31 agosto 2006

Canção de ir


Gerhard Richter


Ainda não tomei a Mefloquina
Não levei o cão à casa abrigo
Não mudei as pilhas da lanterna
Não vi o saldo do cartão

Ainda não


Não me despedi da Joaquina
Não fui ao centro prá vacina
Ainda não comprei o repelente
Nem o elixir nem a loção

Ainda não

Ainda não tenho atacadores
navalha da barba, mosquiteiro
Um livro que fale de outra coisa
Ainda não tenho o mosquetão

Ainda não tenho o penso rápido
A água forte no cantil
Ainda não tenho a loperamida
A cipro e o ondansetrão

Ainda não

Notícias

"El País diz que Espanha vai comandar Portugal." (dos jornais)
Que llegue ese dia!

30 agosto 2006

Uma noite destas na Al CNNira

Ahmadinejhad desafiou Bush para um debate televisivo. Depois dos êxitos mediáticos do imã do Hezbollah é natural que o professor primário persa sinta que tem condições para brilhar nas plateias do Ocidente.E não encontro nenhuma razão para recusar o repto. Se o embate tivesse a dignidade de um torneio, ou de um duelo, o vencido suicidar-se-ia simbólicamente. O debate televisivo é a guerra por outros meios. O debate televisivo entre grandes líderes mundiais é a guerra mundial com muito menos baixas. Assinalando o avanço da democracia electrónica o resultado da lide seria obtido por votação instantânea. Em caso de empate sacrificar-se-iam os dois. Se Bush perdesse entregávamos ao Islão os conselheiros de Bush. Se triunfasse, os ayatolahs teriam de ouvir as prédicas dos pastores da Igreja baptista americana durante os próximos três anos.
Bush recusou. Vou ter de aguardar. Ainda não é desta que os meus amigos da esquerda verdadeira se reconciliam comigo.

A zanga de Flaubert




Flaubert dizia:
- Eu sou Madame Bovary.
Quando Louise Colet lhe atirou à cara que Madame Bovary ( Emma, disse ela) era uma rameira velha, ele chateou-se.
Mais tarde Flaubert disse:
- Eu não sou Madame Bovary.
Louise Colet achou que estavam reunidas as condições para lhe repetir o que pensava de Madame Bovary (Emma):
- É uma rameira velha- disse ela. Ele chateou-se.
Flaubert queria chatear-se. Era compreeensível no estado em que se encontrava a sua relação epistolar com Louise.
O que já não se percebe é que Maxime du Camp, o amigo que acompanhou Flaubert ao Oriente, tenha escrito a Louise que “ela se tinha portado miseravelmente com Emma”.

29 agosto 2006

Outra página




Agora que percebemos as redes neuronais da dependência porque não nos libertamos? Agora que percebemos a nossa irredutível animalidade, porque não estudamos as bases biológicas do comportamento civilizado, do altruísmo, do apego à paz e à conciliação? Agora que percebemos a natureza e a banalidade do mal, porque não estudamos as células e os mediadores celulares destinados ao prazer da música, da leitura, do debate peripatético?

Compreender


Em mim não cabem multidões. Não posso libertar ao mesmo tempo dopamina e serotonina. Não quero compreender o criminoso. Perceber a mente do criminoso. Sentir na pele do criminoso. Atribuir ao criminoso a humanidade que decerto tem. Relativizar, desculpar, perdoar, atenuar a culpa do criminoso. Perder a vítima, a dor, a diminuição, o isolamento e a humilhação da vítima.

Livre-Arbítrio




Roger Heston


Quantas vezes discutimos eu e o Ernest Hyde
acerca da doutrina do livre-arbítrio.
A minha metáfora preferida era a da vaca do Prickett,
amarrada ao pasto e livre, portanto, na medida
da extensão da corda.
Um dia, enquanto discutíamos o assunto, observando o animal
a puxar pela corda para sair do círculo
onde já rapara toda a erva,
a estaca soltou-se e a vaca, sacudindo a cabeça,
começou a correr na nossa direcção.
“E isto, que tal, não é o livre-arbítrio?” disse o Ernest, em fuga,
enquanto eu tropeçava e recebia uma mortífera cornada.


Edgar Lee Masters
Spoon River (1947), tradução de José Miguel Silva,
Relógio D’Água, 2003

28 agosto 2006

Um quarto de Chicago, 1954




Art Shay
Simone de Beauvoir in Chicago
1954 Gelatin silver print 10.25 x 7 in.
1950s print.

Le silence intérieur d'une victime consentante




O livro é o catálogo da primeira exposição da Fundação Cartier-Bresson, comissariada por Agnès Sire (Paris 2006). Saltando o prefácio encontramos 97 reproduções em tricromia. A que reproduzimos, sem a qualidade da impressão, é de Simone de Beauvoir em frente à casa em que viveu, na rue Schoelcher, em 1947.
Carson Mc Cullers, com a máquina de escrever , Barthes, Camus ,Breton, Faulkner, Beckett, Jose Bergamin. Christian Dior e Coco Chanel. Francis Bacon.
Algumas fotografia a que voltamos: Irene e Fréderique Joliot-Curie, graves, cansados, quase trágicos, surpreendidos a abrir a porta da casa, se acreditarmos no que conta o fotógrafo; Ezra Pound louco em Veneza; Marie-Claude Vaillant Couturier em 1945, no tempo em que as dirigentes comunistas eram elegantes e aristocráticas; Luchino Visconti com o olhar oblíquo dos verdadeiros libertinos; Rosselini sensual; Le Clézio e a mulher, como dois ícones capilares da metade bem comportada dos anos sessenta.



Collection Fondation HenriCartier Bresson www.henricartierbresson.org
Um Silêncio Interior: Os Retratos de Henri Cartier-Bresson, Dinalivro e Thames & Hudson, 2006)

27 agosto 2006

Um voto transcendente



O caso de Setúbal transporta uma lição para os eleitores. Ao votar CDU não estão a votar numa pessoa para presidente da Câmara, nem numa equipa de vereadores, nem numa coligação de partidos políticos. Estão a votar numa entidade que está para lá da realidade empírica e que em qualquer altura, do seu limbo de perfeição, pode decidir os instrumentos mais adequados à realização do seu projecto.

A gente vai levando

Mesmo com toda a fama, com toda a brahma
Com toda a cama, com toda a lama
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando essa chama

Mesmo com todo o emblema, todo o problema
Todo o sistema, todo Ipanema
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando essa gema

Mesmo com o nada feito, com a sala escura
Com um nó no peito, com a cara dura
Não tem mais jeito, a gente não tem cura
Mesmo com o todavia, com todo dia
Com todo ia, todo não ia
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando essa guia

Mesmo com todo rock, com todo pop
Com todo estoque, com todo Ibope
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando esse toque

Mesmo com toda sanha, toda façanha
Toda picanha, toda campanha
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando essa manha

Mesmo com toda estima, com toda esgrima
Com todo clima, com tudo em cima
A gente vai levando, a gente vai levando, a gente vai levando
A gente vai levando essa rima

Mesmo com toda cédula, com toda célula
Com toda súmula, com toda sílaba
A gente vai levando, a gente vai tocando, a gente vai tomando

(Chico Buarque)

26 agosto 2006

Mãe, deixa-me ser!



Ouvida nas ruas do Porto. A frase-meme que os miúdos lançaram este Verão.

25 agosto 2006

Um H. português

Tem uma lei para os seus membros que é a mais geral das leis. Não há razão fora dele. Não há vitória contra ele. Os homens que o integram podem enganar-se, porém ele nunca se engana. Ele vem de longe e andou muito até aqui chegar. Ele vai para longe, até onde não conseguimos ver. Ele é ele e mais os que imitam o que ele verdadeiramente nunca foi.

Tidally locked

Estiveram sempre juntos e desde a primeira noite que rodaram síncronos.
Os laços que os uniam podiam ser descritos de várias maneiras. Mas a mais correcta era esta.





Reuniram-se para o desclassificar. A resolução da Assembleia foi mais radical que a proposta. Planeta-anão é o que passou a ser. Um objecto trans-neptunino. As crianças vão-se engasgar na lenga-lenga.
Não sei que legitimidade tinha a Assembleia onde Percival Lowell já não se senta. Venetia Burney disse que o debate lhe era indiferente.
Plutão caiu e a sua queda foi celebrada. Eu preocupo-me com Charon. A que se vira para Plutão sempre da mesma forma e dele só viu , desde a grande deflagração, a mesma face.

24 agosto 2006

Provocado pelo próprio pecado



Quando o Império Romano caiu houve quem pensasse que a civilização tinha recuado mil anos. Os novos senhores eram impiedosos e sobre os povos do Império, recentemente cristianizado, caíram as desgraças do fim-dos-tempos. Pilhagens, violações, destruição dos bens, vidas ceifadas sem pretexto, escravização, tortura. Os teólogos discutiam as causas de tamanha infelicidade. Um deles, Próspero da Aquitânia, “exortava os cristãos a considerarem se estes problemas não tinham sido provocados pelos seus próprios pecados.”

(ver A queda de Roma e o Fim da Civilização, Bryan Ward-Perkins)

Escolhas



O Daniel escreveu um longo post sobre questões aqui ultimamente debatidas, nomeadamente a natureza do estado de Israel e do estado Libanês e a caracterização do Hezbollah.

Eu não tenho as certezas do Daniel. Faltam-me duas coisas: informação e confiança nas fontes. É curioso que nestes debates, cheios de palavras fortes - massacres, limpeza étnica- não distinguimos geralmente entre a propaganda e a realidade investigada e baseada em testemunhos credíveis.E, como assinalei, os historiadores e especialistas se remetam ao silêncio.
Por isso eu não subscrevo afirmações como as de que , “o Estado israelita mata civis como táctica de terror, como o Hezbollah, o Estado israelita não cumpre nenhuma regra comummente aceite para a guerra.”
Também não me revejo em algumas formulações, num calão “sociológico “ intimidatório, que servem mais para calar interrogações do que para as esclarecer


Claro que o Daniel tem razão quando diz que "a sua escolha é de justiça e não de proximidade". Devemos aplicar a mesma medida, os mesmos critérios, quando fazemos juízos de valor. Da mesma forma, e embora esta reflexão seja colateral à discussão, não devemos ser relativistas. O relativismo cultural esconde hipocrisia ou uma indisfarçável ideia de superioridade, mesmo quando parece ser o humilde respeito pela alteridade..

Uma grande diferença, que pode ser ilusória, é esta: eu penso que o meu apoio a Israel pode influenciar este país, a, como escreveu o Daniel, “encontrar interlocutores, isolar os radicais e estar disposto a ceder.” Penso nisso sinceramente. Como acho que pensaram os cineastas israelitas que escreveram aos colegas do Líbano e da Palestina, no início da guerra, pedindo-lhes para não deixar de filmar( e agora são excluídos dos festivais europeus). Como devem sentir Grossman, Oz e os outros, com as posições públicas que vão tomando, aparentemente pouco coerentes, mas que não julgo, porque o que está em causa é a sua segurança, a sua vida.
Ninguém influencia o Hezbollah. Nem o deus do Islão. Nem os financiadores do Irão. Claramente não a rua da Europa, a quem o Hezbollah fashionable se destina, para instrumentalizar a seu favor, na grande guerra do espectáculo, da representação da guerra, onde parcialmente se decidem as guerras que não têm vencedores.

Dito isto, existe grande coincidência entre as preocupações do Daniel e as minhas. Penso que não vai ser preciso esperar pela sua visita a Israel para a alargar.

23 agosto 2006

Da morte dos blogs



Verificamos os sinais de morte. Eles exageram . Voltamos uma vez mais. Talvez tenha ido só para férias. Talvez escrevam agora, anónimos, num blog para descobrir. De vez em quando um sopro de vida.
Um blog não morre. O Luísinho diz o que é preciso:

A coisa mais natural do mundo é o vento. Barquinhos temos dois.

Dois posts sobre a questão de Grass

O Filipe lembra a tia Gertrudes. A Susana lembra Kundera .

Vivamente Aconselhado


Pedro Mexia, recordado na Rua da Judiaria pelo Nuno Guerreiro e o post que dedicou a Uri Grossman .
Rui Bebiano no Cedro das patacas.
Eduardo Pitta sobre o esforço europeu para a paz no Médio Oriente (Prodi, Chirac e os outros).
Ver também Siryana, agora em DVD, sobre os métodos da indústria petrolífera, o percurso do martírio, a CIA e os mecanismos do poder nas monarquias árabes do Golf.

(Na foto uma detenção pelo Hezbollah numa rua de Beirute).

Hezbollah fashionable (2)



Daniel, obrigado pelo seu texto. É verdade que eles se parecem mais connosco. E o Estado deles também. Confessional e militarista, diz o Daniel. Mas onde se pode conduzir actividade oposicionista, onde o pluripartidarismo funciona regularmente, onde existem organizações pacifistas, que lutam pelos direitos humanos incluindo os direitos das minorias. Onde os cultos religiosos são respeitados. Onde existe uma lei que se aplica em todo o país.
O Líbano é uma democracia. É verdade. Desde que um movimento popular forçou a retirada militar da Síria, precisamente contra o Hezbollah, um estado dentro do estado, uma coluna armada do fundamentalismo islâmico.

Consigo detectar ainda outras semelhanças. O Hezbollah, na sua organização, na obediência fanática ao líder divinizado, na forma de treino, na exibição da força, na encenação de massas, nos métodos de enraizamento nas populações é demasiadamente parecido com os grupos hitlerianos, quando estes irromperam no ambiente degradado da República de Weimar. E ainda noto mais proximidades e eram essas a que aludia no post a que se referiu. Tenho pena de não poder reproduzir a fotografia dos funerais dos combatentes islâmicos com que o Público encheu a página dois de segunda-feira. Sobre o fundo esfumado de mulheres de luto, elegantes vultos femininos onde só os olhos se distinguem, levanta-se, claríssimo, um cartaz do imã da moda, com a mão serenamente apontando os céus, mas tendo à frente quatro microfones terrenos. E numa letra cuja modernidade pede meças a qualquer talentoso publicitário ocidental, a frase “the Divine Victory”, com o pormenor da palavra DIVINE se destacar em branco no fundo do cartaz.
Todas as mortes nos matam um pouco. E na sua linha de argumentação eu podia dizer-lhe que as mortes libaneses estão compreensivelmente mais próximas do Daniel do que as dos tchetchenos, dos iraquianos da guerra civil, dos africanos da Costa do Marfim, da Libéria, do Darfur, da Etiópia, dos camponeses da Colômbia. Mas a honestidade intelectual deve reprovar a contabilidade dos mortos e a exibição da morte que o Hezbollah utilizou sistematicamente como arma eficaz de guerra, com a cumplicidade editorial de muitos jornalistas e foto-jornalistas ocidentais e a ingenuidade habitual da opinião pública.

Ao longo deste mês os partidos da esquerda portuguesa furtaram-se a caracterizar politicamente o Hezbollah, o que contrastou com a prodigalidade de adjectivos que dedicaram ao Estado de Israel, muitos deles retirados dos compêndios da guerra-fria. E agora, esgotado que parece o curto arroubo do ministro da Defesa em busca de uma posição interventora da União Europeia, estão todos unidos, direita e esquerda, a favor de nenhuma participação na força de intervenção da ONU no Líbano. A recusa do PC e do BE não é, na prática, muito diferente da posição do governo e dos partidos da direita: participar, depois de esclarecer isto e aquilo e na medida das nossas possibilidades e depois de analisado o conjunto de responsabilidades que já assumimos no mundo…

O Daniel diz que o Estado de Israel foi construído ao som das botas militares. Mas, desde que Teodoro Herzl, que foi o pai do sionismo - e seria pedagógico que alguém como o Daniel ensinasse a essa esquerda intolerante que rima sionismo com nazismo, que o sionismo nasceu como uma utopia no caldo cultural da Europa central do fim do século XIX, uma utopia pensada por um homem estimável e generoso, ignorada pelos judeus integrados do Império austro-húngaro e alemão, mas adoptada irresistivelmente pelos judeus pobres da “Paliçada”, esse grande gueto do Oriente europeu que ardeu interminavelmente em progroms sucessivos- lançou a ideia da reunificação da diáspora no território de Eretz Israel, foram várias as botas que soaram e não foram as de Israel as mais mortíferas. E houve sons que não foram de botas, sons que recordo especialmente, como os dos casamentos mistos, dos contactos entre cineastas, do movimento que reuniu vítimas da violência árabe e israelita, da orquestra de Daniel Barenboim e Edward Sayd.

22 agosto 2006

Hezbollah fashionable


O post guerra amplia a tragédia. Nos nossos jornais, depois de ter ganho a batalha mediática, o Hezbollah transforma-se em vedeta. As fotos são de funerais de militantes. Os especialistas militares, analistas, politólogos, directores de gabinetes de estudos, professores de ciências políticas estão fascinados pelo Hezbollah. As armas, a táctica, o perfil do dirigente máximo são erigidos ao estatuto de vedeta. Os jornais de referência continuam a exibir o grafismo poderoso do Hezbollah, uma mistura de orientalismo com fascismo fashionable. A segunda página do Público é dominada por uma foto da AFP: sobre um fundo de mulheres enlutadas, Hassan Nasrallah, de perfil, mão direita levantada, num cartaz onde se lê a frase the Divine Victory numa encenação cuidada de agência publicitária bem ao gosto dos destinatários: os europeus.
Há uma semana, Isabel do Carmo disse que o Hezbollah era um partido político e a afirmação parecia ousada. Bastou uma semana para o Hezbollah ter ganho, pela mão dos fotógrafos e outros esteticistas de guerra e com a caução dos nossos críticos embevecidos o estatuto do estrelato. O debate democrático em curso em Israel não vale nada face ao barulho das botas.

O Verão em Tenerife


Ao mesmo tempo do drama do Médio Oriente desenrolam-se, mais longínquos, outros dramas menores para a opinião pública ocidental. O genocídio do Darfur e o escândalo de exércitos privados, armados por governos nacionais e por companhias internacionais, cuja razão última é o controlo de matérias-primas.
Um dos maiores dramas é o êxodo silencioso das populações sub saharianas para Espanha e, em menor escala, outros países do Mediterrâneo europeu. Barcaças fretadas por aventureiros sem escrúpulos, carregadas com os netos dos escravos, dão à costa das praias de vilegiatura das Canárias, como baleias feridas. O Estado espanhol enterra os mortos, reanima os desidratados em campos de detenção e repatria-os. No editorial de hoje do Público, Nuno Pacheco (sem link) escreve o que parece óbvio: é necessário um programa urgente da União Europeia para tornar viáveis os seus lugares de partida. O problema é que os governos corruptos de África se apropriam da ajuda internacional e mandam no mundo os traficantes de armas, diamantes, petróleo, droga, mulheres, lixo nuclear.

Contra a Via Verde


Gosto das tecnologias que servem as pessoas, que as fazem felizes sem que isso implique a infelicidade de outros. Preocupo-me por uma máquina supérflua poder lançar três pessoas no desemprego. Não a destruo, como os operários do início da Revolução Industrial. Mas dedico-me a pequenas acções individuais. Não assino a Via Verde. Paro nas portagens, olho para o funcionário da box, respondo ao cumprimento, leio o nome na lapela, se a pressão não é grande pergunto o melhor caminho para o meu destino. Sinto que estou a defender o seu posto de trabalho. Às vezes sou recompensado por um olhar que parece perceber o meu vagar.
No hipermercado, gosto das máquinas de auto pagamento. Mas engano-me sempre uma ou duas vezes, pequenos erros que não me humilhem como utilizador e justifiquem o trabalho do assistente.

21 agosto 2006

Um pequeno lapso






Daniel Oliveira ilustrou um post sobre os recentes entusiasmos literários de Bush com uma fotografia que fez furor depois do 11 de Setembro, onde se via o homem, com o ar arguto que o celebrizou, a ler um livro infantil…com as páginas ao contrário. Uns dias depois Daniel retirou-a, declarando que se tratava de uma montagem e pedindo desculpas aos leitores. O episódio é revelador. Nos anos de brasa do último quartel do século XX o Sérgio Godinho ensinava a virarmo-nos ao contrário, para perceber o ponto de vista do adversário. Embora tenha sempre havido quem pensasse que não valia a pena, porque o adversário tinha o ponto de vista de um lactente.

18 agosto 2006

A culpa de Grass


(Joerg Immendorff)



As pessoas tendem a desculpar a adesão de Günter Grass às SS.
- Tinha só quinze anos- dizem.
Fui ver os meus cadernos dos quinze anos onde se verteu, diário, o meu amor por P. E era inteiro, o amor. Atento, absoluto, somático, definitivo, poderoso, confiante, glorioso. Se devo ir a juízo por alguma coisa, é por ele.

17 agosto 2006

Uma simples onda, e pronto.



O senhor Palomar está de pé na areia e observa uma onda. Não que esteja absorto na contemplação das ondas. Não está absorto, porque sabe bem o que faz: quer observar uma onda e observa-a. Não está contemplando, porque para a contemplação é preciso um temperamento adequado, um estado de alma adequado e um concurso de circunstâncias externas adequadas: e embora em princípio o senhor Palomar nada tenha contra a contemplação, nenhuma daquelas três condições, todavia, se verifica para ele. Em suma, não são "as ondas" que ele pretende observar, mas uma simples onda e pronto.

(O senhor Palomar, Italo Calvino)

O segredo da Vitória

Quando ela tirava o bra entristecia.

O sargento Uri Grossman

A dor e indignação marcaram na terça-feira o enterro do soldado Uri Grossman, filho de David Grossman, um dos maiores escritores israelitas, morto em combate no Líbano.

Na edição desta quarta-feira, o jornal Yediot Aharonot dedica uma página à oração fúnebre de David Grossman, uma das principais vozes do campo pacifista de Israel, diante da sepultura do filho, na ala militar do cemitério de monte Herzel.

"Não direi nada agora sobre a guerra na qual morreste. Nós, nossa família, perdemos esta guerra. O Estado de Israel fará agora um exame de consciência. Dobrar-nos-emos na dor, envolvidos no imenso amor que sentimos de tantas pessoas que na sua maioria não conhecemos", disse o escritor.

O sargento Uri Grossman, comandante de um tanque Merkava, tinha 20 anos. Morreu ao ser atingido por um míssil antitanque na madrugada de 13 de agosto, na região leste do Líbano, nos combates mais sangrentos efetuados pelo Exército israelita contra o Hezbollah desde o início do conflito, em 12 de julho.


(AFP)

16 agosto 2006

O dia a seguir



O presidente da Síria fez ontem a leitura política do cessar-fogo e os nossos comentadores encarregaram-se de sublinhar a sua justeza. O Hezbollah venceu.
Um dos objectivos dos pacifistas de 26 de Julho, pelo menos, foi alcançado. A Síria não foi desestabilizada.

15 agosto 2006

O sentimento de aversão pela cultura



O PC do Mar Salgado advertiu contra “aqueles textos insossos e repetitivos de quem se queixa do proletariado em férias.”
O reparo tem-me limitado a escrita.
Mas gostava de lhe dizer que há coisas bem piores que o abafo de Loustal.
Freud chamou-lhe o “sentimento de aversão pela cultura”, esse momento em que os instintos se encontram sem censura e exultam, vitoriosos, no álcool, no ruído e na ignorância de Ushuaia.

14 agosto 2006

O ódio como instrumento do ódio



Isabel do Carmo responde a Esther Mucznik num texto que alguém, gentilmente, copiou para os comentários do post anterior sobre o Gerês.
A guerra é assim, como a paixão, totalitária. Nos teixos do Gerês o partidário árabe vê os cedros do Líbano. A guerra é a manhã e a noite dos combatentes. Os fanáticos islâmicos preparam-se para o martírio nos ginásios de Walthamstow, nas ruas de Birmingham. A doçura e a bonomia dos dias reais devem ser destruídos pelo passado, que não se pode esquecer.
“Os massacres de Chabra e Satila. O massacre da aldeia palestiniana de Deir Yassine.”
“O ser humano não esquece.”
“A população indignada das ruas jamais esquecerá.”

Se por acaso esquecesse, se por acaso “o povo das ruas” se desse às tarefas da paz, lá apareceria um desses que não esquece, clamando vingança. A memória não reclama vingança, mas justiça. A memória do Holocausto, que se inscreve indescritível na nossa consciência e lança uma sombra sem remédio na ilusão progressista, que fez Celan odiar a língua onde escreveu os mais perturbadores dos poemas, mesmo essa, causa vertigem, descrença em que as nossas capacidades intelectuais nos possam modificar moralmente, mas não a sede de vingança.

A língua em que fala Isabel do Carmo, como muitas das pessoas que entendem dar opinião sobre o conflito israelo-árabe, é, infelizmente, uma língua de ódio, recriminações, vinganças, ajuste de contas, conformidade a uma visão do mundo escrita em catecismos. Talvez seja difícil não ser assim. Mas a guerra das classes, a guerra fria, a política da classe contra classe, levaram à loucura homicida do século XX, o mais cruel dos séculos e poderia ser duro construir sobre elas qualquer coisa que corresponda aos nossos anseios mais nobres.

Isabel do Carmo explica a Esther Mucznik o que é ser judeu. Faz um abregé da história do povo judeu em dois parágrafos, para justificar a frase de que, em quinze dias, não se arrependeu: “Israel nunca esteve em sítio nenhum ou esteve vagamente há 2000 anos”.
Dedica outro parágrafo à fundação do Estado de Israel passando por cima das vagas de emigração (as Aliyahs) que desde 1881 levaram judeus para a Palestina. Ignora a declaração Balfoure o White Paper de Maio de 1939, restringindo a emigração judaica para o Mandato Britânico da Palestina quando aí já viviam 450.000 judeus , ignora a declaração 181 das Nações Unidas, a invasão do Estado de Israel pelos Estados Árabes da região, a primeira guerra israelo-árabe.
“O acto fundador de Israel pode dizer-se que foi o massacre da aldeia palestiniana de Deir Yassine por aquilo que hoje chamaria os terroristas do Irgun, a 9 e 10 de Abril de 1948.”- escreve ela.
Lamento que os historiadores não escrevam, nos dias de hoje, sobre a história. Que a história seja penosamente esgaravatada por gente que quer perceber, debaixo do silêncio dos estudiosos que dedicam a sua vida à investigação e ao ensino destes temas. Mas o massacre de Deir Yassin, tal como o massacre da coluna médica de Hassadah, pertencem à miserável história da guerra. “A compaixão como instrumento do ódio”, foi o título certeiro que Esther Mucznik deu à táctica dos falsos pacifistas que fizeram a guerra do Irão por procuração, através dos correspondentes das televisões. O ódio como instrumento do ódio, é a que usa Isabel do Carmo. Para quê? Ela explica. Depois de afirmar que “o Hezbollah, goste-se ou não, é um partido organizado, tem deputados eleitos e foi a forma daquela população se organizar. Tem escolas, hospitais, assistência social. Não é uma organização terrorista e como tal não é considerada pela União Europeia”, conclui: “E de tanto se querer confundir anti-sionista com anti-semita, pretende-se prender as consciências do horror do holocausto e tolhê-las no combate aos senhores da guerra de Israel?”
Dito da mesma maneira: “É preciso apagar o Holocausto, para o Hezbolah, organização possível dos oprimidos árabes, poder destruir Israel em nome da vingança histórica, com a nossa cumplicidade e aplauso”.
O meu combate é muito mais limitado. Eu só queria falar aqui, contra o partido da guerra, a linguagem da paz.

Adições

Vita longa, Fescenina.

13 agosto 2006

O Gerês




O Gerês arde há onze dias. A mata do Ramiscal está reduzida a cinzas. Da Mata do Mezio subia, durante o dia de ontem, uma coluna negra de fumo. O responsável do ICN disse a um jornal que não era bombeiro. Nem bombeiro nem responsável de nenhum parque. Nem de um braseiro ele é responsável. Nem de um cemitério de árvores, arbustos, fungos, insectos, répteis, aves. Ardeu o carvalho-negral e o azevinho, o pinheiro e o vidoeiro, ardeu o abeto, a urze e a borragem , a groselheira e o hipericão, os medronheiros e as violetas, a faia e o teixo, ardeu a raposa e a marta, o texugo e a doninha. Arderam cavalos enlouquecidos. Vai morrer a última águia real.. Miguel Dantas da Gama, ambientalista que há trinta anos vem denunciando o abandono do Parque disse ao DN: Tudo isto é doentiamente previsível, pelo menos para quem anda no terreno e assiste impotente.
O jornalista pôs na boca de um camponês a frase: - o fogo é como o lobo. Mas já não há nenhum lobo para se sentir ofendido.
Juntou-se de novo tudo na queima do Gerês: os incendiários presos, a escassez de recursos, a indiferença, ignorância e falta de solidariedade das populações, a fuga dos responsáveis. Onze dias. Tempo para redireccionar meios, procurar apoios, apelar ao voluntariado. Nos santuários talvez algum peregrino tenha rezado. Arderam os bosques que o Manuel Rui e as irmãs calcorreavam na infância, onde os pais lhes ensinaram ao mesmo tempo o respeito pela natureza e a esperança na democracia. Durante a tarde o sol estava encoberto pelo fumo. Nas estradas sucediam-se as procissões de carros buzinando atrás dos incautos que se vêm asacramentar às terras onde os pais foram infelizes. À noite, nas aldeias da área ardida dançava-se ao som de música pimba internacional, bebia-se cerveja, aplaudia-se um tal Iuri Cardinali e a assistente que exibe um pitão da Califórnia a engolir pintos. À meia noite largaram o fogo preso e os morteiros do costume.

(Mata da Albergaria, 1925, Abel Salazar)

11 agosto 2006

Não sabemos nada

Nunca saberemos se os enganados
são os sentidos ou os sentimentos,
se viaja o comboio ou a nossa vontade
se as cidades mudam de lugar
ou se todas as casas são a mesma.
Nunca saberemos se quem nos espera
é quem nos deve esperar, nem sequer
quem temos de aguardar no meio
de um cais frio. Não sabemos nada.
Avançamos às cegas e duvidamos
se isto que se parece com a alegria
é só o sinal definitivo
de que nos voltámos a enganar.


Amalia Bautista

A nossa vida






A nossa vida não vai ser fácil.
Vamos deixar de viajar sem fronteiras como sonhámos. No interior os polícias vão ganhar força, e entre eles os mais perigosos, os que conhecem ou julgam conhecer a mente do bombistas suicidas, e disparam antes de perguntar. E também os professores dos polícias, e os saudosos da guerra fria e do inimigo interno.
Vai ser precisa muita calma para caminhar entre as salvas reais e virtuais dos combatentes. Levar na bolsa um livro de Amin Maalouf e outro de David Grossman, por exemplo, não dar terreno aos demagogos incendiários (como o deputado João Teixeira Lopes, do BE do Porto), ouvir :
-Revisionista (!!??!)

e considerar que ser-se revisionista é uma boa posição, quando é tempo de compreender, de cerrar os ombros e compreender, de lutar e de compreender, de olhar para dentro para poder olhar de frente para o outro.
O texto de Rui Bebiano na Terceira Noite, escrito no dia negro de ontem, tem essa lucidez necessária.

(depois disto.)

10 agosto 2006

A dor e o consolo



Como a dor depende mais do ser que a experiencia do que da noxia em si, dói muito se somos imaturos ( e nunca estaremos preparados para algumas dores, ou assim julgamos, neste nosso reduto de paz e prosperidade). Depende dos nociceptores periféricos, das vias de transmissão, dos neuromediadores , das projecções centrais, da rede de ligações sinápticas e do envolvimento de áreas ligadas à emoção, que dão cor à dor de cada um. Depende depois da adaptação e da habituação. O controle inibitório da dor processa-se a vários níveis desde a área de nocicepção ao córtex, passando pelos cornos medulares e afectando vias e transmissores.
A dor é subjectiva. Só podemos sentir a nossa. A dor dos outros é sempre uma interpretação, de acordo com as nossas experiências prévias. Como cada um de nós é único, nos materiais utilizados e nos arranjos, nunca saberemos de facto o que os outros sentem, mesmo aqueles que estão perto de nós, mesmo aqueles que amamos.
A nossa capacidade de sofrimento é ilimitada, como prova a dor crónica.
A nossa necessidade de consolo também. Como não sabemos o que dói nos outros, e até onde, nunca seremos capazes de consolar ou avaliar o consolo .

Anagramas





A JAIL IN OUR US
A JAIL RUINOUS
A LA INJURIOUS
AIR USUAL JOIN

09 agosto 2006

O trabalho e a inteligência

Na língua de madeira do futebol uma das palavras fundamentais é trabalho. Quando uma equipa não tem soluções defensivas nem atacantes, faz opções incorretas, não tem executantes à altura das tácticas, não usa os sistemas de jogo adequados ao plantel ou desconhece e menospreza o adversário, joga mal,e perde, aparecem os porta-vozes, treinador, jogadores de proa, dirigentes, e dizem com um ar inexpressivo:
- Temos de trabalhar mais. Só podemos prometer mais trabalho.
Na semana passada Co Adriaanse, depois de uma derrota, declarou, sorrindo, que podiam trabalhar todo o ano, mas que o futebol não se jogava só com os pés, a cabeça e os joelhos. Jogava-se com pés inteligentes, cabeças, pernas, joelhos, ombros inteligentes.
Co Adriaanse foi-se embora. Ao trabalho rapazes. É preciso muito trabalho. Muita humildade e muito trabalho.

O Inferno




Debrucei-me na janela do inferno
e não vi nada que me horrorizasse;
pareceu-me um lugar igual aos outros,
cheio de gente e coisas. Alguém
do inferno convidou-me a entrar.
Não me lembro quem era, ou se eram vários,
nem o que me disseram lá de dentro
ou se aquelas pessoas sorriam,
se havia algum que se lamentasse,
nem se desconfiei em algum momento.
Procurei e achei a porta do inferno,
abri a porta do inferno, entrei
e desde então vivo no inferno.
É um lugar igual a outro qualquer
cheio de gente e coisas. Mas
sei que só pode ser o inferno
porque neste lugar não estás comigo.



Amalia Bautista
(e Louise Bourgeois)

08 agosto 2006

No fim de contas





No fim de contas são poucas as palavras
que nos doem de verdade, e muito poucas
as que conseguem alegrar a alma.
E são também muito poucas as pessoas
que nos fazem bater o coração, e menos
ainda com o correr do tempo.
No fim de contas, são pouquíssimas as coisas
que na verdade importam nesta vida:
poder amar alguém e ser amado,
não morrer depois dos nossoa filhos.



Amalia Bautista.
(com Bruce Nauman)

07 agosto 2006

Visto da Síria

Daniel Oliveira assina no seu blog um conjunto interessante de posts sobre uma recente visita à Síria. Um deles, o mais político, relata a esmagadora adesão popular ao Hezbolah avaliada por uma sondagem de jornal e termina:

A arrogância israelita, o apoio que recebe do Ocidente e a incompetência e corrupção das ditaduras árabes – incluindo as que se disfarçam de democracias e são apoiadas pelo Ocidente (que são a maioria) – tem sido a lenha que nos irá queimar.


Vamo-nos queimar. O fogo vem das massas árabes, convivendo pacificamente com ditaduras dinásticas, censura, repressão política, cultural, religiosa e sexual, tortura, desaparecimento sem rastro. Daniel veraneia entre a multiplicação das bandeiras do Hezbolah, e os outdoors do Hassan Nasrallah, a tudo deitando um olhar compreensivo, porque os seus valores são valores de chegada, a que os Israelitas já acederam e não praticam (“filhos da puta”), mas de que os árabes estão, para já, isentos. Porque a lenha que nos irá queimar somos nós que a damos. Somos culpados, eternamente culpados. Israelitas, arrogantes, e “ocidentais”, apoiantes de tudo o que nos há-de queimar: Israel e as ditaduras árabes. Dessa culpa nem a Imprensa ocidental nos resgata, nem a solidária rua ocidental, onde os europeus se misturaram com árabes, que não se misturaram com ninguém. Quando o fogo se juntar à lenha seremos culpados. Ignorantes, fanáticos, filhos da puta e culpados.


E depois:
No centro da cidade velha, na zona dos cybercafés, dos restaurantes e dos bares, onde à noite os jovens se passeiam, estava, no chão, uma bandeira de Israel. A ideia era que os transeuntes a pisassem, a suprema ofensa em todo o Mundo e especialmente nestas paragens.Consegui, com grande malabarismo, evitar. Não porque ligue especialmente a qualquer bandeira – seja a de quem for, incluindo a do meu país. Mas porque, no meio dela, está o símbolo de um povo que respeito e admiro. Um símbolo que nos conta a história do povo mais oprimido, perseguido e violentado da humanidade. Um símbolo que os governos de Israel não têm sabido preservar.

Esse símbolo não deve apenas ser respeitado por ter sido perseguido, oprimido e violentado. Deve ser respeitado por ter encontrado uma pátria e tentar defendê-la. Talvez um dia um pensamento destes se atravesse na cabeça do Daniel:
Antes a condenação dos que respeitam os meus símbolos de escravo, que o Museu do Holocausto cheio de suspiros compassivos.

Vila-Matas na Cidade Vaga

Miguel shandy Cardina.

Cinzel: um blog

A librivox.org reune gravações de textos e disponibiliza-os, em formato audio (para podcast).


Ouvir The love song of J. Alfred Prufrock. Ouvir:

No! I am not Prince Hamlet, nor was meant to be;
Am an attendant lord, one that will do
To swell a progress, start a scene or two,
Advise the prince; no doubt, an easy tool,
Deferential, glad to be of use,
Politic, cautious, and meticulous;
Full of high sentence, but a bit obtuse;
At times, indeed, almost ridiculous—
Almost, at times, the Fool.


Estas e outras preciosidades em Cinzel .

Poema



Sempre acreditei que eram as palavras
que saíam da minha boca, e que só elas
podiam apaziguar a minha morte.
Hoje sei que da minha boca sai um fio
transparente e tenaz como uma insónia
que te amarrou à minha vida para sempre.

Amalia Bautista,
poema de Fios de Seda, Estou Ausente 2004, reunidos em Tres Deseos.

06 agosto 2006

Adições

Num blog chamado Mundo Perfeito, Isabela escreve memórias do mundo colonial e da transição da independência, um registo de memórias pouco frequente em português. Trazido pelo jpt, o autor do Ma-schamba, entretanto regressado. À terceira não é de vez.

Força assessor

O presidente de uma Comissão de Protecção de Menores (CPCJ) escreveu ao presidente do Instituto de Segurança Social (ISS) protestando por a Comissão não ter ainda sido dotada de uma psicóloga.
Um mês depois nem a carta teve resposta nem a Comissão psicóloga.
Mas nos jornais (ver Público, 4 de Agosto, indisponível o link) o presidente do ISS considerou-a "lamentável a todos os títulos". E o assessor de imprensa do ministro do Trabalho "também se insurgiu contra a carta". Ambos aproveitam para dizer que o actual presidente da CPCJ era, não apenas o anterior responsável pela Segurança Social da localidade no anterior governo, como fora ainda chefe do gabinete do Presidente da Câmara (desafecto à actual maioria).
Se por acaso precisarem, as crianças e os jovens nunca encontrarão protecção de gente desta.

Onde estás?

As miúdas do Festival de Sudoeste: - Sabem qual é o sms que mais se escreve?
- Onde estás?
As miúdas estão eufóricas. Por enquanto elas não se perdem e querem ser achadas.

A lição de Co Adriaanse

Bruno, Co Adriaanse explicou:
- "Falta-nos qualquer coisa. Fazemos umas coisas engraçadas (poucas, e de graça discutível) e invariavelmente perdemos".

04 agosto 2006

Os Amantes Regulares



De Philipe Garrel com Louis Garrel, França 2005

Vasos Comunicantes

No fim do verão
estaremos todos por cá. Mas onde?
Como será a próxima vida, que terá
começado em Setembro?
É preciso deixar passar o Agosto
para fazer contas à vida.
Para os barcos, para os barcos!

Luís Gouveia Monteiro



Não sei se por maldade ou esquecimento
não fui chamada à arca. O fim do mundo
durou quarenta dias e quarenta
noites. Mas alguém fez com as suas mãos
a doce balsa que me evitou a morte.


Amalia Bautista

Os Teus Olhos

Quando se esgotaram os caminhos
que a razão poderia aconselhar-nos
abrem-se os teus olhos, e com eles tudo
volta a inundar-se da luz obscura
que dá sentido ao mundo e à minha vida



Amalia Bautista

Alguns Infelizes

Todos precisamos que nos amem.
Porém, alguns infelizes,
não sabemos viver para outra coisa.



Amalia Bautista

New Encyclopedia of Unbelief



Sucedendo à "Encyclopedia of Unbelief" (1985), editada por Gordon Stein, entretando falecido, a "New Encyclopedia of Unbelief" tem o lançamento anunciado pela Amazon para o próximo dia 9 de Agosto e conta com cerca de 100 colaboradores, 130 autoridades anti-autoritárias no Corpo Editorial, mais de 500 entradas e um prefácio de Richard Dawkins.

800 pages
Publisher: Prometheus Books
~150 £

02 agosto 2006

O Anjo Perplexo

Não houve nunca deus, nem virgens, nem santos,
nem ícone que proteja, nem oração que console;
nunca houve milagre ou prodígios,
nem salvação da alma ou vida eterna;
nem mágicas palavras, nem bálsamo eficaz
contra a dor que nunca se atenua;
nem luz do outro lado das sombras,
nem saída do túnel, nem esperança.
Só nos acompanha nesta travessia
um anjo da guarda perplexo que suporta
uma vida de cão igual à nossa.


Amalia Bautista,
Tres deseos, pg 129

O post do Verão

Já me esquecia de dizer: o melhor post do Verão é, até agora, este. Pela referência histórica, pelas personagens envolvidas, pela música, e porque, claramente, ela estava a perceber, digamos, o ponto.

As mulheres do Mal: Gisberta


Torturada até à morte por um bando juvenil. Cidade do Porto. Portugal 2006

Isabel do Carmo e a guerra

Isabel do Carmo escreve no Público uma crónica sobre “as imagens de destruição do Líbano” com o título de “Vemos ouvimos e lemos” (indisponível para não assinantes).
A crónica não se distingue das que os antipatizantes de Israel têm vindo a escrever. “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”, terá dito a Sophia (eu não confirmo).
E o que leu IC? Leu Sebald. História Natural da Destruição, a memória dos bombardeamentos das cidades alemãs nos últimos dias da II Guerra Mundial. Nessa altura, no Reino Unido, o partido da bomba decidiu que iria utilizar o imenso potencial de armamento acumulado, para castigar o nazismo agonizante através da punição exemplar das suas grandes cidades. Como na invasão do Iraque, a grande e última explicação para o feito militar foi: temos os meios e os planos. Diz Sebald que o único local onde a missão foi debatida, foi o Parlamento britânico. A França, recentemente libertada, não estava em condições de o fazer. A União Soviética dirigia-se a Berlim para vingar os vinte milhões de mortos e desenhar o mapa do pós-guerra. E à América, como demonstraria mais tarde em Hiroxima, este tipo de punição não lhe desagradava. O bombardeamento das cidades alemãs obedeceu a uma estratégia deliberada de destruição, com vagas sucessivas de ataques que se completavam no afã destruidor. Só no bombardeamento de Dresden terão morrido dezenas de milhar de pessoas.
A selvajaria do ataque, a barbaridade do morticínio, não invalidam que na Segunda Guerra Mundial, os valores da democracia, da liberdade de expressão, do convívio entre povos e nações, da igualdade das raças e etnias, estivesse do lado dos britânicos. Condenamos os crimes cometidos pelos Aliados mas saudamos a sua vitória.
Ora o que alguma esquerda faz é acumular os relatos parciais da guerra do Líbano para não discutir a natureza da guerra, as suas causas e objectivos. Israel é o agressor. Um bombardeamento é um bombardeamento. A razão está sempre do lado dos bombardeados, mesmo que seja uma rampa de lançamentos de mísseis, um campo de treino de suicidas, uma estação de espionagem. Identificado o agressor, o resto vem por si. A opinião pública europeia, sensível às causas, exigirá a paz, o desarmamento, a reposição do estado anterior à guerra. Não se sabe como, porque, em nome do anti imperialismo, recusamos a presença de tropas nossas no teatro das guerras, o que significa que os Hezbolahs e os sírios, os iranianos e a miríade de movimentos radicais da área, ficarão com terreno livre para rearmarem os postos de onde um dia hão-de varrer o Estado agressor da face da terra.
IC leu Sebal e viu e ouviu. Mas nunca se ouve tudo. E infelizmente tendemos a ouvir o que nos agrada e justifica as nossas opções prévias, os nossos conceitos, as certezas que nos restam. Talvez se ela tivesse lido o Sebald de Os Emigrantes, o Sebald de Austerlitz a sua visão fosse mais alargada e hesitasse um pouco ao escrever uma frase como aquela a que o editor deu destaque: “Israel não esteve em sítio nenhum ou esteve vagamente há 2000 anos.”
No fim, mostrando-se muito bem informada sobre Israel, IC cita sete organizações de mulheres israelitas pela paz e lamenta a sua falta de visibilidade. Ficaria bem um lamento semelhante pelo silêncio do campo árabe moderado, laico, que se opõe à guerra santa e à guerra de civilizações.

Magnolia

Viu então várias vidas correndo paralelas, que eram só fragmentos de vidas, falas sem som. Umas de gente antiga, camisas brancas de manga arregaçada, mobília austera, corredores na penumbra, portas fechadas, quartos proibidos, sótãos, caves. Uma bicicleta parada na estação de caminhos-de-ferro, à guarda do factor, esperando o visitante dos fins-de-semana.





Outras de risos breves, areia atlântica e mais golpes da luz que vem das pernas quando as mulheres rodam entre as saias.





Uma prisão no mar, aberta ao teu olhar por vir. Um aljube de vozes sussurradas. Um labirinto a que chamam parlatório.





As crianças gatinham entre as patas de um cão enorme, protector.
Os pátios das cidades do interior, o salto, os quartos das pensões da Europa, no largo da gare, com tabiques de madeira e no outro quarto uma mulher a vir-se, em alarido festivo, debaixo de um homem silencioso.





O fim das aulas, o começo das aulas, a matinée, a exposição, as crianças ajoelhadas em frente de um quadro de Bonnard.





O dentista de cuidadosas mãos sapudas, a inundação de urina rebentando as sondas, as paliçadas de sacos colectores, os biombos boiando na direcção da capela do hospital.





As vidas alinhadas como tubos de néon, fileiras de cores, incandescentes, procurando uma ligação, uma via comum de navegação.




Duas mulheres debruçadas sobre um corpo. Ele desenha com o dedo no papel a mesma frase. Depois o clarão que funde as várias vidas. Depois silêncio.

01 agosto 2006

La Partida



Duas mulheres jogavam as cartas.
Eram as duas formosas e perversas.
As duas faziam batota. A partida
prolongava-se mais do que o costume,
a julgar pelos gestos de impaciência
que nenhuma ocultava. Vida e Morte
se chamavam. E tinham apostado
o coração de um homem, como sempre.


Amalia Bautista

Amalia Bautista



O pequeno livro que reúne as poesias de Amalia Bautista foi publicado pela Renacimiento, uma editora de Sevilha, e é o número 16 da colecção Antologias.
Acabou de se imprimir a 10 de Abril de 2006.
A capa é feérica, em riscas horizontais de vermelhos e amarelhos (Crimson, Fire Brick, Orange, Orange red, Amarelo e Gold ).
O título

Tres Deseos


alude ao poema

Pide tres deseos

Ver el alba contigo,
ver contigo la noche,
y ver de novo el alba
en la luz de tus ojos
. (pg 151)



Eu teria prescindido da foto de Amalia (de José del Rio Mons), mas não tenho disponível nenhuma melhor, o que provavelmente indicia que Amalia não gosta de se ver fotografada ou não teve ainda o seu fotógrafo.
Ou teria fotografado os joelhos, os tornozelos, as meias pretas
... mas as minhas pernas são definitivas,
e fazem-te num instante imaginar
uma história de amor nocturna e louca
. (Berkshire, p 23)

, ou Amália nua como uma estátua abandonada num parque
...onde sofre os rigores do frio no Inverno

Ou uma reprodução do mar



Cuando esté en alta mar y todo sea
agua en mi alrededor, agua salada,
arrojaré mi vida por la borda. (…)


Tal como a foto o prólogo de Jorge Valdés del Días-Vélez, um académico palavroso, era dispensável.
Mas depois são 175 páginas de poesia, uma dávida tão grande que não esperávamos, e seguramente não merecíamos, neste e em nenhum Verão.

O livro é composto por quatro livros : Cárcere do Amor (1988), Conta-me outra vez (1999), Estou ausente (2004), Pecados (2005) e um conjunto de inéditos.
Dos dois primeiros conhecíamos alguns poemas seleccionados por J.M. Magalhães nos Trípticos.
Poemas curtos, luminosos, muitas vezes com um final surpreendente, de um personagem feminino, apaixonado, perverso, fatal, mas afinal frágil, melancólico, abandonado, com medo que a negra bílis se infiltre para sempre nos dias ou venha o rancor, aproveitando a escuridão.
Este Verão hei-de decorar os poemas de Amália, o poeta que quase mudou o nome deste blog, e dizê-los alto nas ruas desertas desta cidade, partilhando com ela a dor e a loucura, o humor, o anjo da guarda, a carcereira e a linha quente das chamadas de valor acrescentado, o Inferno e os pecados capitais.