses."
Pois é, Pedro. De direita, do PSD e heterossexual. Tu sabes o que custa pertencer a uma tripla minoria. Também não era preciso arquivarem-te na Torre do Tombo, caramba. Podes contar com a nossa solidariedade.

Coimbra 2003: E depois da festa?

Cidade, Cultura e Política (s). No sábado, 24 de Janeiro, na Oficina Municipal do Teatro (Vale das Flores, em Coimbra), o dinâmico Grupo da Cultura do Conselho da Cidade de Coimbra (Grupo.Cultura@mail.pt) organiza um debate onde pretende fazer o balanço do que foi a capital da cultura nesta cidade, que objectivos cumpriu e que vias abriu. Os convidados, chamados de oradores no postal que anuncia a iniciativa, são Pedro roseta, Abílio Hernadez, Seabra Santos, Augusto M. Seabra, João André, António A. Barros, Victor Diniz, Carlos Fortuna e Manuel Maria Carrilho. A partir das 10 horas da manhã.

19 janeiro 2004

Para que serve, não sei

Aquela gruta na falésia, uma lua ao luar, os garranos selvagens que não eram selvagens e a fúria do pastor. O fogo do entardecer (a planície, o pó e a L4 a transpor o riacho), as orquídeas anãs agachadas como nós a fugir ao vendaval, e, depois, o depois e o depois, a vida e a vidinha, esforço de viver.

André Bonirre

Três síndromes, quando nos perdemos.

Quando nos perdemos, quando caminhamos no nevoeiro que subitamente caiu e nos isolou, desenvolvemos três comportamentos típicos: o síndrome de Walter Benjamim, o síndrome de Caspar Friedrich, o síndrome de Blanqui.
Aquele que é possuído pelo síndrome de Walter Benjamim pensa que o mundo vai acabar, que aquela desgraça que se abateu naquele local é a nova ordem mundial. E que durará mil anos. Identifica a sua sorte pessoal com a da humanidade; precipita-se para o nevoeiro, mesmo sabendo que um precipício se pode abrir à sua frente.
O que tem o síndrome de Caspar David Friedrich, o pintor romântico da Alemanha do norte, detém-se ali, onde deixou de se ver, como se estivesse no último lugar aquém*. Impávido, de rosto a descoberto, olha os lugares ao longe, onde a bruma desenha torres e cumes. Não tomará nenhuma decisão. Aguardará que o tempo mude. Cúmplice dos musgos ele acredita pertencer a um poder sem nome nem forma. E espera.
Aquele que sofre do síndrome de Blanqui, o revolucionário voluntarista, traça um plano baseado na lógica simples de que há saída para todos os problemas, os homens são naturalmente bons e a organização a chave do êxito. Aponta o caminho ao grupo e rapidamente convence os indecisos.
Quando nos perdemos, quando as coisas correm mal, fico sozinho. Os meus companheiros escolhem os caminhos e as suas escolhas são sempre as mais correctas. Dão-me bússolas os que gostam de mim.


Walter Benjamin- Hannah Arendt escreveu sobre a sua morte, nos Pirinéus, em fuga dos nazis, na noite de 25 de Setembro de 1940 (Homens em Tempos Sombrios). Recentemente, o colombiano a escrever em Espanha Ricardo Cano Gaviria (O Passageiro Walter Benjamin, Antígona, 2002) romanceou essa noite trágica.

Caspar David Friedrich- Pintou "Viajante contemplando um mar de nuvens", recordado por Alexandra Lucas Coelho *em Erva-Moira (Aquela parte de nós), 2003.

Perdi os livros que falavam de Blanqui. Descreviam-no como um homem generoso e por vezes equivocado. Mas desconfio dos que assim lhe assinalavam os erros.

Novo Formato

A notícia caíu como uma bomba. Ela, depois de uma longa hesitação, declarou-nos de leitura diária. É com muito prazer que retribuímos. Não se trata de cortesia, mas de uma questão de inteligência.

Para que serve viver?

Ela considera que os blogs são "um exercício narcísico". Pelo menos foi isso que lhe ouvi dizer há uns meses, num jantar em que o André Bonirre inaugurava a sua nova casa. Agora ela, sempre com um sorriso angelical, diz que que os blogs são, "assim como que diários de adolescentes..." E remata com a pergunta que já ouvi mil vezes: "para que é que servem? "
Para que serve escrever? Lembrei-me de Vila-Matas, de Coetzee, de Kafka. De Elisabeth Costello depois da segunda conferência sobre os poetas e os animais. "Mãe, acredita mesmo que as aulas de poesia vão fazer fechar os matadouros?", pergunta John Bernard; e a sua mãe responde: "Não.""Então porque faz isto?", insiste ele.

Marie Trintignant, de novo

Anunciado na Gótica, e em pré publicação n os meus livros, o livro que Nadine Trintignant dedica a sua filha Marie, batida até à morte pelo namorado Bertrand Cantat, vocalista da banda rock Noir Désir e popular entre "as grandes causas". As três páginas reflectem a dor brutal de uma mulher que viveu uma tragédia indizível: a perda de uma filha às mãos de um agressor que a dizia amar, numa rua ao lado do sítio onde dormimos, surdos aos gritos que talvez tenha soltado.

La Aznaridad, Montalbán de regresso

Manuel Vásquez Montalbán está de volta com La Aznaridad, Mondadori, Barcelona, 2004. Montalbán analisa os oito anos de poder do PP para concluir que se realizou o franquismo sem franco, a realização do ideario dos vencedores da guerra civil numa situação de democracia e pertença à NATO.250 páginas de, diz quem leu, combate, paixão, exagero e lucidez. E ainda não saíu o anunciado Carvallo. Montalbán, está vivo, e não é apenas nos nossos corações.

18 janeiro 2004

Declaração Universal dos Direitos dos Animais Sencientes

Todos os animais- todas as criaturas sencientes- são iguais, quero dizer, têm direito a um reconhecimento igual dos seus interesses sejam eles quais forem. Disse Elisabeth Costello e não encontro nenhum motivo, racional ou do coração, para não concordar.

Barbara B Smuts


Barbara B. Smuts é Professora de Antropologia e Psicologia na Universidade de Michigan, Ann Arbour. O seu livro mais famoso resultou de um trabalho de dois anos com os babuínos e está publicado na Harvard University Press (a edição paperback de 1999 custa 20 €). Barbara demonstrou que as fêmeas preferem os machos com quem estabeleceram préviamente uma relação de amizade.

Virar as costas

"Adquiri o hábito de, doce mas firmemente, virar as costas aos avanços dos machos jovens, mostrando, como as outras fêmeas, que, embora os achasse atraentes, tinha coisas mais importantes para fazer. Depois de muitos meses de imersão na sua sociedade, deixei de pensar tanto no que fazer e, ao invés, rendi-me simplesmente ao instinto,não enquanto acção reflexa e desatenta, mas antes como acção enraizada num legado primata remoto de conhecimento incorporado." Quem escreve isto é Barbara Smuts, primatóloga, autora de um estudo entre os babuínos (Sex and Friendship in Baboons), num comentário incluído em As Vidas dos Animais de J.M.Coetzee onde narra algumas das suas experiências com outros animais. Os jovens machos são jovens machos babuínos. As fêmeas com quem, inicialmente, Barbara aprendeu os sinais de recusa, são as fêmeas babuínas.
Hoje, a acreditarmos no psicólogo que resumiu as conclusões do Encontro de Sexologia da Lusófona, seria preciso ensinar aos jovens ( a 25% pelo menos que são vítimas e agressores) que um sorriso ou uma saia curta não significam vontade de ser penetrada. Mas isto será coisa que se ensine? E como ensiná-lo a quem, com 18 anos, não aprendeu ?

Caminhando nas praias do Ordovício

Caminhamos na serra, rente aos afloramentos de quartzitos da cumeada. De vez em quando a nuvem aperta-se em torno do pequeno grupo e ouvimo-nos mais do que nos vemos. O geólogo convoca-nos para junto de um morro. Pelo tom de voz, a pausa enfática e a hora do dia todos percebemos que se trata de uma revelação com alguma importância. À nossa altura, no paredão que escalamos, há uma linha ondulada que separa uma zona em tudo semelhante aos terrenos que vimos percorrendo e outros, dispostos em sucessivas faixas onduladas. É para essa linha que o geólogo aponta: Esta é uma demarcação entre dois tempos muito antigos e muito separados entre si. Temos vindo a pisar sedimentos ordovícios. Ora o que veem, por cima dessa fina linha de separação, são rochas do fim do Câmbrico. Quase cem milhões de anos as separa . Olhamos em silêncio esse interstício de tempo. Depois tocamo-lo, com as pontas dos dedos, como às fendas do Muro. Quando recomeçamos a marcha sabemos que caminhamos nas praias ordovícias, sobre os restos de artrópodes que nenhum antepassado nosso conheceu. O resto do percurso é feito em silêncio. De vez em quando um vulto recorta-se na luz do nevoeiro como um personagem de Tarkovsky. O carrasco preenche as cicatrizes da terra ardida.

Ligeiro exagero

O presidente da câmara de Lisboa e vice-presidente do PSD, putativo candidato à presidência da República, apresentou um livro. A convidada de honra era a fabulosa bruxa de Ramalde que terá dito ser ele, Santana Lopes, " um homem para o sol e para e a chuva". Acrescentou que " falava por todos nós". É um pouco exagerado. Mesmo no dia em que ele for sol na eira e chuva no nabal, nós continuaremos a editar A Natureza do Mal.

17 janeiro 2004

Pietà

"Sentamo-nos os dois. O frio, perpendicular, abafa qualquer comiseração. Sempre vagabundos de nós, tudo nos falta menos a rua. Esta noite um som ecoa, a luz, acre, levanta o peso do calor, e eu não sabia, calada e não refeita, de teu sono vigilante que já não me pertence. No quarto anterior, dormias em meu ventre, hoje o tronco no colchão firme recusa um qualquer sincronismo com o meu desejo. Somos luz comum, porém, caminho idêntico e diverso, o que atrai e repele, breve hesitação a minha, a de quem transporta o recém-nascido a um ritmo novo.
Se eu chamar tua voz para meu lado, arranco a flor mutilada à superfície da água. Mas teu labor é nocturno, ponto instável, díspar; a dúvida, uma interrogação insidiosa. Era um segredo, o nosso, amor lento, corpo que nos cerra e mais tarde se extingue. Se espreito, o menino morre. Fecho então os olhos, e aprendo a ler sobre o texto o longo breve rio entre ti e o outro, o sentido da inverosimilhança, a ausência radical e lisa. Vou envelhecer tentando segurar a maternidade no peito."

Ana Marques Gastão
Tirado de: Vagabundos de Nós, Daniel Sampaio, ed Caminho, 2003

16 janeiro 2004

Desalegria pública e uma alegria armadilhada

Naquela voz de quem sempre fala verdade, ouço Durão dizer que qualquer Primeiro-Ministro fica feliz quando aumenta os servidores. E ouço a mesma voz, consternada, decretar que aumentos este ano serão desemprego certo amanhã.

Não é a desalegria repetida de Barroso que me desalegra. Dói-me é ver Madalena, administradora de hospital anónimo, tão alegre e tão atarefada a escolher este ano o seu novo automóvel público..

André Bonirre

Esclarecimento

"Não há amor por meios violentos. Nem serviço de amor. Apenas amor." "O amor deixa algumas pessoas cegas (quase)" ."És simplista, deve ser por ser homem." Escreveram na caixinha, e como me acontece com frequência surpreendente, concordei. (Também houve quem dissesse, mas foi há muito tempo, que não havia amor. Il n'y a que les gestes de l'amour. E nos gestos do amor não há violência.)
Aquilo que escrevi, ouvi no noticiário da hora do almoço. Com o simplismo que relatei. E espantei-me. Estava comigo um amigo, ainda no intervalo de idades abrangidas pelo inquérito. Também se espantou. Tanta violência, tanta vítima. O jornalista foi à rua. Perguntou a uns velhinhos pela violência. Eles não percebiam. Depois a umas jovens. Elas responderam com a firmeza e convicção que nos restituem essa crença (pelos vistos infundada) de que existe um mundo para lá do mundo dos congressos e das estatísticas. Nesse mundo há mulheres que dizem que nunca habitariam uma relação onde a violência pudesse estar presente. Como ameaça que fosse. Outro amigo, que vive no Canadá, comentou: Pode ser que seja verdade. Pode ser que caminhemos para aí. Sabes, quando quero saber para onde vamos olho para os Estados Unidos. Há lá mulheres a quem não podemos tocar. Sentem-se assediadas e queixam-se aos advogados e aos movimentos religiosos a quem devem obediência. Mas esta é uma perspectiva parcial, concordo. Não fui nunca objecto de violência sexual nem, ao contrário dos 80% dos homens das estatísticas, tenho fantasias de violação. A minha sexualidade foi sempre assustadoramente banal. Um dia que tenha tempo vou para a estrada.

Violência entre os adolescentes

Interrogadas por um psicólogo, 25% das adolescentes entre os 12 e os 18 anos que constituiam o universo do inquérito, declararam já terem sido obrigadas ao serviço do amor por meios violentos. Vinte e cinco por cento! O psicólogo sossegou-nos. Não houve penetração.

Três mil milhões

A pior das plutocracias é a que um dia se reclamou de ideologias de libertação. O convidado mais ignominioso no casamento da filha do régulo não foi aquele que a todos nos representou.

15 janeiro 2004

Beauvoir/Sartre/CITAC

Ainda vão a tempo. No TAGV é a última oportunidade para verem como o CITAC evoca esse par terrível da nossa cultura. Dois excelentes princípes (Fernando Silva e Luís Rodeiro), dois castores de branco (Ana Fernandes; Inês Coroa) e uma mulher de negro que é todas as mulheres e também castor ( e havia de chamar-se Silvia das Fadas). Um encenador (Tiago Faria) que ultrapassa as dificuldades de um texto demasiado literário. Três músicos em palco. E por detrás de tudo isto um exercício de escrita colectiva que o Carlos Alberto Machado animou e burilou.
O CITAC honra as suas melhores tradições.

Troca sem pino

Via-a sentada e tinha a barriga por cima do peito. Claro, a barriga da perna mais acima que o peito do pé.

André Bonirre

Não sei

É um festim, um festival. De olhinhos a chispar, gulosas, engordam anafadas com os antibióticos, as bactérias. Não param de morder e roem, corrosivas. A minha garganta arde e dói. Estou com um humor de lixeira, não sei se anavalhe as goelas.

André Bonirre

14 janeiro 2004

Ao ver passar comboios

Nesse dia não se cruzaram, nem sequer se conheciam. Puto de 12 anos, o dia foi triste para o meu tio-avô Manuel. Atento aos sinais de fumo, do Choupal só veio silêncio, nem um silvo de vapor, calada a marcha dos ferros cadenciados nos carris. Por isso, esse dia foi triste, nenhum miúdo brincou junto à linha.

Para o avô Arnaldo, do Luís, dirigente anarco-sindicalista, esse dia foi um longo dia de festa e combate. A primeira greve geral dos ferroviários, a 14 de Janeiro de 1914, ouvi eu agora na TSF, parado na bicha dos semáforos da Casa do Sal, a ver passar comboios para a Estação Velha.

Arnaldo e Manuel não se encontraram nesse dia, há 90 anos. Mais tarde passaram juntos muitos anos, prisioneiros deportados no Campo de Concentração do Tarrafal.

André Bonirre

Pesadelo

Sou pobre. Por intercessão do meu padrinho vivo no Bairro Durão Barroso. Sou do Leste, formei-me em engenharia electrónica. Apanho o lixo nas ruas. O meu capataz foi brutal no início. Agora é meu amigo. Escrevo-lhe cartas e faço-lhe a contabilidade duns negócios. Sou um miúdo da ilha, como outros. O meu protector é uma meretriz calva.

Aos quatro anos (ao Prof. Dr. Pio Abreu)

Aos quatro anos
era uma criança adorável.

A mulher que o podia amar
foi afastada.
Havia qualquer coisa de estranho nas outras,
a quem foi confiada a sua guarda.
E nos cavalheiros de máscaras e pénis inchados.
Agora é um dejecto.
Não inspira nenhum sentimento
reconhecível.
Não se percebe bem se mente,
se o que diz é uma memória construída.

De manhã, na pastelaria

Há homens tão completamente falhos de vontade que são as mulheres quem lhes encomenda o pequeno-almoço.

O Estádio do Euro 2004

Mostro-vos um lugar de máxima desolação. Vê-se do sítio de onde escrevo. É o último dos círculos de uma viagem sem regresso. A cratera imensa de um bombardeamento benigno. Uma ferida aberta na cidade. O emblema de um modo de viver sem graça nem glória. É o estádio do Euro 2004.
Só me lembro de um lugar de maior desconsolo. É este estádio, deserto, nas tardes melancólicas da super-liga.

13 janeiro 2004

Hic Rohdes, hic salta.

Vital Moreira escreve hoje aqui, sobre as razões que contrariam a existência de uma nova universidade (privada) em Viseu. O artigo intitula-se Uma Universidade na minha rua. Pode ser que Vital tenha razão. Sucede-lhe. E na sua recente, e simpática actividade de blogger (saudações para a Causa Nossa onde, além dele, estão pessoas cuja generosidade admiro), tem-lhe sucedido frequentemente. Acontece que, como é público e não constitui invasão de intimidade, a rua de Vital não é em Viseu. Constitui um exercício intelectual e de cidadania, a que ele certamente não se exime, aplicar o mesmo aparelho analítico aos pretendentes à criação, por exemplo, de cursos privados de Medicina, na cidade da sua rua .

12 janeiro 2004

Cuba, em breve

O governo cubano limita o acesso à Internet no País. Compañeros, confiança. Virá a clara madrugada em que lereis A Natureza do Mal.

Generalitats

Alguns dos membros do governo de esquerda da Catalunha nomearam familiares para cargos de relevo. As plutocracias no poder rapidamente perdem a referência ideológica. Mas tão rapidamente...

CITAC com Carlos Alberto Machado

As Aventuras Extraordinárias do Príncipe e do Castor, encenação de Tiago de Faria, de 14 a 16 de Janeiro no TAGV, em Coimbra.
É o primeiro verdadeiro acontecimento post Capital da Cultura.
O Castor é a Simone de Beauvoir, já perceberam.
Trata-se de um Evento Sartre-Beauvoir, dizem eles.
Mas o Príncipe aqui, é o Carlos Alberto Machado que dirigiu o texto e participou na sua concepção.
Lá estaremos.

Educação Sexual

O instinto sexual é uma coisa maravilhosa. Mas não vejo que haja vantagem na passagem quase imediata ao acto sexual, no sentido do coito, da penetração e ejaculação vaginal. A frase é do ginecologista-obstetra Miguel Oliveira da Silva, um homem que sabe do que fala aqui. Isto depois de explicar que o esperma faz um mal terrível ao epitélio do colo uterino. Vistas as coisas assim a abstinência sexual proposta, não é um valor. É uma medida programática. Se alguma vez me convidarem para aulas da nova cadeira de Promoção da Abstinência Sexual hei-de começar todas as aulas assim: Coito, penetração e ejaculação vaginal! É isto que quereis fazer das vossas vidas?

Gouveia já está no mapa

Lamento ,mas não posso linkar. Não está disponível on line o artigo do Local/Centro, no Público de domingo. O título é "Gouveia leiloa javalis em festividade de montaria". Por cima uma foto (anónima) em que um homem olha melancólicamente dois javalis pendurados pelas patas traseiras numa carrinha de caixa aberta. A legenda: Os javalis foram vendidos por 140 e 160 euros e doados à Fundação Dona Laura dos Santos. Poupo os pormenores. Os participantes na festa, liderados pelo Autarca de Gouveia, terão assassinado quatro javalis. Um deles era um lactente que "por ser pequeno não é leiloado". A heroína da festa foi uma tal Maria Rita Martins. "Depois de um breve momento musical pelo Rancho Folclórico de Vinhó, o leilão prossegue com o animal de Maria Rita já aberto na barriga, porque o baptismo da jovem de 21 anos, de Vila Real, envolveu as tripas e o sangue do porco, que, tal como ditam as regras para a primeira captura de um caçador, foram colocados na sua própria cabeça."

11 janeiro 2004

Rectificação

Peço desculpa pela leitura que fiz do jantar que notáveis socialistas e Manuel Maria Carrilho tiveram com o membro da administração do Iraque, José Lamego. As minhas fontes são limitadas: as notícias de um jornalista klemperer, mas que quer continuar a escrever, e os comentários de P. Bonaparte (aquilo a que se pode chamar de grande isolamento político). Os aventais, a terem existido, foram apenas a parte menos importante da questão. Ontem, uma reunião no Chiado iluminou melhor o cenário. O representante português na administração do Iraque, figura central do Clube do Chiado, discorreu sobre a situação naquele país do Próximo Oriente e sobre a situação neste país do ocidente Europeu, sempre à luz atlântica. A experiência de José Lamego enquanto membro da administração Iraquiana certamente que será da maior valia, quando lhe forem confiadas novas e difíceis tarefas em Portugal.

Uma relação desenvolvida de forma sustentável.

No Centro Cultural do Círculo de Leitores de Madrid começou um ciclo sobre a nova retórica do poder. Llàtzer Moix, orador na primeira sessão apelou ao aparecimento de jornalistas Klemperer que se "dediquem a desmascarar as falácias estruturais e cosméticas da linguagem do poder imperial" (o termo deriva de Klemperer, Victor, filólogo judeu que analisou a retórica do Terceiro Reich).
Segundo a notícia, alguns dos termos da longa lista foram, , contabilidade creativa, limpeza étnica, ataque preventivo, guerra pela liberdade, danos colaterais, centro temporário para emigrantes.
Uma palavra perseguiu Durão Barroso este fim de semana. Será um eufemismo, uma um duplo sentido, uma metáfora manipuladora? De visita ao Parque da Peneda Gerês declarou que" lutava por um ambiente mais seguro e sustentável". Quando lhe perguntaram qualquer coisa sobre as relações com Sampaio ele respondeu:" Estou disponível para desenvolver de forma sustentável essas relações."

Esquerda: Direita

Joaquin Estefania recorda que Bobbio sempre considerou muito actual a diferença esquerda/direita. Ele que foi um dos maiores defensores do socialismo liberal e democrático, que polemizou com Togliatti (fundador do Partido Comunista Italiano), que se preocupou em rever o socialismo marxista dizia: nunca como na nossa época foram tão evidentes as três fontes da desigualdade: a classe, a raça e o sexo. E recorda que quando a direita grita" Abaixo a igualdade!" não quer dizer como alguns poderiam interpretar, "Viva a diferença!", mas sim " Acima a desigualdade".

Norberto Bobbio (Turim.1909)

O intelectual italiano morreu. Mário Mesquita evoca-o, aqui. El País (sábado ,10 de janeiro) considera-o um pensador crucial do século XX e dedica-lhe vários artigos. O filósofo italiano Gianni Vattimo escreve: Com Norberto Bobbio desaparece uma das últimas vozes da cultura antifascista italiana. E isto num momento em que a herança desta cultura se encontra sob a sombra da crise permanente da esquerda política devido à fustigação de um sistema mediático que está fazendo perder aos italianos o próprio sentido da democracia. Bobbio advertiu há dez anos de que " a televisão é por natureza de direita" não só porque oferece uma realidade "confeccionada" e sem problemas mas também, e sobretudo, porque depende fatalmente do sistema publicitário, que a pôe nas mãos do poder económico e dos seus interesses, raramente coincidentes com os da maioria dos cidadãos.

Antologia de O Mal: Cristina Campo

Amor, hoje teu nome
a meus lábios escapou
como ao pé o último degrau...

Espalhou-se a água da vida
e toda a longa escada
é para recomeçar.

Desbaratei-te, amor, com palavras.

escuro mel que cheiras
nos diáfanos vasos
sob mil e seiscentos anos de lava-

Hei-de reconhecer-te pelo imortal
silêncio.

(Ti riconoscerò dall' immortale
silenzio.)

Cristina Campo, in O Passo do Adeus, trd. José Tolentino Mendonça

A segunda cabala

O artigo de J.Pacheco Pereira sobre a fuga de informações e os interesses de quem as promove (5ª feira no público e discutida aqui), é excelente. A ser verdadeiro aquele impecável raciocínio dedutivo, haverá agora duas cabalas. A cabala que utiliza a pedofilia contra o Partido Socialista ( chamemos-lhe a cabala de Ferro Rodrigues). E a cabala que promove e gere as fugas de informação em benefício da defesa (chamemos-lhe, em honra de quem tão bem a caracterizou, a cabala de Pacheco Pereira).

10 janeiro 2004

Vem comigo para o Iraque

Foram jantar com o José Lamego, antes de ele ir para o Iraque, ou num intervalo. Disseram que era um jantar de amigos. Não era política. Comeram caldeirada. Ninguém se sujou. Uns puseram guardanapo ao pescoço. Outros puxaram o avental sem cerimónia. Estamos garantidos. Eles são a alternativa da alternativa.

Amanhã o espaço. Bahhh.

Bush anunciou um novo e ambicioso programa de Conquista do Espaço. O objectivo agora é Marte- e os votos dos americanos. Talvez os americanos estejam infantilizados e desconheçam o que tem sido escrito sobre o Sistema Solar. Alguém que lhes diga: A Lua é pior que o Iraque. Um deserto inóspito. Marte não tem interesse nenhum. Vénus, uma desilusão. Parece que nem há mulheres. Os planetas do Sistema Solar são demasiadamente quentes ou excessivamente frios ou impossívelmente longínquos. Enquanto o Magueixo não reformula de vez as teorias de Einstein, temos que nos resignar a viajar a 300.000 kms por segundo. Devagar demais para ter esperança de encontrar por aí alguém interessante que nos fizesse esquecer o presidente Bush.

Os Meus Livros, Kertész e Coetzee.

Tereza Coelho é a directora do magazine os meus livros, a que ela chama carinhosamente OML. Quem fala de livros tem a minha simpatia por inteiro. Tereza Coelho é aliás autora de uma façanha: ter tornado legível e atraente*o saber de Francisco Allen Gomes, aquele que é talvez o sexólogo português mais profundo (termo infeliz para o tema em questão, mas não me ocorre outro, de momento). No número de Novembro de OML Tereza Coelho, com José Prata, resumiu alguns livros de Coetzee, já traduzidos ou aguardando publicação entre nós. Vê-se que ainda não leu Elisabeth Costello. Mas de Desgraça, diz: "Na ficção contemporânea da última década , não há muitos romances tão bons como este."
Agora, no último OML, Tereza assina um editorial corajoso. É raro uma editora arriscar expôr os seus gostos pessoais, sobretudo se afronta o consenso. E ela fá-lo a propósito do último Booker Prize, tão aclamado, e de Pascal Quignard. Mas o importante é que Tereza descobriu o húngaro e gostou. Estava uma manhã nevoenta, e Tereza não queria falar do Iraque nem do país que temos. Confessa-se triste, por não ter encontrado quem escrevesse sobre Imre Kertész e A Recusa e dispara: " Penso que Kertész é um escritor melhor que o Nobel deste ano, de quem os últimos livros são feitos para toda-a-gente-gostar".
Os últimos livros de Coetzee são a Desgraça e Elisabeth Costello. De A Desgraça estamos falados. O desencanto com a África do Sul post apartheid, a história de um homem de idade a quem criminalizam o convívio racial e o amor intergeracional. Aqui estão dois temas de quem toda a gente gosta. Como é que a Margarida ainda não se lembrou?
Elisabeth Costello não é, ao contrário do que OML resumia"um livro sobre a celebridade, as emoções e o sentido da vida". É um livro que questiona o direito da nossa espécie em dispôr da vida das restantes, que connosco partilham o planeta. Mas que questiona a partir do coração, e não da ética, da antropologia, da evolução, da religião. Feito a partir desse lugar, o questionamento torna a vida insuportável. As cinzas dos campos de extermínio caem contínuamente sobre os nossos quintais e toda a inocência se torna cumplicidade.
Kertész é certamente um grande escritor. Ainda não tive tempo para o ler, mas junto ao elogio do Pedro Mexia o de Tereza Coelho para me aumentar a expectativa. Coetzee é um escritor enorme. Nem os temas que aborda, nem a forma como o faz, são pronto a vestir dos magazines literários, e sugeri-lo, mesmo se o dia é cinzento e o país também, não é um bom serviço para os leitores.
Felizes os que se apaixonam fácilmente. Mas antes, não era tudo tão mau, assim.

* A Sexualidade Traída, de Tereza Coelho e Francisco Allen Gomes, ed Ambar, 2003.

O Vává

EPC falou, na quinta-feira, do Vává. Nunca entrei no Vává, não sei exactamente como foi , no que se tornou, o que querem que venha a ser. Nesta semana, no entanto, era feio, muito feio, estar tão desatento que se falasse no Vává sem se falar do Eduardo Guerra Carneiro.

Os gerrilheiros que saem do Vává benzem-se à sua maneira como se a próspera guerrilha se fundasse em qualquer casa além da linha. Sábios de nascença citam nomes e têm decorada uma biblioteca, tal qual alguns desenraizados do Saldanha- mas de modo diferente. Abotoam-se com esmero e engravatam-se ou não conforme as circunstâncias. Os guerrilheiros que entram no Vává usam as citações à bandoleira e telefonam com muita assiduidade.

Eduardo Guerra Carneiro in Isto Anda Tudo Ligado, Cadernos Peninsulares, janeiro de 1970

O umbigo regular*

Redondo, sem hérnia, nem relevo especial dos bordos, pouco profundo mas sem que o remate seja visível, podendo ou não ter piercing se o ventre e a firmeza da pele o consentirem. A metade superior é uma voluta cujas colunas se juntam num ponto que fica a meio da linea alba. A porção inferior, uma rampa de declive elevado.

A pele das mulheres no Inverno

No Verão agradecemos a dádiva de pele que as mulheres nos concedem. Mas é agora, no pino do frio, que entre os agasalhos cintila um ventre liso, um umbigo regular*, os flancos luminosos, um ombro que uma alça divide, a saliência da clavícula junto ao ombro. Nunca os vemos, verdadeiramente. Porque nós aprendemos, com a dura experiência do senhor Palomar na praia, a ver sem olhar, humildemente.

No Pendular

No comboio descendente aquela senhora Avilez entrevista o Prof. Marcelo ( ou é entrevistada que eu não tenho auscultadores e pela gesticulação não consigo perceber a hierarquia dos papéis). No comboio ascendente volta a entrevistá-lo. Aqui está um a quem a ubiquidade prejudicaria qualquer alibi.

09 janeiro 2004

Redenção

O post dela redime-nos da discussão moral, criminal, doentia, com que nos têm trucidado, estes dias. Terça feira, hei-de faltar à oficina, e em Aveiro, a liberal, deitado num catre, escandalosamente, hei-de ler aos hipócritas a história da enfermeira Almerinda, tal como tu Sarah a escreveste.

Impassivo. E secretivo.

Entrevistado na sic-notícias (Expresso da meia-noite) Durão Barroso esteve bem, muitos furos acima dos seus ministros. Definiu-se políticamente, em termos norte americanos, como um democrata de centro ou um republicano liberal. Marcou pontos quando disse que releu Os Maias com um filho e aludiu à choldra. Criou um neologismo: impassivo, querendo significar qualquer coisa entre passivo e impassível. Confidenciou duas confidências de Clinton, sussurradas num encontro recente. O terceiro segredo de Clinton será revelado em breve. Aqui.

08 janeiro 2004

Chega o dia

Chega o dia em que já não há um beijo para nos acordar. Já os lábios não se tocam, cuidadosos. Deixaram de vigiar os trabalhos escolares. Não há história para adormecer- e ficam às escuras as àreas temporais . Têm medo dos nossos pêlos e do nosso corpo. E nós com eles. Julgam-nos, assim, preparados para o amor.

Adivinha

"De todas as fórmulas que lancei ao longo de 2003, houve uma que teve um êxito particular. (...) Ele foram telefonemas e mensagens, felicitações em plena rua, concordâncias eufóricas, risos felizes." A que fórmula se refere Eduardo Prado Coelho, entre todas as que lançou em 2003? Está-se a fazer cada vez mais tarde? Não essa é emprestada do Tabucchi. No Vazio da Onda? Não essa é emprestada do Stevenson. Muito cedo na vida foi tarde de mais? Não essa é emprestada da Duras. O pavão assustado? Não essa é da Llansol? A falta de uma dimensão trancendente? Não, essa é da Rosa Maria Martelo.
Hoje, na mesa de café ao fim da tarde, o André Bonirre, fanático do Fio do Horizonte (essa é emprestada do Tabucchi) a lançar-me esta adivinha erudita, e, estupidamente, só me vinha à cabeça (au bout de la langue) o orgasmo vertical.

Perguntas de um operário leitor

Sim, Constâncio, nós sabemos, não há alternativa para a política orçamental do governo. Na actual conjuntura, claro. Sim, Vítor, nós sabemos, é necessário continuar a contenção, imprescindível para a consolidação da actual política orçamental. Mas, desculpa a mesquinhez, eu sei que um cavalheiro não fala de dinheiro de bolso, acontece que eu não sou um cavalheiro e apreciava melhor o teu esforço, se me dissesses o teu índice de funcionário do estado, Constâncio, e as ajudas de custo nas deslocações, Vítor.

Portugueses, mais um esforço

O sor zé manel furnandes, na folha do sor zé manel furnandes , exulta. No Afeganistão já há constituição, no Iraque está quase, a Turquia é visitada pelo ditador sírio e "fechou um negócio com Israel", os dirigentes do Indostão vão-se encontrar. As coisas estão a mover-se " e é no bom sentido". Isto no dia em que finalmente Delgado teve razão: começou a retoma. Ainda temos que passar mais um ano sem aumento de salários, a pagar o pão e a àgua ao preço dos cartéis, a pedir licença trinta e seis vezes para chegar ao guiché no Centro de Desemprego. Mas as coisas estão a mudar. O optimismo não era balofo. As coisas certas estão a ser feitas pelos homens certos. Pelos homens certos e pela Anabela Mota Ribeiro. Não, não é hoje ainda que falo da Anabela Mota Ribeiro. Pediram-me contenção e não serei eu a quebrar a trégua .

Francisco José Viegas

O programa Livro Aberto desapareceu da cadeia confidencial do Porto (ou sou eu que não consigo perceber o lugar onde o grelharam?). A RTP 1 exibe-o agora às 03:45h. Talvez o livro continue aberto, mas a essa hora fecharam-se aqui os olhos mais resistentes. Não me apetece fazer humor com isto. Digam-me que estou a ensandecer, que a literatura é para os insones, que foi depois de um estudo de audiências, que é uma estratégia de captação de novos públicos, que foi para punir o Francisco. A noite é...

Francisco Sena Santos

A voz da Antena 1, dos programas da manhã, do acordar da cidade a caminho do desemprego, deixou de se ouvir. Depois da abolição do sinal horário era o passo esperado. O homem que teve coragem para trocar a medicina pelo jornalismo não foi contactável pelo jornal que deu a notícia. Ficámos sem saber das razões que o levaram a sair de um espaço tão abrilhantado pelo actual pivot contracenando com o Super Psico Sá e o amor explicado aos populares em dois minutos.

07 janeiro 2004

Um engano de Manuel

Manuel, amigo, Palombella Rossa, tu que juntas a serenidade a outras virtudes teologais. Lamento desiludir-te. Se o André Bonirre e o PC não voltarem depressa, se a Sofia não escreve, A Natureza do Mal é um sítio onde não corre nenhum ar. Chama-me pântano, ermo, lodaçal.

Nem uma no Dois

Leio a lista dos Parceiros e Entidades em Fase de Concretização de Protocolos com o Canal 2 e espanto-me. Sou eu sócio de quase duas dezenas de clubes e associações e nenhuma aderiu. Então a Ajuda de Berço, o PróVida, a Associação Pela Abstinência Responsável, a Fundação Mário Pinto, O Grande Indigente Lusitano, A Associação de Amizade Portugal-Texas, O Grupo de Estudos Atlânticos, As Criaditas da Noite, o Movimento para a Recolocação do Herói do Ultramar, a Família Verdadeira Unida e Numerosa, O Juramento de Bandeira, o Pinhal de Leiria, o Desígnio Nacional, a Inclita Geração Altos Infantes, os Viriatitos? O que é que andam a fazer com o dinheiro das nossas quotas? Depois queixem-se de falta de visibilidade.

Canal 2

Eu tenho a maior expectativa relativamente ao Canal 2. Primeiro porque o ministro Morais Sarmento onde se mete faz coisa limpa. Segundo porque me fascina a Alberta Marques Fernandes a fazer de pivot do telejornal, culta, informada, fluente, disparando sempre a pergunta certa. Depois porque sou pela sociedade civil. Há que dar voz à sociedade civil. Anseio pelo momento em que a Associação Nacional de Farmácias , a Ordem dos Médicos Dentistas, a Liga dos Combatentes, a Santa Casa de Misericórdia de Lisboa comecem a programar. Tempo de mais passou sobre o seu silêncio, abafados pela mordaça tirânica do estado e das privadas coligados. E a Ordem dos Médicos? E a Ordem dos Advogados? E a Liga dos Bombeiros? E a Associação Cristã dos Empresários? Vamos enfim libertar o imenso potencial criador e comunicativo destas portuguesas e destes portugueses, que já contribuem com 5% dos custos previstos de exploração e em breve serão os proprietários e os responsáveis pelos conteúdos do Canal (seja lá isso o que for). E ainda não falei da Anabela Mota Ribeiro.

06 janeiro 2004

Uma task force contra o meu avõ

Os Serviços Secretos europeus, hoje reunidos secretamente, algures na Europa, decidiram criar uma task-force "para combater o anarquismo". Querido avô Arnaldo, não precisas de sorrir assim. Eu sei, não serão estes, ainda, quem vos vergará.

As palavras. Os corpos.

As palavras nem sempre ajudam a compreender. Quando chegou a hora das palavras dizerem o que os corpos negavam ela sentiu-se livre, livre, e ele para sempre prisioneiro.

Eduardo Guerra Carneiro (1940-2004)

Procuraste, caminhante


Procuraste, caminhante,essas veredas
ainda libertárias, na Ibéria. Mas
misturaste, na errância, a estrada larga
com caminhos de formigas rastejantes.
Põe-te de pé, poeta!, nunca de joelhos,
pois nem as virgens ouvem teus lamentos,
atolado em lameiros como um verme.
Serve-te da verve que encontraste
nos insurrectos cantos das tabernas
e, reinadio, caminha, pois caminho,
lá diz o outro, e com razão, se faz
apenas caminhando. Não tenhas pena- alegria!
- mas proclama que é nesta terra amiga
que ainda pode renascer a utopia.

in A Noiva das Astúrias, & etc 2001
Eduardo Guerra Carneiro, aqui ontem lembrado, publicou ainda os seguintes livros de poemas: O Perfil da Estátua; Corpo Terra; Algumas Palavras; Isto Anda Tudo Ligado; É assim que se faz a História; Como quem não quer a coisa; Dama de Copas; Contra a Corrente; Profissão de Fé e Lixo

05 janeiro 2004

Alejandra Pizarnik

Este Verão a Moby-Dick publicou O gueto, de Tamara Kamenszain- um caderninho vermelho com poemas num castelhano que assombrava. Agora a Lumen de Barcelona edita os Diarios desta argentina que foi contemporânea de Olga Orozco e de Victoria e Silvina Ocampo e que aprendeu uma língua própria, uma mistura do yídish doméstico e da escola hebraica com um castelhano que não tinha nada a ver com o que se falava nas ruas ou nos jornais que lhe estavam vedados.

Não tem comparação

Cinco jovens israelitas recusaram-se a fazer serviço militar e foram condenados a um ano de cadeia. Os cinco recusaram-se a servir "num exército de ocupação" (Ha'aretz, citado aqui). Um dos jovens perguntou: "Como pode a nossa pena ser tão pesada comparada com as dos militares que disparam balas reais sobre os palestinianos, activistas de qualquer nacionalidade e defensores dos direitos humanos?"
Quando me perguntam de que lado estou no conflito israelo-árabe respondo: do lado desta gente, que arriscando a prisão ou a morte afronta as lideranças cegas que governam Israel e lideram os palestinianos.

A miséria no meio estudantil

"Não atribuo muita importância ao facto de ser mulher". Rosa Nogueira, presidente da Associação Académica da Universidade de Aveiro, em entrevista à folha do sôr zé manel furnandes. Oh Rosa, pois devia atribuir. E esforçar-se por ser uma mulher linda. Se não receasse distraí-la, num momento em que o sucesso da sua luta contra as prescrições não é ainda claro, pedia-lhe para reflectir no que escreveu Hanna Arendt: "Na mulher a necessidade inapelável de beleza deve-se ao facto desta lhe garantir uma defesa face ao exterior, uma muralha indispensável para construir a esfera subjectiva"

A escolha de Thomas Nagel

Já agora: Thomas Nagel escolheu como um dos livros do ano, o livro de memórias de Peter Singer, My grand-father and the tragedy of Jewish Vienna:Pushing time away (Ecco). O avô de Singer foi contemporâneo de Freud em Viena. Não fugiu a tempo e morreu em Therensienstadt. Singer recupera a memória desses tempos. A propósito do autor de A Darwinian Left, que em Portugal possui apenas traduzidos Ética Prática (Gradiva) e Libertação Animal (Via Optima), Desidério Murcho dá-nos, na edição de Dez/Jan de os meus livros uma direcção preciosa: um conjunto de links para as obras deste australiano, que Coetzee descobriu em Elisabeth Costello.

A consciência é um embuste do cérebro

E Daniel C. Dennet escolheu Radiant Cool, A Novel Theory of Consciousness, de Dan Lloyd (MIT Press). O tema é "como faz o cérebro , para nos pregar a partida da ilusão benigna da consciência". A ilusão da consciência. Aqui está um tema fascinante para aprofundar, no ano que vem.

Lowly origin- a nossa.

Há quem não goste, se irrite e veja mesmo intenções malévolas nos conselhos de livros. Das recensões de balanço de ano pelos famosos é possível que o resultado seja "uma série de produtos de corte similar que formam um conjunto vagamente culto, vagamente amável, vagamente sentimental, vagamente de tese e vagamente anestésico" como dizia aqui Francisco Casavella.
Mas eu insisto em partilhar os livros com as pessoas que admiro. Richard Dawkins escolheu como livro do ano Lowly Origin: Where, when and why our ancestors first stood up de Jonathan Kingdon (Princeton University Press).
A escolha do título vem de uma citação de Darwin:"Man with all his noble qualities- with his god-like intellect which has penetrated into the movements and constitution of the solar system- with all these exaltated powers- Man still bears in his bodily frame the indelebile stamp of his lowly origin." Lowly origin era um sub título adequado à Natureza do Mal. Mas ela (A Natureza do Mal) ia zangar-se, se lhe puséssemos agora um subtítulo. Eu sei como já convive difícilmente com o cardeal de Retz.

No ano que vem

Vou tentar lembrar-me de alguns sábios conselhos e evitar as tentações a seguir enumeradas:
"1. O desejo consciente de obter a vitória. 2. O desejo de recorrer à astúcia técnica. 3. O desejo de evidenciar uma aptidão particular. 4. O desejo de intimidar o inimigo. 5. O desejo de desempenhar um papel passivo. 6. O desejo de me livrar de qualquer das tentações anteriores." Embora andemos bem precisados de uma vitória (pareço o Golum a falar, que irritante), não corra o risco de evidenciar nenhuma aptidão, o meu inimigo não se vá deixar intimidar nos próximos mil anos, seja acusado de pose falsa se me remeto à passividade, apesar de todas esses escolhos, considero-os um bom programa para o ano que vem. É uma lista de tentações que, segundo um mestre de kendo do século XVIII, ameaçava os esgrimistas.

03 janeiro 2004

No ano que vem

Convidas-me para sair. Que insensatez. Tenho um blog para manter.

O Guardador de Rebanhos

Se alguma vez me calei
olhando o poente
foi por estar sem fôlego da escalada
ou por não saber lidar
com os teus transportes.
Que nunca o ódio
ou o amor me detiveram.

No ano que vem

(Para o teu entusiasmo
Uns lábios de cimento
É o que tenho
)

O melhor deste natal
foi o Demónio do Mundo Antigo
contra o qual
a tua magia parecia coisa pouca.
Ou a rainha Elisabeth,
quando princesa élfica,
a possuir o jovem Frodo junto à fonte
(Part 1, extended version).
Ou seis poemas que começam na tarde
Em que chegaste (ou o teu guardião)
com as mãos decepadas.
Ou André Bonirre, agrafo trágico,
A reescrever o Mal prá Madalena

O melhor deste natal foi uma fogueira acesa
na noite de Sorios,
princípio perfeito, sabe-se lá de quê.

(A mulher que se entregava
nos braços cegos pelo vinho
e pela carne mal assada
com uma canção na cabeça e
uma prece nos lábios.)

Nem o céu cinzento reflecte
Nenhum rio.

Nem nas ruas agora desoladas
W. consegue reunir os pedaços
do amor ingenuamente exposto

Ou, alheios a todos os avisos
que sabiamente aqui larguei,

vocês, incautos,
para o festim dos caçadores de afectos,
continuais a retalhar os corpos,
como pão de forma fatiado.